Lampião, em foto de Lauro Cabral de Oliveira. Juazeiro, Ceará, março de 1926. foto: Coleção Frederico Pernambucano de Mello, Recife
Ninguém sabe ao certo até onde foi a surpresa do então governador de Pernambuco, Júlio de Melo, naqueles primeiros dias de dezembro de 1926, quando recebeu das mãos do chefe de polícia Antônio Guimarães uma desaforada carta de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, propondo nada menos que a divisão do estado em dois e a indicação dele - Lampião - como "governador do sertão", título que os jornais locais estavam lhe conferindo, depois de muitas estripulias cometidas por seu bando.
Conhece-se apenas a reação do dirigente do estado, registrada pelos historiadores Frederico Pernambucano de Mello e Frederico Barbosa Maciel: "A proposta de Lampião terá uma resposta à altura de seu atrevimento e ousadia". E fica mais fácil entender esse atrevimento quando se recorda que na época Lampião se sentia excepcionalmente fortalecido por ter acabado de derrotar, em 27 de novembro, uma supervolante de 300 soldados, comandada por seus piores inimigos. Isso acontecera na Batalha da Serra Grande, a mais violenta da história do cangaço.
No dia 12 de dezembro, Júlio de Melo seria sucedido por Estácio Coimbra, que não se deu por rogado diante do desafio. Colocou na chefia da polícia um jovem advogado, filho de uma família aristocrática da Zona da Mata, Eurico de Souza Leão, que se encarregaria de dar a resposta oficial ao bandoleiro. Leão tomou, então, medidas que fizeram com que, em um prazo de um ano e meio, Lampião estivesse totalmente derrotado em seu estado natal.
Para começar, trocou os soldados do litoral que combatiam os cangaceiros - chamados pejorativamente de "pés-de-barro" - por sertanejos de hábitos e resistência física exatamente iguais às dos bandidos. Depois, começou a prender e processar os coiteiros (protetores de cangaceiros), quebrando a tradicional complacência e até mesmo cumplicidade dos poderosos chefes do interior para com Lampião e seus seguidores. Por fim, promoveu convênios com os estados vizinhos para enfrentar os bandidos.
Na carta, repassada a Guimarães pelo representante comercial da multinacional Standard Oil, Pedro Paulo Mineiro Dias, que havia sido refém do bando antes da Batalha da Serra Grande e solto sem pagamento de resgate, o bandoleiro propunha a partilha do estado de Pernambuco, de forma que ele, Lampião, governasse o trecho de Rio Branco (atual Arcoverde) até o sertão e o governador, de Rio Branco até "onde bate a pancada do mar", ou seja, Recife. Em Rio Branco terminava, na época, a linha férrea da Great Western and Brazil Railway.
Na curiosa "proposta", Lampião e o governo do estado nordestino viveriam em harmonia, cada um em seu feudo, como se o Pernambuco do começo do século XX fosse a Europa da Idade Média. Aquela não seria a primeira nem a última vez que Lampião faria um desafio aberto ao governo de um dos sete estados nordestinos pelos quais circulou, mas dessa vez a ameaça ganhava maior importância porque o cangaceiro - que em março daquele ano havia sido armado e municiado pelo governo do presidente Artur Bernardes para enfrentar a Coluna Prestes - vivia o apogeu do seu domínio sobre a região e seus habitantes.
Patente de capitão
A passagem da Coluna Prestes pelo Nordeste, em 1925, fizera com que o deputado Floro Bartolomeu, médico baiano que era uma espécie de alter ego do Padre Cícero, propusesse ao governo federal a contratação de Lampião para enfrentá-la. O bandido receberia, então, em 4 de março de 1926, a patente de capitão dos chamados Batalhões Patrióticos, milícia irregular formada para combater os comunistas.
Assim, o mais moderno armamento, como rifles Winchester modelo 44 e pistolas Mauser e Parabellum, além de farta munição, foi repassado aos bandoleiros, que, no entanto, somente uma vez, entre as cidades de São Miguel e Alto de Areias, no Ceará, deram combate a patrulhas avançadas da coluna do Cavaleiro da Esperança, apelido dado pelo escritor Jorge Amado ao líder Luís Carlos Prestes. Bem armados e municiados, com excelentes cavalos, fardamento militar na cor azul e a carta-patente assinada pelo Padre Cícero, os bandidos encontravam-se em um momento muito favorável.
