REZADEIRAS ? UMA FÉ POPULAR (parte 1)
História do Brasil e do Mundo

REZADEIRAS ? UMA FÉ POPULAR (parte 1)



REZADEIRAS ? UMA FÉ POPULAR
Cristiane Maria Sales Pimentel



Há tempos que o homem vem percorrendo os mais diversos caminhos na busca por aplacar o sofrimento causado pelos males físicos, e, assim, afastar de si o espectro da morte. Em uma jornada longa e sinuosa, vários foram os elementos e agentes descobertos e criados, tanto integrantes de um saber denominado acadêmico, quanto de outro, calcado em reinterpretações e no empirismo. É justamente neste limiar entre essas duas concepções de conhecimento que encontramos uma das figuras atuantes que têm, no seu trabalho, o objetivo da cura e da
proteção dos flagelos: a rezadeira.
Embora encontremos pessoas do sexo masculino que desenvolvem trabalhos de reza, a atividade é eminentemente feminina. Daí o motivo de escolhermos o termo rezadeiras ao invés de rezadores. Sem cobrar pelos seus serviços e atuando, em sua maioria, em comunidades rurais e de baixa renda, mas com um atendimento a pacientes que extrapola essa esfera, as rezadeiras têm, na sua performance, nos famosos lambedores e garrafadas que oferecem, e, principalmente, nas rezas, o instrumento que, segundo elas, irá prover o fim das enfermidades.
Os gestos e rezas das rezadeiras, teoricamente, nunca são ensinados, mas ?revelados pelo divino?. As rezadeiras, ?escolhidas por Deus?, alcançam grande nível de credibilidade e confiança em meio às pessoas em que vivem, sendo também alçadas muitas vezes ao cargo de conselheira. Elas exercem o papel de uma ?psicóloga?, chegando até mesmo a promover reconciliações de casais em desavença. Segundo Moisés do Espírito Santo, a rezadeira, na sua função, pode assimilar-se à dos medicine-men de certos povos; elas podem acumular o exercício sagrado da recitação e da cura mágica com a prática da medicina popular, prodigalizar conselhos aos pais que não dominam os filhos ou às mulheres cujos maridos se desviam do domicílio conjugal, e
podem ainda ser eficazes na expulsão dos ?espíritos? (ESPÍRITO SANTOS, 1990, p.149).
Mais do que promover a cura e proteger dos males, as rezadeiras talham, cortam, tangem, ou, como afirma Moisés do Espírito Santo (1990), ?libertam? as pessoas do mal. Para tanto, elas utilizam as rezas: fórmulas que apelam, ora a santos católicos, a Deus ou a Jesus, ora a qualquer outro tipo de figura à qual é atribuído algum poder terapêutico, como, por exemplo, as estrelas. Há, ainda, fórmulas que, associadas a ritos, não fazem apelo declarado a nenhuma entidade.
As fórmulas utilizadas pelas rezadeiras em seus rituais apresentam basicamente dois caracteres: as orações de proteção e as de intuito curativo. São estas últimas que vislumbraremos em nosso
trabalho. Dentro do grupo terapêutico temos as rezas que destinam o caráter de cura diretamente à entidade religiosa, as que revelam a figura da rezadeira como intermediária para o fim dos males e as palavras ou expressões curativas sem apelo católico declarado.
Vamos começar pelas orações que destinam o caráter de cura diretamente à figura religiosa, representada em primazia pelo santo católico. Quais elementos poderíamos visualizar para situarmos uma reza nesse grupo? Bem, vejamos primeiramente um exemplo relatado por
Eduardo Campos de reza para cura de dor de dente:


São Nicodemo, sarai este dente!
Sarai este dente!
Sarai este dente!
Este dente!
Este dente!(CAMPOS, 1955, p. 178)



O que percebemos nesta oração? O clamor para o extermínio do mal é direcionado à entidade responsável pela cura, nesse caso, São Nicodemo. Apesar de ser uma súplica, a figura da pessoa que está efetuando a cura não aparece como intermediária ou agente terapêutico.
O uso da segunda pessoa é uma das características desse tipo de reza.
Outro exemplo dessas orações é a reza para expulsar a placenta retida após o parto:


Minha Santa Margarida,
Não estou prenhe nem parida!
Minha Santa Margarida,
Não estou prenhe nem parida!
Tirai esta carne podre
De dentro da minha barriga! (FERNANDES, 1938, p. 36)



