O dia-a-dia numa caravela
História do Brasil e do Mundo

O dia-a-dia numa caravela



Ratos e baratas eram caçados para comer em embarcações lotadas, onde o espaço era exíguo e a violência reinava, sob forma de estupros, castigos, rebeliões e exploração de mão-de-obra infantil
Fábio Pestana Ramos

O cotidiano a bordo das caravelas não era nada fácil, na verdade hoje seria considerado insuportável. Em meio a um ambiente conturbado, repleto de privações, a primeira grande dificuldade colocada diante dos navegantes era o espaço disponível por pessoa a bordo. Na ida para o Brasil, a necessidade de transportar passageiros - em geral prostitutas, degredados e víveres - deixava pouco espaço. Na volta ao Reino, principalmente depois do sucesso dos engenhos instalados em Pernambuco, a prioridade era o transporte de açúcar, sendo relegados a segundo plano até mesmo os alimentos e a água destinada à jornada de volta a Portugal, causa de inúmeras mortes por inanição a bordo.

Em média, cada tripulante ou passageiro tinha disponível a bordo 50 centímetros quadrados, embora oficiais e alguns elementos da alta nobreza tivessem sempre direito a um espaço extra. O capitão do navio, por exemplo, ficava numa câmara (modo como se denominavam os camarotes) de 2,2 metros quadrados. Já os marujos e passageiros comuns se amontoavam na mesma câmara, dormindo em catres - camas de viagem de madeira - sobrepostos, formando três ou quatro pavimentos, tendo direito somente a um baú, alojado abaixo do catre mais inferior, para guardar seus trecos.

Os grumetes compunham o grosso da tripulação. Geralmente eram crianças entre 7 e 16 anos que serviam como aprendizes de marinheiros, alistadas compulsoriamente por seus próprios pais, que viam na vida no mar uma forma de lucrarem com seus rebentos - já que os pais ficavam com o soldo dos filhos - e ao mesmo tempo uma forma de livrarem-se de uma boca a mais para alimentar. Grumetes não tinham direito nem ao menos a um catre: dormiam todos amontoados no convés, a céu aberto, e muitos vinham a falecer de insolação ou pneumonia.

Alojados em embarcações onde a superlotação era uma constante, tripulantes e passageiros não dispunham de muita privacidade, formando um universo muito peculiar da vida no mar. Os hábitos de higiene eram precários, banhos eram impossíveis, já que toda a água disponível era reservada a matar a sede e cozer os alimentos; proliferavam pelo corpo os insetos parasitas, tais como pulgas, percevejos e piolhos. Para piorar a situação, confinados a um ridículo espaço, os passageiros precisavam conter sua repugnância diante daqueles que satisfaziam suas necessidades corporais, enquanto outros, sem qualquer decoro, arrotavam, vomitavam, soltavam ventos, escarrando próximo aos que tomavam sua refeição.

Os mais ricos valiam-se de um penico para aliviar-se, e seu conteúdo era depois jogado ao mar por um criado. Os outros, tanto homens como mulheres, tinham que ir até a borda do navio e, aos olhos de todos, debruçar-se no costado da embarcação, com grande risco de cair ao mar, e fazer tudo ali mesmo.

O mau cheiro se acumulava, tornando-se em pouco tempo insuportável, ao que muitos vinham adoecer do estômago com enjôo, sendo tratados por barbeiros - uma vez que médicos ou cirurgiões a bordo eram raridade - através de sangrias, cura para todo e qualquer mal. Isso fazia com que uma simples indisposição se agravasse tornando-se anemia, levando na maior parte dos casos o doente à morte.

Para além das indisposições, a inanição era sempre uma constante, embora os provedores da Coroa fizessem embarcar bacalhau e carne salgada, lentilha, alho, cebola, e vinagre. A dieta diária de bordo da grande maioria era composta apenas por uma ou duas porções de biscoito - sempre bolorento e todo ruído pelas baratas - três canadas de vinho quase transformado em vinagre, e uma ou duas canadas de água, geralmente fétida e contaminada pelos mais diversos microorganismos.

