Da fotografia analógica à ascensão da fotografia digital
Resumo
Com o surgimento da fotografia digital, qualquer cidadão com uma câmera embutida no celular tem a possibilidade de desempenhar o papel antes reservado aos fotojornalistas. O problema central dessa disputa passa por antigos dilemas da fotografia, que ganharam força com a facilidade da préedição e manipulação da imagem. Caso as previsões se concretizem, os fotojornalistas que sobreviverem aos cortes nas redações assumirão um papel diferenciado nos meios de comunicação, executando apenas matérias especiais e convivendo com registros do cotidiano executados por fotógrafos amadores.
A fotografia surgiu na primeira metade do século XIX, revolucionando as artes visuais. Sua evolução deve-se a astrônomos e físicos que observavam os eclipses solares por meio de câmeras obscuras, princípio básico da máquina fotográfica.
A câmera obscura tornou-se acessório básico também para pintores e desenhistas, inclusive para o gênio das artes plásticas Leonardo da Vinci (1452-1519), que fez uso dessa ferramenta e deixou dela uma descrição minuciosa em seu livro de notas sobre os espelhos, publicado muito depois de sua morte, em 1797. Antes dessa data, as observações feitas em 1558 pelo cientista napolitano Giovanni Baptista Della Porta (1541- 1615) também continham uma descrição detalhada da câmera obscura. A publicação do livro Magia Naturalis sive de Miraculis Rerum Naturalium impulsionou a utilização dessas câmeras, descrita por Della Porta como uma sala fechada para a luz com um orifício de um lado e uma parede pintada de branco à sua frente.
Com o passar dos tempos, a câmera obscura foi sendo reduzida de tamanho, de modo que artistas e pesquisadores pudessem carregá-la com facilidade por onde andassem.
Na virada do século XVII para o XVIII, as imagens feitas por meio de câmera obscura não resistiam à luz e ao tempo, desaparecendo logo após a revelação. Foram vários os pesquisadores que conseguiram gravar essas imagens, mas todos encontravam dificuldades em sua fixação.
Em 1816, o francês Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) dava os primeiros passos no caminho do registro de imagens por meio de câmera obscura. Pesquisando um material recoberto com betume da Judéia e em uma segunda etapa com sais de prata, ele conseguiria gravar imagens em 1827. Niépce batizou a descoberta de heliografia. Existem, porém, dúvidas de que Niépce tenha realmente se utilizado do nitrato ou cloreto de prata, uma vez que os documentos que comprovariam essa utilização não são esclarecedores. O professor Mário Guidi tenta entender os motivos:
?A falta de maiores e mais precisas informações sobre os trabalhos e pesquisas de Joseph Nicéphore Niépce se deve a uma característica, até certo ponto paranóica, de sua personalidade. Vivia suspeitando que todos quisessem lhe roubar o segredo de sua técnica de trabalho. Isto ficará claramente evidenciado na sua tardia sociedade com Daguerre. Também em 1828, quando vai à Inglaterra visitar o irmão Claude, fracassa uma possível apresentação perante a Royal Society. Neste encontro, intermediado por um certo Francis Bauer, Niépce deveria apresentar os trabalhos por ele batizados de heliografias. O evento não se realizou por ter Niépce deixado claro, de antemão, que não pretendia revelar seu segredo?.
No retorno da viagem à Inglaterra, Niépce conhece em Paris o pintor Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851), que trabalhava em um projeto semelhante ao seu, e acabou por associar-se a ele. Daguerre, ao perceber as limitações do betume da Judéia e dos métodos utilizados por seu sócio, decide prosseguir sozinho nas pesquisas com a prata halógena. Suas experiências consistiam em expor, na câmera obscura, placas de cobre recobertas com prata polida e sensibilizadas com o vapor de iodo, formando uma capa de iodeto de prata sensível à luz.
A pesquisa de Daguerre acabou sendo reconhecida pela Academia de Ciências de Paris, em 19 de agosto de 1839, sendo batizada como daguerreótipo, um método de gravar imagens por meio de câmera obscura. O fato provocou protestos por parte do inglês Willian Fox Talbot (1800-1877). Ele gravava igualmente imagens com câmera obscura, utilizando um processo parecido ao de Daguerre e Niépce, que passou para a história com os nomes de talbotipia ou calótipo. Hippolyte Bayrd (1801-1887) também reivindicou a descoberta, tendo sido responsável pela primeira montagem fotográfica da história, em 1840, quando simulou a própria morte em protesto pelo não-reconhecimento de sua invenção pelas autoridades francesas.
