Terra e nação: o que herdaremos
Por não partilhar o território, a nação brasileira do novo milênio terá como herança uma concentração fundiária desumana
MARCIA MARIA MENDES MOTTA
Nunca é demais refletir sobre o que herdaremos no século 21. Sobre o universo rural, não há dúvidas: nossa herança é espólio não partilhado, fruto de uma história mais do que secular de desmandos e de um poder (às vezes sem limites) dos senhores e possuidores de terra. Mesmo assim, um projeto de nação deve propor alternativas ao caos. Insistir na imperiosa necessidade de se promover a reforma agrária - entendida para além dos ganhos ou perdas presentes nos cálculos dos economistas de plantão -, é fazer um acerto de contas com o passado, reconhecer sua importância na consolidação da cidadania.
Pois não há como negar. Ao não partilharmos o território, a nação brasileira do novo milênio terá como herança uma concentração fundiária desumana. Um país de dimensões continentais capaz de construir um sociedade onde apenas 1% dos proprietários rurais detém 44% das terras, enquanto 67% deles detém apenas 6% das terras. É difícil pensar na recriação da nação brasileira, sem levar em conta tão tristes números. Os efeitos nefastos de tamanha concentração batem em nossas portas, tão surdas como nós.
Os dados mais chocantes da concentração se somam às injustificáveis, indesculpáveis informações acerca dos assassinatos do campo. Truculência, desrespeito, impunidade são os ingredientes que dão forma à crueldade. Segundos dados da Comissão Pastoral da Terra, 1.600 pessoas foram assassinadas no campo brasileiro, entre 1964 e 1992. Nada indica uma tendência a sua redução, posto que entre 1991 e 1994, de um total de 1.916 conflitos no campo, resultaram 199 assassinatos. Segundo informações das organizações não-governamentais, entre elas, o Instituto Apoio Jurídico Popular, mais de 1.500 trabalhadores rurais, índios, sacerdotes, advogados e outros profissionais dedicados à luta pela democratização do acesso à terra, foram assassinados desde 1964. Deste universo criminoso, poucos casos chegam à Justiça e um número ainda menor refere-se à condenação dos executores dos crimes. A falta de provas é a alegação recorrente para a absolvição dos réus.
O Relatório da Comissão Pastoral da Terra de 1999 apresenta dados ainda mais chocantes para os dois últimos anos. Ao aumento da mobilização popular via MST, os proprietários têm respondido com o recrudescimento da violência. O respeito à propriedade privada consagrado pela Carta Magna é, na maior parte das vezes, o argumento definitivo na condenação das atitudes dos posseiros e de todos aqueles que questionam a manutenção da estrutura fundiária vigente. É em nome daquele importante instrumento legal que as ações de capangas, contratados pelos fazendeiros, são legitimadas. Afinal, os posseiros ousam questionar um princípio constitucional, ainda que em nome de um outro princípio também consagrado em lei: a já desbotada função social da propriedade. Assim, para além de uma possível validade da crítica à concentração de terras em mãos de uma minoria, os pobres do campo não teriam razão, pois o que eles fazem - a ocupação de terras - fere as leis do país. Os pequenos posseiros seriam tão somente invasores das terras de outrem.
O passado tem nos revelado que os senhores e possuidores de terra sempre operaram com a lei para assegurar sua própria invasão. Não à toa, o caso de Pontal de Paranapanema, cujas evidências apontam para um processo de invasão praticado pelos fazendeiros em meados do século 19, é apenas um caso emblemático de ocupação ilegal dos fazendeiros. A história da apropriação territorial do Brasil nos mostra uma realidade mais complexa: os principais invasores foram os antepassados dos que hoje se apóiam na lei para reafirmar sua condição de proprietários.
Não há, de fato, nenhum mistério para se fazer a distribuição. Em 1995, a Carta da Terra assinada por Betinho já alinhavava uma visão ética sobre a questão fundiária. "Cercada, a terra virou coisa de alguém, não de todos, não comum. Virou a sorte de uns e a desgraça de tantos. Na história foi tema de revoltas, resoluções, transformações. A terra e a cerca. A terra e o grande proprietário, A terra e o sem-terra. E a morte". Para o coordenador da Ação da cidadania contra a forme e a miséria, a luta pela democratização da terra era (e ainda é) condição para a consolidação da democracia.
O próprio governo federal tem tornado públicas as propostas encaminhadas pelos estudiosos do tema. Em seu Boletim do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento, do Ministério Extraordinário de Política Fundiária, o governo divulgou as conclusões a que chegaram os especialistas da mesa-redonda sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural, presidida pelo ministro Raul Jungmann, na 1ª Conferência Latino-americana e Caribenha de Ciências Sociais, ocorrida em Recife, entre os dias 22 a 26 de novembro passado. Para os especialistas é necessário: a) novas estratégias de desenvolvimento rural, que tenham caráter de inclusão; b) aumentar a organização dos movimentos da sociedade civil e Ongs voltados à reforma agrária; c) reconhecer que o papel do Estado é fundamental na reforma agrária, mesmo que associada ao mercado, por se tratar de questão legal; d) implementar políticas que melhorem a qualidade de vida das populações rurais; e) reconhecer que a reforma agrária não é fim, mas é um meio para tornar útil a terra, em benefício da sociedade; f) fortalecer a agricultura familiar; g) ter uma visão territorial do desenvolvimento, o que é ambientalmente mais produtivo; h) proteger a biodiversidade; i) levar em conta que os países desenvolvidos são os que, no final do século 19 e no início do século 20, resolveram os seus problemas de terra.
Qualquer projeto de nação para o século 21 deve apenas pôr em prática o que nos parece tão evidente.
Márcia Maria Mendes Motta é coordenadora do curso de História da UFF e professora de pós-graduação em História. É autora de Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século 19 (Arquivo Público do RJ/ Vício de Leitura)
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