História do Brasil e do Mundo
História e natureza
Por Sérgio Buarque de Holanda
O interesse, não apenas de curiosidade que, cada vez mais, vêm provocando entre nós as questões de ordem filosofica, representa o indicio talvez caracteristico de uma direção nova nas preocupações dos nossos escritores e, até certo ponto, do nosso publico. É frequente, hoje, que se orientem para a simples especulação filosofica muitos daqueles que há quinze e há vinte anos se deixariam empolgar por alguma sociologia que não passasse, em realidade, de uma aliança da interpretação historica à propaganda politica e à visão profetica. Assim como os que ontem se ocupavam da literatura de ficção - e ainda aqui, indiretamente, dos espetaculos, não digo tanto dos problemas, sociais - parecem voltar-se hoje para a poesia, de preferencia para a poesia "pura".
Um critico imbuido de "slogans" marxistas não deixaria de interpretar essa nova preeminencia do "humano" e do individual sobre o social como sintomatica da alienação dominante entre intelectuais em face das perplexidades da hora presente. O que de certo modo pode ser perfeitamente justo: entretanto não cuidarei, por agora, dos motivos, ficticios ou reais, da transformação operada, receoso de me meter com eles pelos desvãos do sociologismo critico.
Não é de hoje que um ilustre ensaista francês - Julien Benda - vem sistematicamente denunciando o viés literário de muitas filosofias em voga. Se o fato é verdadeiro, não o será menos sua reciproca. E no gosto atual pela literatura chamada existencialista, eu veria um aspecto, entre muitos, mas esse especialmente famoso, de um fenomeno bem generalizado e rico em consequencias.
A consideração deste fenomeno, sugerida por dois comentarios ultimamente aparecidos às notas que aqui mesmo se publicaram a proposito das atas do Primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia, não implica, certamente, num desconhecimento da atitude oposta. Porque a par daqueles que procuram destruir as possiveis muralhas entre as atividades distintas do espirito e da imaginação, a fim de que cada uma possa respirar por todos os poros a mesma atmosfera comum, existem sem duvida os outros, os que desejariam ver erigida em cada limite uma barreira, bem espessa e calafetada.
Apenas estou inclinado a supor que estes não existiriam facilmente sem aqueles: quer dizer que o zelo dos partidarios das muralhas seria inexplicavel sem o ardor dos amigos da indistinção e da promiscuidade. À origem dos seus contrastes encontra-se, assim, uma interdependencia bastante sensivel.
Precisamente um dos que se deram o trabalho de comentar as minhas notas à margem do Congresso de Filosofia, ou melhor, das suas atas publicadas, situa-se claramente na primeira categoria, a dos que não toleram vãos compromissos, capazes de turvar a nitida visão do filosofo e do cientista. Pertencendo à tribo relativamente pouco numerosa, entre nós, dos que não se encaminharam à Filosofia movidos pelo simples gosto de brilhar, ostentando uma erudição facil e falaciosa, o sr. Eurialo Canabrava não quer saber dos entretons que, podendo satisfazer imaginações generosas, atendem mal às mais elementares exigencias de uma logica precisa.
E se as questões esteticas, sobretudo as poeticas, despertam, não raro, seu interesse, é que, definidas, como as define, por um rigoroso contraste com as filosoficas e as cientificas, fica assentado que cada qual tem seu terreno intransferivel, cercado de solidas barreiras. Uma vez que a poesia constitui por excelencia e com exclusividade sintomatica o dominio da magia, do vago, do ambiguo, ficam automaticamente fixadas essas barreiras.
A perspectiva de uma classificação e formalização das diferentes disciplinas poderá fazer-se, livre, enfim, desse embaraço, através de um rigoroso criterio logico. No seu artigo Natureza e Historia, publicado recentemente em suplemento de A Manhã, o sr. Canabrava não deixa, é certo, de louvar o pessimismo dos que duvidam do bom exito de certos esforços de formalização das disciplinas historicas. "O sr. Buarque de Holanda,", escreve ele, "manifesta a esse proposito serias duvidas de que tal tarefa possa ser levada a cabo no dominio das disciplinas historicas. As suas observações se aplicam mais rigorosamente às tentativas ingenuas de matematização da historia, psicologia ou sociologia."
