SOCIEDADE PATRIARCAL - 3ª parte
Publicado na Folha da Manhã, sexta-feira, 23 de novembro de 1951
Sérgio Buarque de Holanda
Em artigo anterior tentei sugerir como as noções de "forma" e de "conteudo" ou "substancia", que aparecem com certa frequencia nos ultimos estudos historico-sociologos do sr. Gilberto Freire, podem reduntar e redundam muitas vezes em uma visão acentuadamente particularista de nosso passado e de nosso presente.
Aquelas noções, provindas, em ultima analise, da filosofia social de Simmel, retiram toda a sua força da propria indefinição. É verdade que em Simmel elas não passam, ao menos teoricamente, de simples metaforas. Na versão, porem, que lhes dá o autor de "Sobrados e Mucambos" tende a dissipar-se mesmo em teoria, esse nominalismo deliberado. De instrumentos de exposição, distinção, confronto, analise, convertem-se em realidades mais ou menos empiricas, servindo de base a julgamentos de valor que mal se disfarçam.
Assim é que, nos seus escritos, as "formas" sociais se mudam com facilidade, ora em entidades reais, à maneira dos organismos biologicos - e então se confundem praticamente com os "processos" sociais, capazes de crescimento, maturação e morte -, ora em "idéias" de nitido sabor hegeliano - idéias de onde hão de emanar misteriosamente os proprios "objetos materiais".
Neste ultimo sentido ocorrem pelo menos uma vez: quando, em revide a uma critica do sr. Afonso Arinos de Melo Franco, o autor escreve, à pagina 817: "em nossos estudos, acentuando a importancia, dos objetos materiais, simbolos, insignias, mitos, não o fazemos por materialismo ou por desprezo aos valores invisivel ou requintadamente intelectuais e espirituais, mas por considerar os chamados objetos materiais - inclusive moveis, trajos, alimentos - reflexos das chamadas realidades imateriais, nunca ausentes dos mesmos objetos".
É possivel dizer que aquelas formas soberanas e imateriais se realizam de certo modo, em nosso mundo efemero - e neste ponto é que se inserem os juizos de valor - através de processos que conduzem à maturidade, à plenitude, e, em certo sentido, à perfeição: "amadurecendo numas areas mais cedo do que noutras, declinando no Norte ou no Nordeste, antes por motivos ecologicos que pura ou principalmente economicos -, quando apenas se arredondava por iguais motivos, em formas adultas no Brasil meridional" (pag. 41).
É bastante significativo que, apesar do seu insistente empenho de emancipar a "forma" social da "substancia" ou do "conteudo", o sr. Gilberto Freire raramente consegue desunir estes elementos quando se trate de distinguir, entre esta e aquela area de povoamento e ocupação do solo, as que lhe parecem expressões mais adultas ou completas. E, embora professando, em certos casos, dar escasso valor sociologico aos "objetos materiais" ou às tecnicas peculiares a cada região distinta, não há duvida que, em outros, chega a introduzir, entre os proprios objetos, uma especie de escala hierarquica, manifesta na medida em que eles parecem acomodar-se melhor à "forma" ideal e soberana.
Assim, por exemplo, a "grande casa estavel de pedra e cal", propria sobretudo dos engenhos de açucar do Nordeste, e tambem os sobrados de residencia construidos "mais nobremente" (pag 404) da mesma pedra ou então de tijolos e cal de mariscos, comparam-se com grande vantagem, em muitas das suas paginas, às antigas casas de São Paulo, feitas "quase todas de taipa". Como explicar então, que justamente em São Paulo, a area das casas de taipa correspondesse, na era colonial, às terras mais prosperas - mais nobres? - de serra acima, em contraste com as da orla maritima, onde domina decididamente a construção feita, como nos engenhos do Norte, de pedra das pedreiras e cal das ostreiras litoraneas?
Alem da presença de certos fatores materiais de algum modo privilegiados, é certo que entre os distintivos da maturidade social parecem inscrever-se, para ele, motivos "imateriais" nada irrelevantes. Assim, se a casa grande corpulenta e solida tem direito a melhor tratamento é que lhe parecem espelhar admiravelmente certas virtudes senhoriais, estabilizadoras e conservadoras, favoraveis talvez ao maior requinte ou à maior cultura do espirito. Virtudes que ele tem na mais alta conta, assim como haverá quem prefira, em contraposição, outras, não menos senhoriais, posto que mais dinamicas e ativas.
E neste ponto interfere, ainda uma vez, a preeminencia atribuida aqui à "forma social", independente de fatores economicos ou de outra natureza e sobreposta a eles. A sociedade constituida em volta da grande propriedade monocultora e escravocrata se teria revelado apesar das suas flagrantes falhas a mais criadora, entre todas as do Brasil, de valores politicos, esteticos e intelectuais.