Coleção Frederico Pernambuco de Mello, Recife
Cartaz de 1930
Para completar, Lampião, extremamente vaidoso, era tratado nos jornais como "governador do sertão", deferência que somente Antônio Silvino, seu antecessor no cangaço, havia obtido. Dias antes de enviar a carta, ele havia saboreado o prazer de derrotar seus mais terríveis inimigos entre os quais Manuel Neto, o Mané Neto, Arlindo Rocha e Higino Belarmino, o Nego Higino, no combate da Serra Grande. Os policiais tinham ido à serra, a 25km de Vila Bela (atual Serra Talhada, em Pernambuco) na tentativa de resgatar o refém, Pedro Paulo Mineiro Dias, pela vida do qual os bandoleiros pediam 16 contos de réis.
Naquela ocasião, ao lado de uns 90 cangaceiros, o bandoleiro destroçou a supervolante. O sargento Mané Neto, que perseguiu o bandido durante toda a vida, perdeu parcialmente o movimento das pernas ao ser atingido durante a luta. Já o sargento Arlindo Rocha levou um disparo na boca que quase lhe destruiu a mandíbula, o que faria com que tivesse problemas de mastigação pelo resto da vida. O curioso é que ele havia dito, antes de enfrentar os bandidos, que naquele dia "ia comer bala", ao se recusar a parar a tropa para o rancho, por causa da pressa de encontrar os cangaceiros.
No total, pelo menos dez soldados morreram e 30 ficaram feridos no embate. Entre os bandidos, há notícias de somente alguns feridos. A razão da derrota é que os cangaceiros estavam postados no alto da serra, protegidos por pedras, enquanto os policiais avançavam de peito aberto. Aqueles tinham apenas o trabalho de escolher o alvo e atirar. Por muito tempo, a polícia, desmoralizada, manteve a versão de que Antônio Ferreira, um dos irmãos de Lampião, havia sido morto no confronto. Era uma forma de diminuir um pouco o impacto da derrota. Na verdade, Antônio seria morto em um acidente, em janeiro do ano seguinte, devido a um tiro disparado inadvertidamente por um cangaceiro chamado Luiz Pedro.
Na Batalha da Serra Grande, o tiroteio, que se iniciou por volta das 8h30, durou praticamente o dia inteiro e só acabou quando os cangaceiros cansaram-se de "matar macacos" e resolveram descer a serra para seguir em direção à fazenda de Ângelo Gomes, conhecido como Anjo da Gia. Depois de libertar Mineiro Dias, que lhe servira como uma espécie de secretário enquanto esteve preso, Lampião pediu a ele para escrever a carta, que ditou na máquina de escrever portátil do comerciante, e a levasse ao Recife, para entregá-la ao governador. Dentro de um envelope branco, tipo comercial, endereçado ao "Ex° governador de Pernambuco", a correspondência chegou às mãos do chefe de polícia.
Coleção Frederico pernambuco de Mello, Recife
O cangaceiro com a família, em foto de Lauro Cabral de Oliveira, 1926
Em 1938, pouco depois da morte de Lampião, Mineiro Dias contou, em entrevista ao jornal recifense A Noite, detalhes de sua participação no episódio. "Foi uma luta bonita, que durou o dia inteiro, e eu firme, embora assustado. A polícia retirou-se cerca das 17 horas, deixando alguns mortos e certa quantidade de munição esparsa pelo campo. É que a posição dos cangaceiros era ótima. Foi dessa vez que o então sargento Manuel Neto, lutando como um bravo, saiu ferido. Nessa noite, o harmônio [sanfona] tocou mais que em qualquer dia."
Para enfrentar adversários tão perigosos, o chefe de polícia de Estácio Coimbra mirou no ponto mais sensível para os cangaceiros: os coronéis do interior e simples cidadãos que os escondiam e lhes vendiam armas e munição em troca de proteção. Em pouco tempo, vários daqueles que forneciam armamento ao bando de Virgulino estavam na cadeia, como o coronel Ângelo Lima, o fazendeiro Ascênio Gomes e o comerciante Ascendino Gomes de Oliveira, todos sob acusação de ajudar os cangaceiros. Mesmo que os detidos não fossem os mais poderosos protetores dos bandoleiros, sua prisãoera um sinal de que algo mudava na região.