Nestas condições, não é de se estranhar, como narrou Pero Vaz de Caminha, que durante o primeiro contato oficial entre portugueses e ameríndios, os nativos tenham repudiado todos os alimentos oferecidos pelos lusos, especialmente a água, para o espanto dos mareantes portugueses.

Pelo fato de que os armazéns de Lisboa nunca abasteciam as caravelas com a quantidade ideal de víveres, sendo praxe, por exemplo, fornecer alimentos para apenas quatro meses em uma viagem que se sabia que duraria pelo menos sete meses, formava-se a bordo um mercado negro controlado pelos oficiais mais graduados. Excetuando-se o biscoito, o vinho e a água de regra, todos os outros mantimentos, inclusive aqueles embarcados para socorro dos doentes - tal como uva passas e laranjas - eram vendidos àqueles que pagassem mais, forçando os mais pobres a recorrer à caça de ratos e baratas que infestavam a embarcação como única forma de sobreviver. Em algumas embarcações chegou-se ao extremo de os mais desesperados praticarem o canibalismo com os companheiros mortos.

Doenças como o escorbuto, chamado na época de mau das gengivas - justamente por fazer apodrecer as gengivas e cair os dentes, causado pela falta de vitamina C -, eram constantes. Os mais ricos tinham a possibilidade de comprar laranjas, evitando a doença; os pobres que se sujeitavam a consumir ratos sem o saberem também evitavam o escorbuto, pois a carne do rato é rica em vitamina C, sendo este o único animal capaz de sintetizar esta vitamina a partir de outros alimentos. Contudo, aqueles que não tinham recursos para aderir ao mercado negro de bordo, nem tão pouco conseguiam vencer a repugnância diante do consumo de animais vis, tinham seus dias contados.

Não é de se estranhar que em um ambiente de permanente luta pela sobrevivência, a tensão a bordo se tornasse constante. Os marinheiros se insubordinavam com grande freqüência, ao passo que os oficiais exerciam um controle apertado sobre o dia-a-dia destes profissionais, sendo obrigados por decreto régio a andarem armados com espada, adaga e pelo menos duas armas de fogo para fazerem valer sua autoridade.

Os oficiais das caravelas, com o auxílio dos religiosos embarcados, criavam distrações diárias a fim de preencher o tempo livre dos marujos e aliviar a tensão a bordo; assim eram realizadas procissões e rezadas missas nos dias santos, bem como, de vez em quando, a vida dos santos era representada em uma espécie de teatro de bordo que se fazia improvisar, visando fornecer o exemplo de comportamento que se esperava dos marinheiros.

Não obstante, a distração predileta dos homens do mar era o jogo de cartas a dinheiro, que era condenado pela maior parte dos religiosos presentes, mas, apesar de proibido pela Coroa, era tolerado pelos oficiais que faziam vista grossa. Todavia, outro lazer cobiçado pelos marujos era a caça às poucas mulheres embarcadas, quando em geral a proporção entre homens e mulheres a bordo era de uma mulher para cada 50 homens. O medo de um ataque pirata, as confidências trocadas e as privações faziam com que os marinheiros formassem uma comunidade bastante coesa, onde quase tudo era dividido entre os demais.

Grupos de marinheiros mal intencionados ficavam dias à espreita da oportunidade ideal, e quando ela surgia, estupravam coletivamente a mulher visada, o que garantia impunidade e anonimato. À vítima só restava se calar, pois caso denunciasse os agressores, solteira, seria depreciada no mercado matrimonial. Casada, seria repudiada pelo marido, e em qualquer dos casos, com quase toda a certeza, seria confinada pelos magistrados em um bordel, como era prática corrente na época. Como se pode ver, diante do cotidiano das caravelas quinhentistas, cruzar o Atlântico era muito mais penoso do que se imagina.

Fábio Pestana Ramos é doutorando em História Social da USP e pesquisador da Fapesp

JB 500 anos




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