SOCIEDADE PATRIARCAL - 1ª parte
História do Brasil e do Mundo

SOCIEDADE PATRIARCAL - 1ª parte



SOCIEDADE PATRIARCAL - 1ª parte

Publicado na Folha da Manhã, sabado, 10 de novembro de 1951

Sérgio Buarque de Holanda

A publicação, em texto refundido, e consideravelmente ampliado, de "Sobrados e Mucambos" do sr. Gilberto Freyre (2.a edição, 3 volumes, 1.188 pags., Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro e São Paulo, 1951) pode fornecer uma perspectiva habil para os que desejam interpretar todo o alcance da contribuição do escritor pernambucano para o melhor conhecimento da sociedade brasileira.
Com os volumes impressos, esse trabalho verdadeiramente monumental já adquire unidade organica bem definida. Em "Casa Grande e Senzala", primeira parte da serie, estudaram-se o nascimento, formação e definição da sociedade brasileira sob os auspicios da economia patriarcal. Aos cinco volumes até aqui publicados da obra integral, deverá seguir-se um sexto, há muito anunciado com o titulo de "Ordem e Progresso", que abordará o "processo de desintegração das sociedades patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o regime do trabalho livre". O ciclo organico (nascimento, crescimento, maturidade, declinio, morte da sociedade patriarcal) há de completar-se - descontados, naturalmente, alguns volumes subsidiarios - com uma ultima parte já projetada, que se chamará, de modo expressivo, "Jazigos e Covas Raras".
É possivel que para conhecer a palavra final deste livro seja necessario aguardar ainda a parte final. Como no grande romance de Proust, que o sr. Gilberto Freyre gosta de invocar quando se trata de defender sua obra contra os censores mais impacientes, o ultimo volume daria a chave de toda a construção. Construção naturalmente bem composta e segundo uma ordem velada, mas tão inflexivel em realidade como a ordem que rege os processos biologicos. Destas altitudes podemos rever o curso do caminho trilhado, e já distinguimos na vertente contraria o que ainda falta percorrer.
E a tarefa de quem se proponha, diante de obra tão ambiciosa, ir alem de um simples comentario à margem, como o presente, será grandemente facilitada com a leitura de "Nordeste", publicado quase ao mesmo tempo, em Segunda edição aumentada (Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro e São Paulo, 1951), e que visa ser uma especie de ensaio complementar do trabalho amplo que se iniciou com a publicação de "Casa Grande e Senzala". Ensaio, esse, mais deliberadamente impressionista do que os demais, e que chegou a requerer do autor, segundo sua mesma confissão, um trato prolongado e meio franciscano com a paisagem, a natureza e a gente mais tipica de sua região natal.
Graças, principalmente, àquela estrutura organica, pôde ele dominar, enfim, dando-lhe forma, sentido e valor, um material imenso e muitas vezes incompativel com toda abordagem fundada nos recursos das ciencias da natureza. Semelhante abordagem exigiria, sem duvida, um interesse mais detido pelos condicionamentos ou nexos causais, que relacionam entre si os aspectos frequentemente contraditorios da realidade historica, do que por esses mesmos aspectos, apresentados em cores cruas e sugestivas. O processo, sobretudo cumulativo, do autor, não deixa de realçar o traços que, ferindo fundo a imaginação, parecem animar os acontecimentos de uma vida propria, incapaz de refletir-se em escritos onde prevaleça um rigoroso raciocinio discursivo.
A força de sugestão que cabe nesse processo pode-se dizer que é a de um poeta, de um desses poetas da estirpe whitmaniana, que ele se acostumara a admirar durante seus anos de aprendizagem na America do Norte, não a de um cientista ocupado em medir, relacionar e confrontar os fatos. Ele proprio admite, e defende-a, a presença, aqui, dessa visão poetica endereçada a certas intimidades mais esquivas das coisas do passado, inacessiveis, em geral, ao estudo simplesmente historico ou sociologico; "algumas delas - escreve - só se abrem ao conhecimento ou ao estudo psicologico; varias só ao conhecimento poetico, vizinho do cientificamente psicologico".
A atenção presa aos fatos concretos, mais do que a abstrações e idéias, e empenhada em apreender esses fatos em seus desvãos mais secretos só se torna verdadeiramente eficaz, entretanto, quando movida por um intenso calor afetivo. A sua é uma "visão proxima", amorosa inclusive na repulsa; por isso naturalmente parcial e exclusivista. Seu zelo tantas vezes manifesto em favor da preservação dos estilos e valores regionais em todo o Brasil acha-se em função de um zelo fervoroso - em alguns casos, quase se poderia dizer nostalgico - por certos valores e estilos tradicionais da area dominada, no passado, pela monocultura latifundiaria e em primeiro lugar pela lavoura canavieira, fundada no braço escravo.
Nessas condições chega a admitir, e admite, mesmo, sem reservas, que outras regiões do Brasil tiveram formação até certo ponto dessemelhante; que a presença, ora do latifundio rural e da monocultura, ora do escravo negro não tenha marcado nelas tão decisivamente o passado rural e até o presente; enfim, que o simile mais apropriado para figurar nosso desenvolvimento historico seria o de um arquipelago ou o de uma constelação, não o de um continente compactamente unitario. Sim, mas desde que a forma assumida pela familia de tipo patriarcal, nas regiões onde predominou a monocultura latifundiaria e o trabalho escravo, represente verdadeiramente o alfa dessa constelação.
Este ponto merece exame, porque parece formar o principal dos obstaculos opostos até agora a uma aceitação mais generalizada da perspectiva adotada pelo sr. Gilberto Freyre em sua obra historico-sociologica e dos criterios dependentes dessa perspectiva. Criterios e perspectivas que serviriam, sem duvida admiravelmente, se aplicados a uma parte do nordeste brasileiro e de certo modo às outras areas onde imperou quase sem contraste, entre nós, a grande lavoura açucareira, mas que se revelariam menos aptos para o estudo das demais regiões do pais.
No proprio Nordeste elas mal se prestariam, por exemplo, para as zonas onde a lavoura e mesmo o braço escravo não tiveram papel mais saliente. Ou no planalto paulista, onde, durante a maior parte do periodo colonial, pôde prevalecer, em grande escala, uma forma particular de policultura. Ou ainda no extremo norte, se praticaram largamente a industria extrativa e a coleta florestal. Ou nas terras mineiras e sobretudo nos campos sulinos onde parecem francamente inexistentes muitos dos traços que o autor pernambucano parece prender de modo indelevel ao seu retrato de nossa civilização de raizes patriarcais e escravocratas.
Até onde serão explicaveis e mesmo justificaveis muitas dessas resistencias? Que o assunto parece ao proprio autor, de importancia singular, mostra-o a insistencia com que volta a ele, muitas vezes em tom defensivo e polemico, nas suas ultimas publicações, em particular nesta nova edição de "Sobrados e Mucambos". Aos leitores, por outro lado, e aos criticos, o exame da mesma questão pode fornecer acesso para a melhor inteligencia dessa obra, de sua alta significação e de seu verdadeiro alcance.

Folha de São Paulo




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