História do Brasil e do Mundo
Na hora do parto: rezas, ervas e dor
Duzentos e setenta dias: desde sempre, hora do parto. Sinais? Pingos de sangue e as primeiras dores ? nos livros de médicos do século XVI ao XX, chamadas de ?puxos?. No interior, até bem pouco tempo atrás, era a ?perrengada?, o ?despacho? ou o ?rodiadô?, quando as mulheres davam à luz em casa. Era comum a gestante fechar-se no quarto, portas e janelas cerradas, somente avós, tias e vizinhas no recinto. Daí a pouco um choro anunciava a chegada de mais um membro da família. Atualmente, as cesarianas deram lugar aos partos normais. O número aumentou tanto que, no final dos anos 1990, o governo federal destinou a elas apenas 40% das verbas totais para partos em hospitais conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS).
E em casa? Pesquisas revelam que, até o final da década de 1990, técnicas, posições, rezas e beberagens usadas para facilitar o parto em domicílio não sofreram grandes mudanças. Banquinhos baixos, gamelas, o colo do marido ou de uma mulher forte, cordas passadas por portas e traves em que as gestantes se penduravam, parto de cócoras, de joelhos, de pé com as pernas abertas e fletidas ? enfim, desde a noite dos tempos, não houve variações nas posições em que se dá à luz.
Em áreas rurais, no lugar de remédios de farmácia, partes untadas com azeite de mamona ou gordura de animais e beberagens e banhos para diminuir a dor são ministrados tal como no passado. A erva-de-são-joão faz parte da receita analgésica desde tempos imemoriais. Arruda e picão, também. O chá de cordão-de-frade e agripalma, ainda hoje ingeridos, são analgésicos registrados desde o século XVIII. Patuás sob os colchões e orações a santa Margarida e a Nossa Senhora do Parto também existem desde o século XVI: ?Minha Santa Margarida, não estou prenhe nem parida, bote-me no rol de sua escolhida?! Vestir roupa masculina, para ?despachar mais rápido?, é tradição portuguesa que vigora desde o século XVIII: ?vestir a ceroula do marido e ao mesmo tempo o chapéu na cabeça da mulher às avessas? ? a autoridade masculina se faz presente para atenuar as dores da mulher; do homem depende o bem-estar dela.
Para expulsar a placenta? Ingerir três grãos de feijão. Depois, é preciso juntar a ?mãe do corpo?, ou seja, ?os ovários, o útero, tudo o que a mulher usa para reproduzir?, explica uma parteira. Parteiras no interior falam com a ?mãe do corpo?: ?Eu coloco o dedo no umbigo e aperto, quando ela não bate ou bate fraquinho é porque a mulher está doente?. O remédio é a massagem com óleo de andiroba, cânfora ou azeite.
Retrato fiel dos partos em casa, em pleno século XX, deixou-nos o grande escritor Autran Dourado. Em Ópera dos mortos, assim ele descreveu o de Rosalina, seu personagem principal:
?Ôi, agora veio forte demais da conta. Morde o pano, minha filha que você corta os beiços, a língua, se machuca. Isto, segura na cama, faz força. É bom já ir fazendo força para ver se ele sai. Passou, ainda não está na vez. Ela agora está fungando que nem um cachorrinho, aprendeu. De todo o jeito sai. Bem que ajuda. A pele esticadinha que nem um tambor. Rataplã. A gente pode ver ele se mexendo lá dentro. Ali, os pés estufados que nem um ovo na barriga, dando cutucão. Ele se vira e revira. Igual um bacorinho num saco [...] oi, agora a coisa vem vindo. Isto, força! Agarra na cama! Força! Lá vem ele apontando só falta um tiquinho, aguenta. Um tiquinho só e pronto. Veio! Amarelo, da mesma cor do barro tabatinga?.
Os saberes tradicionais ainda interessam à parturientes e aos médicos, e, hoje, especialistas reconhecem a contribuição das parteiras na defesa do parto normal, que arregimenta cada vez mais defensores.
Texto de Mary del Priore
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