Robert PongeA COMUNA: CONSTITUIÇÃO DOS TRABALHADORES EM CLASSE E CONQUISTA DO PODER
O historiador Jacques Rougerie começa um capítulo de um de seus livros com uma citação de Marx: "A primeira obra da Comuna foi sua própria existência".
Rougerie ironiza aquilo que considera uma "elipse fácil" por parte do "brilhante panfletário"; bastaria Marx simplesmente reconhecer "que, por óbvia falta de tempo, a obra da Assembléia Comunal foi mince [pequena, pouco espessa].40 Enquanto historiador, Rougerie deveria confiar menos em sua memória e antes verificar suas citações. O que realmente escreveu Marx? "A grande medida social da Comuna de Paris foi sua própria existência e sua ação". Não é difícil perceber a diferença. Marx, aliás, acrescenta: "Suas medidas específicas [da Comuna] podiam apenas indicar a tendência de um governo do povo pelo povo". 41
Segue a lista das medidas concretas e específicas que a Comuna tomou (abolição do trabalho noturno para os assalariados nas padarias, etc.). Para quem leu A guerra civil na França fica fácil (para quem leu alguns outros textos dele, fica ainda mais fácil) entender o que quis dizer Marx. Tentemo-lo, mesmo tomando-se a citação na sua forma amputada por Rougerie.
No Manifesto comunista (1847), Marx e Engels definem os objetivos do movimento operário nos seguintes termos: "constituição dos proletários em classe, derrubada da dominação burguesa, conquista do poder político pelo proletariado".42
O artigo 1º dos Estatutos da AIT (1864) define, como objetivo da entidade, "o progresso da classe trabalhadora e sua completa emancipação".
Será que a "mera existência" da Comuna não representava, simplesmente, um imenso progresso da classe trabalhadora? Será que a Comuna não propiciou a organização dos trabalhadores (nascimento de um sem-número de organismos e organizações, inclusive de mulheres)? Será que a Comuna não elevou a classe trabalhadora a um altíssimo estágio de constituição em classe? Será que não marcou o início da conquista do poder político, o seu primeiro passo, abrindo a possibilidade de sua manutenção, de seu fortalecimento, da conseqüente derrubada da dominação burguesa, o que permitiria avançar no sentido da completa emancipação do proletariado? Será que isto, independentemente das medidas específicas, particulares (relativas a tal ou qual questão) que a Comuna viria a tomar, não bastou para garantir a importância histórica da Comuna? Obviamente que sim, ainda mais que, na linha seguinte, Marx caracterizava a Comuna como "um governo do povo pelo povo".43
Abramos um parêntese que tem tudo a ver com o assunto em tela. No início de outro capítulo do mesmo livro, Rougerie irrita-se, novamente, com Marx. Este ousara caracterizar a Comuna como a antítese do II Império. Marx não é mais culpado de uma elipse, mas de um "julgamento seguramente excessivo, nem que fosse apenas em função da desproporção entre os dois fatos".44 O professor Rougerie não explica como ele aprecia, mede, a proporção e desproporção dos fatos históricos, de maneira que o leitor fica na dúvida se é pela duração, pelo tamanho do território, pela espessura da obra, ou ... Por sua vez, Marx não compara nem proporções nem desproporções, apenas caracteriza. Por que a Comuna é a "antítese direta"45 do Império? Antes de mais nada e mui simplesmente, porque nem o GDN, nem o governo de Thiers são parecidos com antíteses do Império e porque, embora de maneira retardada, a Comuna nasce da crise e derrubada do regime de Napoleão, o Pequeno, como desaguadouro e fruto necessários (embora atrasados e não inevitáveis) da Revolução de 4 de Setembro. A Comuna é também a antítese do II Império porque a cada característica apontada por Marx, em seu A guerra civil na França, a respeito daquele regime, corresponde uma característica da Comuna. Por exemplo, o Império é o governo do bando de 2 de dezembro de 1851, enquanto a Comuna é o governo do povo pelo povo; o Império é a ditadura de um Bonaparte em nome da burguesia sobre o povo, enquanto a Comuna é a ditadura do povo pelo povo sobre a burguesia; etc. Como se vê, o parêntese levou-nos a abordar as características, as qualidades daquele fato cuja simples existência constitui para Marx uma obra, um feito monumental, que basta para lhe justificar um lugar de extremo destaque na história. Continuemos, então, as caracterizações de Marx: a grande medida social da Comuna de Paris foi sua própria existência porque
era essencialmente um governo da classe operária, o resultado da luta da classe dos produtores contra a classe dos apropriadores, a forma política enfim encontrada que permitia realizar a emancipação econômica do trabalho.46
Em outras palavras, porque a Comuna "é o ?impossível? comunismo", a forma política enfim encontrada que permite avançar rumo àquilo que as classes dominantes taxam como impossível, como uma utopia inalcançável
Mas quais são os traços qualitativamente distintivos, diferenciadores, que distinguem a Comuna?
Marx assinala que "a classe operária não pode limitar-se a tomar tal qual a máquina do Estado e fazê-la funcionar em proveito próprio".47 Como a Comuna resolveu este problema? Essencialmente, de duas maneiras, em dois níveis: através, justamente, desta forma política enfim encontrada, que Marx descreve nos seguintes termos: "A Comuna devia ser, não um órgão parlamentar, mas um corpo que agisse, executivo e legislativo ao mesmo tempo".
Por outro lado, através dessa ação a que se refere Marx como a "grande medida" da Comuna (junto com sua própria existência). Em que consistiu essa ação? Em quebrar a máquina do Estado, que a classe trabalhadora não pode fazer funcionar tal qual. Marx destaca que "o primeiro decreto da Comuna foi ... a supressão do exército permanente, e sua substituição pelo povo em armas".48 Supressão seguida de outras que Marx lista imediatamente a seguir: supressão, abolição, destruição e transformação da máquina da polícia, da justiça, da administração, etc.49 Lenin soube sintetizar o sentido dessas medidas:
a Comuna parece apenas substituir a máquina do Estado que destruiu por uma democracia mais completa: supressão do exército permanente, elegibilidade e revogabilidade de todos os funcionários sem exceção. Porém, na verdade, este apenas representa a gigantesca substituição de certas instituições por outras de um tipo absolutamente diferente. Trata-se justamente de um caso de transformação de quantidade em qualidade: ao ser realizada da maneira mais completa e conseqüente que se possa imaginar, a democracia burguesa converte-se em democracia proletária; o Estado (força especial de repressão de uma classe determinada) transforma-se em algo que já não é mais um Estado propriamente dito.50
Em suma, a supressão do exército permanente era a ação necessariamente inicial para que a Comuna pudesse então tomar as medidas particulares, específicas que concretizariam o governo do povo pelo povo, mas que, por falta de tempo, puderam ser alcançadas apenas de maneira embrionária ou incipiente.
Robert Ponge é graduado e pós-graduado em Letras pela Universidade de Paris, doutor em Letras pela USP e professor do Instituto de Letras da UFRGS.
Notas no endereço http://www.oolhodahistoria.ufba.br/04ponge.html
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