Dentro do grupo de orações que evocam entidades católicas temos algumas que apresentam uma interessante peculiaridade: são uma espécie de narrativa de episódios de cura vividos por esses personagens, conforme verificamos na passagem a seguir:
Estava Santa Sofia detrás de uma pedra fria, chegou Santa Pelonha (Apolônia) e perguntou: ? Sofia com que se cura impinge, cobrêro brabo, ardor, fogo selvage, queimadura, sarna, comichão e queimo? ? Com água da fonte e ramo do monte, assim curou a sagrada e sempre Virge Maria,
Amém (CAMPOS, 1955, p. 164).
Como observa Moisés do Espírito Santo (1990), tais orações seguem uma fórmula que narra um episódio mítico pelo qual as divindades remediaram o mesmo mal. Portanto, a rezadeira, ao
providenciar a cura de seu paciente através da proferição de tais rezas, de certa forma revive esse episódio atemporal bem sucedido de cura, garantido, também, a eficácia de seu rito. Vejamos outro exemplo desse tipo de reza:
Jesus, e João iam, os dois, por um caminho. Jesus perguntou a João:

- João, tu viste alguma coisa em Roma?
- Eu vi zipra, queimadura, vermelhão no corpo.
- E que mais viste?
- O povo morrendo de zipra, queimadura e vermelhão no corpo.
- Então, volta João. Com os poderes de Deus, da Santa
Virgem, volta lá e atalha a zipra, queimadura ou vermelhão
no corpo (CAMPOS, 1955, p. 174).

E se a narrativa de cura mostra-se muito longa? Calcada basicamente em uma tradição oral, ou seja, repassadas entre familiares ou pessoas próximas simplesmente através da voz, ou seja, oralmente, as rezas, a fim de que sejam memorizadas com mais facilidade, algumas vezes apresentam-se como resumos de uma história maior. Vejamos o caso da reza para engasgo:

Homem bom,
Mulher ruim;
Esteira velha,
Chiqueiro de cabra (CAMPOS, 1955, p. 165).

Nesta oração, em princípio, nenhuma mensagem nos é transmitida. No entanto, por trás dessas palavras proferidas, no momento da expulsão dos males, há uma narrativa bem maior que a
sabedoria popular tratou de resumir a fim de facilitar a memorização da reza. A referida estória foi relatada por uma curandeira residente na cidade de Aracati, Ceará, a Eduardo Campos:
Andava Nosso Senhô no mundo, mais São Pedro. Um dia, chegaro numa casa, na horinha em que o dono dela ia botando o pé no estribo do cavalo, pra partir de viagem. Aí São Pedro olhou pro homem e lhe disse: ?Nós queremos pousada?. O homem que era bom, mais ia viajar, disse: ?Pode falar com a minha muié?. Mas a muié, quando o homem saiu, recebeu nosso Senhô e São Pedro muito mal. E quando São Pedro preguntou se tinha um lugarzinho pra comerem, ela disse que tinha um, lá no chiqueiro de cabra. Aí São Pedro preguntou se tinha qualquer coisa pra êles forrarem o chão pra dormirem.
Ela respondeu zangada que lá no chiqueiro tinha uma esteira velha. E foi nessa esteira velha e no chiqueiro de cabra que nosso Senhô e São Pedro dormiram. No outro dia Jesus e São Pedro agradeceram a hospedaje e viajaro. Quando o marido da muié ruim voltou, encontrou a muié engasgada com uma espinha. Aperreou-se procurando um remédio e num achou pra livrar a muié dêle daquele aperreio. Então se lembrou de pedir a ajuda daqueles viajantes que tinham dormido em sua casa. Montou no cavalo e correu até se encontrar com Nosso Senhô e São Pedro. Sabedor da história tôda, disse Nosso Senhô: ?Volta e diz pra tua muié: ?Homem bom, Mulher
ruim; Esteira Velha, Chiqueiro de Cabra?. E assim fêz o homem. E logo que recitou a oração, a espinha ? zás ? se desatravessou e ela ficou boa, arrependida de ter sido mulher ruim... (CAMPOS, 1955, p.166).
Quando falamos também no repasse dessas rezas, um outro elemento importante para uma eficaz memorização, mesmo considerando as perdas de trechos ou acréscimos, como uma espécie
de adaptação regional, são as rimas, que propiciam certa musicalidade às orações quando proferidas pelos rezadores.