Homens duros
Em outra frente, Eurico de Souza Leão levou para a polícia sertanejos da própria região, o vale do rio Pajeú, de onde os bandidos eram originários, ampliando uma política iniciada no governo anterior. Agora, eram homens duros, acostumados a enfrentar a caatinga e suas dificuldades, que davam combate aos bandoleiros. Os resultados dessa mudança de estratégia não demoraram a aparecer. Lampião logo teria nos seus calcanhares homens como os nazarenos, naturais da cidade de Nazaré (hoje Carqueja, no Pernambuco), que se converteriam em seus piores inimigos.
Diante deles, o próprio líder cangaceiro tremeria. Mané Neto, Davi Jurubeba, Euclides Flor e Odilon Flor, entre outros, nunca lhe dariam descanso. Quando Lampião morreu, estes adversários choraram de raiva. É que, segundo Jurubeba, o bandido que eles perseguiram durante toda a vida acabou morto por João Bezerra, que não era um nazareno, mas sim um pernambucano, chefe de uma volante alagoana, por quem os nazarenos não nutriam grande simpatia. Aliás, Bezerra pediu e obteve, um dia antes do confronto, a metralhadora da volante baiana de Odilon Flor, para, afirmou, prender alguns bandidos. Flor jamais imaginou que o inimigo contra o qual iriam lutar fosse o próprio rei do cangaço. Se soubesse, estaria na linha de frente.
A carta desafio
Abafilm e Sociedade do Cangaço, foto B. Abrahão/divulgação exposição
José Rufino e os membros da volante do estado da Bahia sob seu comando, em foto de Benjamin Abrahão, 1936
A seguir, a transcrição da carta enviada por Lampião:
Senhor governador de Pernambuco,
Suas saudações com os seus.
Faço-lhe esta devido a uma proposta que desejo fazer ao senhor para evitar guerra no sertão e acabar de vez com as brigas. (...) Se o senhor estiver no acordo, devemos dividir os nossos territórios. Eu que sou capitão Virgulino Ferreira Lampião, Governador do Sertão, fico governando esta zona de cá por inteiro, até as pontas dos trilhos em Rio Branco. E o senhor, do seu lado, governa do Rio Branco até a pancada do mar no Recife. Isso mesmo. Fica cada um no que é seu. Pois então é o que convém. Assim ficamos os dois em paz, nem o senhor manda seus macacos me emboscar, nem eu com os meninos atravessamos a extrema, cada um governando o que é seu sem haver questão. Faço esta por amor à Paz que eu tenho e para que não se diga que sou bandido, que não mereço. Aguardo a sua resposta e confio sempre.
Capitão Virgulino Ferreira Lampião, Governador do Sertão
Fonte: livro Lampião, seu tempo, seu reinado - vol. III, de Frederico Bezerra Maciel, Editora Vozes. O arquivo do governo de Pernambuco sobre Júlio de Melo está indisponível, e a versão acima foi compilada por Maciel com base nas entrevistas de Pedro Paulo Mineiro Dias à imprensa pernambucana.
Saiba mais
Lampião, senhor do sertão, de Élise Grunspan-Jasmin, Edusp. Quem foi Lampião, de Frederico Pernambucano de Mello. Stahli/Fundação Joaquim Nabuco.
Guerreiros do sol, de Frederico Pernambucano de Mello, ed. A Girafa
De Virgolino a Lampião, de Antônio Amaury e Vera Ferreira, Idéia Editorial
Exposição "Cangaceiros". O rei do cangaço e seu bando estão em exposição no MIS-SP até 4 de março de 2007. São 86 imagens, cedidas por colecionadores do cangaço, que mostram a evolução e a originalidade de seus membros. De terça a domingo, das 10 h às 18 h. Av. Europa, 158, São Paulo, SP. Tel.: (11) 3062-9197. Ingresso: R$ 3,00
Moacir Assunção é jornalista, pós-graduado em ciências sociais e especializado em história militar. É autor de Os homens que mataram o facínora, a história dos inimigos de Lampião, Record.
Revista Historia Viva