No Brasil, Antoine Hercule Romuald Florence (1804-1879), um francês radicado na Vila de São Carlos1, pesquisou, entre 1832 e 1839, uma forma econômica de impressão, sensibilizada pela luz do sol e sais de prata, método parecido com os que Niépce, Daguerre e Talbot utilizaram na Europa. Ele chegou próximo a uma descoberta batizada de photographie, seis anos antes que seu compatriota Daguerre em Paris.
Hércules Florence, como ficou conhecido no Brasil, obteve ajuda do botânico Joaquim Corrêa de Melo, mas nunca teve suas pesquisas reconhecidas. Inclusive, a palavra fotografia era utilizada por Florence e Corrêa de Melo desde 1832, antes que na Europa, onde, a partir de 1840, o astrônomo John Herschel passou a utilizá-la para unificar as diversas descobertas envolvendo a câmera obscura, no período entre 1827 e 1839.
Com o anúncio da gravação da imagem por Daguerre na Europa, logo se instituiu uma grande polêmica entre os pintores. Eles acreditavam que o novo método acabaria com a pintura, não admitindo, portanto, que a fotografia pudesse ser reconhecida como arte, uma vez que era produzida com auxílio físico e químico.
Com o anúncio da gravação da imagem por Daguerre na Europa, logo se instituiu uma grande polêmica entre os pintores. Eles acreditavam que o novo método acabaria com a pintura, não admitindo, portanto, que a fotografia pudesse ser reconhecida como arte, uma vez que era produzida com auxílio físico e químico.
A prematura discussão com representantes das artes plásticas fez com que pintores resistentes à utilização da fotografia procurassem por uma nova forma de expressão, dando origem ao movimento impressionista, que, aos poucos, encontrou rumo e reconhecimento na história das artes visuais. A discussão retorna, de algum modo, nos dias de hoje, envolvendo duas formas distintas de captação de imagens, a fotografia analógica e a fotografia digital.
Desde que foi descoberta, a fotografia analógica pouco evoluiu. Permaneceu com seus princípios ópticos e formatos por mais de 100 anos, reinando absoluta na história, como se o processo descoberto pelos pioneiros fosse, de fato, eterno.
No século XX, a fotografia passou a ser utilizada em grande escala pela imprensa mundial, em amplas reportagens fotográficas, fazendo aumentar naturalmente a exigência de profissionais que trabalhavam com fotojornalismo. A cobrança por equipamentos mais leves e ágeis despertou nos fabricantes o interesse em investir no setor, provocando uma renovação no mercado e chamando a atenção do grande público para as novidades tecnológicas e as belas imagens que surgiam no dia-a-dia da imprensa mundial.
A profissão de fotógrafo passou a ser cobiçada em todo o mundo, revelando profissionais altamente qualificados e, até, adorados em vários países, como Brett Weston, Cartier Bresson, Edward Weston, Robert Capa, Robert Frank, Alexander Ródchenko, Pierre Verger e Jean Manzon, entre outros. Esses profissionais formaram uma geração de ouro do fotojornalismo mundial, mostrando muita criatividade e ousadia em suas fotografias, fazendo delas verdadeiras obras de artes, admiradas por milhões de pessoas.
Com o surgimento da fotografia digital, no final dos anos 1980, todo o glamour conquistado pela fotografia analógica tende a entrar em declínio. A evolução dos equipamentos digitais aponta para o aniquilamento gradual da fotografia analógica nos próximos anos. Os grandes fabricantes já anunciaram o fechamento de fábricas e a não-confecção de materiais para o amador da fotografia analógica, acabando com o fascínio exercido durante décadas pelos laboratórios fotográficos de revelação e ampliação e transformando a prática tão comum da fotografia analógica em coisa primitiva. Na opinião dos defensores da fotografia digital, a velha forma de captação de imagens sobreviverá apenas na memória de veteranos fotógrafos incapazes de se adaptar às novas tecnologias.