É o que está dito nas palavras finais de seu livro "Nordeste". No mesmo livro, à pagina 288, afiança-se ainda: "Mas foi justamente essa civilização nordestina do açucar - talvez a mais patologica, socialmente falando, de quantas floresceram no Brasil - que enriqueceu de elementos mais caracteristicos a cultura brasileira". E não custa ao autor levantar os olhos, em dado momento, dos canaviais do Nordeste patriarcal para os olivais de certa terra classica do meio-dia da Europa. Pois tambem a civilização helenica, escreve ele, "foi uma civilização morbida segundo os padrões de saude social em vigor entre os modernos. Civilização escravocrata. Civilização pagã. Civilização monossexual. E entretanto estranhamente criadora de valores, pelo menos politicos, intelectuais e esteticos. Muito mais criadora desses valores do que as civilizações mais saudaveis que ainda se utilizam da cultura grega".
Palavras estas, que extraidas, embora, de um livro confessadamente impressionista, ajudam, por isso mesmo, a desvelar o que vai, nas suas interpretações, de intenso calor afetivo, de amoroso e nostalgico enlevo pelo passado de sua região natal e ancestral, envolvendo, não raro, as noções puramente teoricas que parecem querer introduzir-se em obras declaradamente mais sobrias. Entre essas noções, tentei destacar, nestes artigos, a de uma forma social separavel de quaisquer elementos materiais, isto é, de todo "conteudo" ou "substancia", para usar suas mesmas palavras.
Não importa discutir aqui se os valores politicos, intelectuais, esteticos representados a seu modo - "criados" diria o sr. Gilberto Freire - pela "civilização do açucar" terão sido os mais significativos ou os mais insignes entre nós, comparados aos que se encarnavam em outras "civilizações" regionais brasileiras, conforme pretende o sociologo pernambucano. Seria entrar no terreno movediço das preferencias, dos interesses, dos sentimentos pessoais. Dizer que por simples ato de presença e independente de condições materiais a que se acha inextricavelmente ligado, o patriarcalismo nordestino pôde suscitar aqueles valores, é apegar-se a concepções um tanto misticas, que em todo caso desafiam um escrutinio plausivel.
Não é preciso certamente uma adesão às formas mais crassas do materialismo historico para admitir-se que a pujança economica pode favorecer certos recursos materiais e certos habitos de ociosidade em nada desfavoraveis ao tipo de cultura intelectual e trato politico tão enaltecidos pelo autor. Assim ocorreu, sem duvida, no Nordeste açucareiro, como ocorreu em outras areas do Brasil colonial e imperial favorecidas pela fortuna. Quem percorra a lista de estudantes brasileiros formados em Coimbra verificará, sem esforço, até que ponto isto é verdadeiro. O fato de Minas Gerais, na idade do ouro e dos diamantes, ter fornecido um numero maior de estudantes do que o de todas as demais capitanias brasileiras (mesmo nos três ultimos decenios do seculo XVIII esse numero é de 132, para 120 do Rio de Janeiro, 108 da Bahia, 68 de Pernambuco e 30 de São Paulo) não pode ser indiferente a quem deseje estudar movimentos tais como o da Escola Mineira ou o da Inconfidencia. A rapida e efemera ascensão economica do Maranhão coincidirá, por sua vez, com um aumento notavel no numero de estudantes daquela capitania e provincia nortista, que chegará a ultrapassar largamente, no meio seculo imediato, os proprios totais de Minas e os de Pernambuco. E não foi certamente por um milagre que tivemos a famosa "Atenas brasileira". Nem foi por acaso que a Bahia, beneficiada nesse periodo, e ainda em maior grau, pelas mesmas condições economicas favoraveis, se tornaria grande forja de estadistas do Imperio.
As explicações que não têm em conta semelhantes fatores levam a pensar um pouco nas de monsenhor Pizarro, se não estou esquecido, quando escreveu do açucar que serve, não só para temperar os manjares como os costumes, fazendo aqueles mais doces e estes mais corteses e politicos. É muito provavel que sem uma especie de visão lirica, responsavel, em parte, por esse tipo de explicações, e admiravel esforço de compreensão e elucidação de nosso passado, empreendido pelo sr. Gilberto Freire teria sido menos eficaz em outros aspectos. Ela constituiu, por assim dizer, e para empregar uma das suas comparações, o lado patologico, inevitavel, talvez, em uma obra realmente criadora, e que deveria abrir novos rumos para a boa inteligencia da vida brasileira.
Folha de São Paulo
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