Violência e projeto nacional
Ninguém se sente seguro num país em que as pessoas são agredidas, humilhadas e desrespeitadas de todos os modos
GILBERTO VELHO
No ano das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil não há mais como disfarçar ou tentar diminuir a gravidade do fenômeno da violência na sociedade brasileira contemporânea. Uma vez ou outra, ainda aparece alguém declarando que violência existe no mundo todo, acionando dados sobre Washington D.C. ou alguma outra grande cidade no exterior. É claro que a violência aparece em muitos países e cidades sob variadas formas. Existem guerras, conflitos étnico-religiosos e banditismo. Nem sempre as fronteiras entre essas manifestações são claras, havendo misturas de todos os tipos, como na Colômbia, para ficar por perto de nós. Mas no Brasil, sem guerra civil explícita, atingimos, especialmente nas grandes cidades, com repercussões para quase todo o território nacional, uma situação onde a criminalidade campeia com seu séquito sinistro de assassinatos, seqüestros, assaltos, roubos e tráfico de drogas e armas.
Ninguém mais sente-se seguro, nem empresas nem indivíduos. Senadores da República, ex-governadores, membros da Academia Brasileira de Letras, diplomatas, empresários e suas famílias engordam as listas de vítimas de roubo, assalto, seqüestro e, eventualmente, assassinato. Elites e classes médias têm suas casas assaltadas. O que dizer das camadas populares, secularmente vitimizadas? Nas favelas, nos conjuntos habitacionais, nas periferias, os criminosos fazem, praticamente, o que querem, seviciando, estuprando e matando. Não há lugar protegido. Escolas, igrejas, templos, quartéis e delegacias são freqüentemente invadidos. As pessoas são humilhadas e desrespeitadas de todos os modos. O poder público tem se mostrado, no mínimo, incapaz de enfrentar essa catástrofe. Mas, pior do que isso, é constatar que toda essa violência só pode existir com a conivência, cumplicidade e ativa participação de grupos da polícia, membros do legislativo de todos os níveis, setores do aparelho burocrático civil e até autoridades do Judiciário.
A corrupção está indissoluvelmente associada à violência, uma aumentando a outra, sendo faces da mesma moeda. Esse processo não é de hoje mas vem se acelerando nas últimas décadas, atingindo proporções assustadoras que põem em cheque o próprio Estado nacional, na medida em que o poder público, não só não consegue controlar a criminalidade, mas aparece contaminado por esta. Sem dúvida, a pobreza, a miséria e a iniqüidade social constituem campo altamente propício para a disseminação da violência. No entanto, creio que não tem sido dada a devida atenção para a dimensão moral, ética e do sistema de valores como um todo, para a compreensão desse fenômeno.
A perda de credibilidade e de referências simbólicas significativas destrói expectativas elementares de convivência social. Filósofos, pensadores e cientistas sociais das mais variadas orientações mostram como a sociedade só é viável através de um mínimo de valores e padrões compartilhados. Por exemplo, o ataque físico a pessoas idosas já se tornou rotina no cotidiano das grandes cidades brasileiras. Em outros países, com alto índice de pobreza, como a Índia, essas cenas são inimagináveis. Esse tipo de evento era, também, até pouco tempo atrás, muito raro no próprio Brasil, motivo de escândalo e indignação. Hoje, banalizou-se assim como outras notícias de crueldade contra mulheres, crianças e pessoas doentes.
Trata-se, claramente, de uma crise ético-moral. A família, a escola e a religião não têm sido capazes, por sua vez, de reagir a essa deteriorização de valores. Sem dúvida, existem áreas e grupos sociais que preservam e se preocupam com essas questões. Certamente, a maioria das pessoas não é violenta ou corrupta. No entanto, o clima geral de impunidade incentiva a utilização de recursos e estratégias criminosas. A mídia, fundamental numa sociedade democrática, denuncia e divulga o estado de coisas, tornando públicas, pelo menos, parte da atividade criminosa. Mas, em poucos casos, existe a percepção de que a denúncia tem conseqüências, aumentando a sensação de injustiça e impunidade que é, talvez, a principal causa de violência. Hospitais funcionam precariamente, o transporte público é deficiente, os salários baixos e ainda, diariamente, novos escândalos aparecem. Enfatize-se que a solução não é a censura, como gostariam alguns.
Na televisão, assiste-se ao espetáculo de poderosos senadores desmoralizando-se e ao Poder Legislativo. Prefeituras e governos de estado são acusados de corrupção e conivência com o crime organizado. Um presidente da República é afastado por corrupção mas as investigações não têm continuidade, não sendo apurada a real extensão e profundidade do saque à nação, conduzido por ele e sua gangue. Assim, todo um importante movimento social é frustrado. Verbas são desviadas, obras superfaturadas e por aí vai, numa sucessão rápida e ininterrupta de fatos que agravam o quadro de desapontamento, às vezes indiferença e, muitas vezes, revolta.
O que esperar diante desses exemplos de improbidade? No mínimo, gera-se uma falta de confiança nos quadros dirigentes. Não poucos considerarão normais e aceitáveis vários tipos de transgressão e, mesmo, crimes diante do que aparece na mídia e do que vivem no cotidiano. Outros poderão reforçar sua posição de afastamento e desprezo pela esfera pública. De qualquer forma, instaura-se um clima de salve-se quem puder, onde cada vez menos indivíduos e grupos poderão manter identidades estáveis baseadas em atitudes e comportamentos pautados pela ética religiosa ou laica.
Desenvolvem-se, inevitavelmente, soluções do tipo justiça pelas próprias mãos, que aumentam ainda mais a violência e a insegurança. Policiais, bandidos, justiceiros e seguranças, travam batalhas diárias matando e pondo em risco a segurança de toda a população. O fenômeno das balas perdidas, expressão desses conflitos, é difícil de explicar para pessoas que não vivem nas cidades brasileiras. O fato de qualquer pessoa em qualquer de seus bairros estar exposta a esse tipo de perigo ilustra, de modo dramático, a intensidade da crise.
Como construir e sustentar um projeto nacional nessas circunstâncias? A sociedade civil, por si só, é insuficientemente organizada para enfrentar esses desafios e criar alternativas legítimas para o enfrentamento da violência. Só o Estado, reformado e renovado, incluindo o Legislativo e o Judiciário, pode dispor de meios e recursos, articulado à opinião pública, para reverter essa ameaça de colapso. Estou falando, bem entendido, de regime democrático e não de ditaduras salvacionistas.
Sem o apoio contínuo e vigilante da sociedade civil, o Estado corre o risco de hipertrofiar-se num autoritarismo esterilizante, como em passado recente. Efetivamente, as práticas de regime militar tiveram papel significativo no desenvolvimento de uma cultura da violência, com invasões de domicílio, tortura e assassinato. Só governos democráticos legitimados pela sociedade civil e voltados para os direitos humanos terão alguma possibilidade de exercer com sucesso o poder e a força contra a criminalidade.
Essa ação deve ser viabilizada através de instrumentos legais adequados que lhe garantam continuidade e eficácia, sem recuos e acomodações. Qualquer que seja a sua posição no espectro ideológico, todos os indivíduos e categorias sociais defrontam-se, no Brasil, com a ameaça da violência. Hoje um projeto capaz de mobilizar a nação passa, inevitavelmente, pelo estabelecimento de uma política efetiva de segurança pública dentro da ordem democrática. Só assim poderemos implementar e consolidar nossa precária cidadania, condição básica para o futuro da nação brasileira.
Gilberto Velho é antropólogo
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