A fotografia digital provocou uma ruptura entres os profissionais da imagem, principalmente fotojornalistas, dando origem a três categorias de profissionais no mercado de fotografia: a primeira é formada por veteranos fotógrafos, a segunda, por fotógrafos que vêm acompanhando a morte gradativa da fotografia analógica, e a terceira, por fotógrafos mais jovens, que assistem ao nascimento da fotografia digital.
A primeira categoria, a dos fotógrafos veteranos, conhecidos como geração analógica, é formada por profissionais que sempre se dedicaram à velha forma de captação de imagens. Eles encontram grande dificuldade de se adaptar às novas tecnologias. Computadores e programas para tratamento de imagens não fazem parte do vocabulário desses profissionais, que, aos poucos, vão se vendo forçados a uma aposentadoria precoce.
Essa geração levanta questões relevantes em defesa da fotografia tradicional e, consequentemente, coloca a fotografia digital em plano inferior. As alegações mais frequentes são que a fotografia digital não inspira confiança e que as imagens armazenadas em disco virtual podem ser apagadas com facilidade. A velha guarda? vê problemas éticos na manipulação e tratamento das imagens, que aumentam as possibilidades de fraudes e de danos aos fotografados, ferindo o código de ética da categoria e colocando em risco uma credibilidade conquistada, principalmente, pelo fotojornalismo.
O que esses profissionais dizem em relação à manipulação de imagens é importante e deve ser levado em consideração. A fotografia digital é um processo recente e sua manipulação merece regulamentação específica, de modo a evitar transtornos causados por profissionais inescrupulosos que acreditam que tudo é possível para se obter uma notícia em primeira mão. O professor português Jorge Pedro Sousa analisa a tecnologia revolucionária da fotografia digital em relação rapidez no envio de fotos, mas faz comentários interessantes sobre a ética desse processo, no livro Uma história crítica do fotojornalismo ocidental:
[...] Hoje, a tecnologia já permite a ligação direta das máquinas aos computadores e/ou a interfaces próprios, como modens que permitem o envio rápido das fotos. [...] Porém, alguns casos dos finais dos anos oitenta e princípios dos noventa vieram renovar o debate sobre as fotos e a sua capacidade de referenciar a realidade, evidenciando, igualmente, que as novas tecnologias vão provavelmente destruir de uma vez por todas a crença de que uma imagem fotográfica é um reflexo natural da realidade. As ?culpas? recaem sobre a fotografia digital.
Como meio virtual em que a imagem é transformada em milhares de pulsos eletrônicos, a fotografia digital pode ser armazenada em computadores, disquetes, CD-Rom ou cartões de memórias e, dessa forma, ser transmitida por satélite logo após sua produção, com a ajuda de um computador portátil e telefone. Uma rapidez de que a fotografia analógica não dispõe.
No meio desse conflito de idéias encontramos a segunda geração de profissionais do fotojornalismo, que participa ativamente da transição da fotografia analógica para a digital. Essa geração aprendeu por necessidade a conviver com a fotografia digital. São profissionais que se preparam para sobreviver no mercado fotográfico atual, pois dominam a fotografia analógica e buscam conhecimentos na área digital. Conhecimentos que se transformam muitas vezes em verdadeira obsessão, uma vez que esses profissionais têm plena consciência da importância e necessidade do mercado e sabem que somente permanecerão na profissão as pessoas qualificadas.
A terceira e última categoria é a dos profissionais da chamada geração digital, formada por jovens fotógrafos que acreditam que o equipamento analógico é coisa do passado. Essa geração tem como características o consumismo e o cultivo do descartável, comuns aos dias de hoje. A preocupação em conhecer as técnicas, mesmo que antigas, não faz parte do vocabulário dessa geração de fotojornalistas, que prefere os termos ?deletar?, ?bits?, ?dpi? etc., próprios da linguagem da fotografia digital.
Além de encontrar resistência por parte da geração analógica (o primeiro grupo), a geração digital acaba também enfrentando a resistência dos profissionais que fazem a transição da fotografia analógica para a digital (o segundo grupo). Os fotógrafos da era digital são acusados de falta de domínio dos métodos e técnicas utilizados na fotografia, como luz, filtros, velocidade do obturador, entre outros. Os equipamentos digitais são em sua grande maioria automatizados, não permitindo ao profissional o controle manual de suas ações. Ainda que existam equipamentos com controle manual, as escolas formadoras desses profissionais optam por adquirir equipamentos automatizados, economicamente mais viáveis.