Acrescenta, aparentemente com razão, que a extensão dos metodos cientificos à historia há de obedecer a principios estrategicos diferentes dos que se impuseram no "dominio dos fatos naturais". Apesar dessa ressalva, o autor não deixa, é certo, de encarar a possibilidade de uma formalização logica da historia, e é sobre este ponto que continuo a manter as serias duvidas formuladas nas notas sobre o Congresso de Filosofia. Acredito, em realidade, que os historiadores têm a aprender do espirito que preside atualmente o trato das ciencias formais muito mais do que julgam os produtos de hipoteses onde a complexidade do passado é sujeita a uma simplificação enganadora. A desconfiança em face dos falsos conceitos é tão valida para o mister do historiador quanto o é para os modernos positivistas e fisicistas. Mas essa mesma desconfiança há de afastá-los justamente da sedução dos padrões rigidos e absolutistas, que nos permitiriam não apenas compreender o passado, como prenunciar o futuro. Só a partir dela é que o historiador poderá vencer cabalmente aqueles "efeitos desastrosos do diletantismo literario e filosofico sobre uma disciplina que não se caracteriza pelo rigor sistematico das suas conclusões".
Se a proposito de determinados fenomenos, em particular dos fenomenos de natureza estatistica e economica, é possivel um grau apreciavel de previsão; se, por conseguinte, é possivel, em parte, algum conhecimento cientifico rigoroso, a verdade é que o bom exito alcançado pela disciplina historica nesses setores só tem servido para mostrar a latitude imensuravel dos dominios onde ampliar metodos semelhantes é cair exatamente numa especie de diletantismo literario ou filosofico.
Penso, neste ponto com o sr. Eurialo Canabrava, que a assimilação da historia às ciencias suscetiveis de formalização não se dará nas condições em que a unificação da fisica e da quimica chegou a ser imaginavel, em principio e idealmente, é certo, na teoria do atomo de Bohr. Mas por outro lado suspeito da possibilidade de uma influencia absolutamente eficaz, sobre os historiadores futuros, de trabalhos como os de sociologos (Lazarsfeld a Lundberg) cujas diretrizes, a seu ver, poderiam encerrar o embrião de uma nova "estrategia" historiografica.
É bem significativo que, atraidos pelas recentes teorias sociometricas, esses mesmos autores, segundo pode notar um dos seus criticos, sempre se mostraram mais devotos do "metrum" do que sensiveis ao "socium". Eles nos ensinam a tomar medidas, não a aprender o sentido verdadeiro daquilo que procuram medir. Para isso precisam limitar necessariamente a importancia do individual, a fim de favorecerem a do tipico. Ora, a historia é por excelencia o dominio do individual, do espontaneo, do concreto. Ou, nas mesmas palavras do sr. Canabrava, "e o campo em que se movimentam as forças irracionais, os interesses e as tendencias afetivas, os valores misteriosos de variaveis desconhecidas e parametros ocultos".
Estou convicto de que a precisão nas disciplinas historicas só é verdadeiramente possivel na medida em que se abandone de todo a esperança falaz no valor daquele padrões rigidos, que no seculo podiam seduzir um Taine ou um Buckle, o que ainda neste nosso seculo encantam os partidarios de um Spengler ou de um Toynbee. A importancia de um maior rigor é afirmada com justeza no trabalho do sr. Canabrava. Para ser ainda mais justo, ele precisaria acentuar, sem deixar margem a duvidas, que o tipo de rigor requerido para as disciplinas formalizaveis não se confunde e nem se equipara ao que reclamam as pesquisas historicas, quando não queiram cair, estas, nas malhas dos mistificadores, dos astrologos ou dos fabricantes de ouro. Contudo, no fato de ter chamado atenção para a necessidade de um tratamento mais preciso dos problemas da historia permanece um dos meritos do trabalho onde o sr. Canabrava comentou as observações aqui feitas. O mesmo já não se poderá dizer, com a mesma certeza, de outro comentador, cuja exposição tentarei examinar em artigo posterior.
Fonte: Almanaque Folha
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