Carne trilhada,
Nervo torcido,
Ossos e veias
E cordoveias;
Tudo isso eu coso
Com o louvor
De São Frutuoso (BARROSO apud MAGALHÃES, 1966, p. 238).


Há, ainda, orações que revelam a figura da rezadeira como intermediária para o fim dos males. Neste caso, quem pratica a cura ?adquire? poderes. Não estamos afirmando que um raio vai descer do céu sobre a rezadeira e lhe dará poderes paranormais e nem de nenhuma outra experiência mística. Quando defendemos que a rezadeira ganha poderes, estes são adquiridos através das palavras que elas mesmas proferem. Para entendermos melhor esse processo, vejamos a oração para ?levantamento de espinhela?:
Eu entro na palavra de Deus-Padre,
Com as palavras de Deus-Filho
E de Deus-Espírito Santo;
Espinhela caída eu te levanto
Com arcas e tudo,
Com os poderes de Deus-Padre,
Com os poderes de Deus-Filho,
Com os poderes de Deus-Espírito Santo,
Amém (CAMPOS, 1955, p. 156).


Diferentemente dos casos anteriores, o que percebemos nesta oração é o surgimento da figura da rezadeira como agente da cura. O uso da primeira pessoa, ressaltando o protagonismo da ação, como, e.g., em ?Eu entro? e ?Eu te levanto?, ao mesmo tempo em que destaca, imprime na mente de quem as ouve, no caso, o paciente, uma aura de poder de quem cura, que, por sua vez, é contrabalançado com expressões como, e.g., ?através de? algum poder. Vejamos outro exemplo:
Na casa em que Deus nasceu
Todo mundo resplandeceu
Na hora em que Deus foi dado
Todo mundo iluminado
Seja em nome do Senhor
Êsse teu mal curado
Espinhela caída e ventre derrubado
Eu te ergo, curo e saro
Fica-te, espinhela, em pé!
Sant?Ana, Santa Maria, em nome do Padre do Filho e do
Espírito Santo (CAMPOS, 1955, p. 156).



Na reza citada está evidente o poder de cura atribuído a rezadeira. Mais do que uma mera conhecedora de ervas e técnicas de cura, ela é uma intermediária do divino para a expulsão dos males com os poderes de ?erguer?, ?curar?, ?sarar?, mas sempre através da vontade de Deus ou da entidade citada. A ligação entre rezadeira e divino, nessa oração, é direta, uma espécie de iluminada, pela qual a benevolência celestial manifesta-se.


No terceiro grupo de rezas, inserimos aquelas expressões ou palavras com intenções curativas que não fazem apelo a Deus ou a elementos católicos. Proferidas em meio a ritos, essas palavras podem ser confundidas como integrantes de uma simpatia. No entanto, entendendo que simpatias são aqueles rituais que apelam ao físico ou às ?forças e energias sobrenaturais?, não havendo, assim, a construção ou visualização de uma entidade, mas de ?energias cósmicas?. Essas frases apelativas revelam, pois, um clamor direcionado a algo ou alguém. Observemos o caso da reza para picadas de animais peçonhentos:


Oh! Estrela gloriosa e preciosa, que Deus criou como defensora do veneno de fulano. Permita Deus que êste veneno se transforme em sangue para sustento de seu corpo, em nome dos 7 mistérios divinos, para sempre, amém. (Jesus, 5 vêzes. Cada vez um padre-nosso, uma ave-maria, uma glória ao Pai em intenção dos sete mistérios divinos e das cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo.) Assim como Jesus Cristo está salvo e são das suas 5 chagas, salvo seja fulano do veneno desta serpente, que Deus pode, Deus quer, Deus faz, tudo quanto quer, assim será feito tudo com o nome de Deus, para o bem e da caridade (CAMPOS, 1955, p.172).


Mais do que um corpo celeste físico, nesta oração, a estrela é personificada de tal forma que atua como intercessora na salvação do ?ofendido?. Ela, juntamente com Deus, é também uma entidade capaz de sanar males - embora com um poder evidentemente menor - a quem a rezadeira clama. Nesse grupo de personificações, podemos ver até mesmo a própria doença, com a qual é traçado, muitas vezes, um verdadeiro diálogo.


Sai dor-de-barriga que está aí,
Que a Cruz de Cristo está aqui (CAMPOS, 1955, p. 155).
Terçol, terçol, vai-te com o sol (MAGALHÃES, 1955, p. 219).


http://www.catalao.ufg.br/historia/revistaopsis/arqpdf/OPSIS2007.pdf


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