A geração digital é facilmente reconhecida em eventos ou coberturas jornalísticas por não utilizar o visor da câmera para fotografar, optando por visualizar a imagem por meio do cristal líquido atrás da máquina. Esses profissionais têm a seu favor a tecnologia, o domínio e manuseio de computadores, programas, scanner e outros tantos recursos oriundos do avanço digital, que permitem a transmissão e tratamento da imagem do próprio local do evento, agilizando dessa forma as coberturas jornalísticas. Além disso, a visualização imediata da imagem captada provoca um outro fenômeno típico da fotografia digital, que é a pré-edição do material.
Para que tenhamos consciência do problema que a pré-edição pode acarretar, basta relembrar um fato ocorrido em um grande jornal na cidade de São Paulo: acostumado a fazer apenas fotografias digitais, um repórter fotográfico, ao sair com um equipamento analógico para fazer um retrato que ilustraria uma coluna, acabou produzindo oito filmes de 36 poses. Foram ao todo 288 fotogramas para uma única imagem publicada. Não conseguindo visualizar a imagem produzida antes do processamento químico da película, o repórter fotográfico, inseguro, opta automaticamente pela quantidade, como representante legítimo do mundo da foto digital.
Todos esses questionamentos, com suas verdades e mentiras, devem levar à reflexão e ao debate. A má utilização da fotografia nos dias de hoje acarretará, sem dúvida, enormes prejuízos para a documentação e as pesquisas futuras, comprometendo a memória e a ética da fotografia. O segmento fotográfico em geral e o fotojornalismo em particular se vêem hoje diante de uma oportunidade muito grande de refletir sobre o momento histórico que a fotografia atravessa.
Há problemas de ordem ética e estética envolvendo a fotografia analógica e digital, há argumentos graves e preocupantes para todos os que buscam a ética e a verdade da fotografia jornalística. Acontecimentos recentes mostram o sério problema da manipulação e fabricação de imagens, de modo a torná-las mais realistas e sedutoras, sem ética, sem escrúpulos. Como no caso da imagem mostrando um fuzil apontado para a cabeça de crianças iraquianas, resultado de manipulação.
A edição sempre ocorreu com a fotografia, inclusive a montagem. Com o avanço tecnológico, porém, essa prática torna-se mais fácil e comum, podendo interferir na credibilidade, destruindo a memória do fotojornalismo. Sempre é bom lembrar que o material fotografado, quando utilizado numa publicação, passa por mais uma edição, feita pelo editor de fotografia, que selecionará as imagens que julgar em maior sintonia com a linha editorial do veículo. Muitos desses editores selecionam poucas fotografias para compor o banco de imagens de seus arquivos, apagando as excedentes.
Esse excesso de edição das imagens, que começa com o fotógrafo em campo e finaliza no editor, preocupa a todos aqueles que usam a fotografia como ferramenta de pesquisa e documentação. Ocorre que as imagens digitais podem ser facilmente apagadas da memória do computador, tanto por um vírus quanto acidentalmente, com um simples comando errado no teclado. No caso da fotografia analógica, a destruição somente se dá por meio de alguma catástrofe, como um incêndio, por exemplo, nos arquivos.
Com todo esse avanço tecnológico, faz-se necessário discutir o papel do fotojornalista a partir do surgimento da fotografia digital. O acesso a esse tipo de equipamento se torna cada dia mais comum em aparelhos celulares e agendas de bolso com câmeras fotográficas acopladas. Basta, nesse caso, uma resolução de imagem compatível com as publicações para que qualquer cidadão possa veicular seu material em noticiário escrito e televisivo, provocando uma verdadeira revolução no jornalismo. Casos assim ocorreram recentemente no atentado terrorista de Madri e no terremoto na Ásia.
Não se pode descartar o digital. Mas também não se pode simplesmente abandonar o analógico, sem qualquer preocupação com o passado, o presente e o futuro. Afinal, o que seria da memória dos séculos XIX e XX se não fossem as fotografias produzidas em negativos, que armazenam até hoje imagens importantes de nossa história?
Talvez a melhor solução, neste momento, seja a troca de experiências entre profissionais do analógico e do digital para o fortalecimento da fotografia e do jornalismo.
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Fonte: www.bocc.uff.br