Há 70 anos o mundo assistiu ao começo da Guerra Civil Espanhola, cujo saldo de 600 mil mortos provocou comoção internacional, mas não evitou a instalação de uma das ditaduras mais longas e cruéis da história.
A Guerra Civil que marcou tão tragicamente a história da Espanha foi o desfecho de uma longa crise que teve uma origem remota: o declínio do império colonial montado pela Espanha na América Latina. Mais precisamente, em 1898, quando, após uma guerra malsucedida contra os Estados Unidos, a Espanha perdeu Cuba e Porto Rico, na América, além das Filipinas, no Pacífico. Era um final melancólico para um país que, durante séculos, havia dominado grande parte do mundo.
Na década de 20, além dos problemas externos, o país vivia uma grave crise interna. A Espanha era uma nação capitalista com baixo nível de desenvolvimento, e 60% da população vivia no campo. As indústrias concentravam-se em Barcelona, capital da Catalunha, e nas províncias bascas, ao norte. O país vivia sob regime monárquico constitucional e centralizador, chocando-se com a vontade autônoma das diversas nacionalidades que compunham os povos.
O poder da Igreja era imenso. Ela possuía inúmeras propriedades e controlava totalmente a educação. Igualmente forte tornou-se o poder do exército, após a guerra de conquista colonial do Marrocos. Com o golpe militar do general Miguel Primo de Rivera, apoiado pelo rei Alfonso XIII, em 1923, terminou a experiência constitucional liberal, iniciada em 1875. A ditadura de Rivera foi marcada por traços fascistas, mas não dominou todos os setores da sociedade. Em 1930, Primo de Rivera foi obrigado a renunciar, exilando-se em Paris. Um ano depois, o rei, sem abdicar formalmente, partiu também para o exílio. Instalou-se, assim, o regime republicano, com características liberais do século 19, projeto de constituição de garantias individuais, educação leiga e divórcio. Mas, no entanto, não atacava pela raiz os males da Espanha: a concentração de terras, as desigualdades regionais, os baixos salários industriais e o conservador poder do exército.
República em perigo
As lutas proletárias aumentaram. Greves e ocupações de terra sucederam-se. A inclusão de vários ministros de extrema direita no governo, em 1934, desencadeou um vasto movimento de protesto liderado por um grupo de mineiros nas Astúrias, que dominou o governo da província durante duas semanas e pretendia marchar sobre Madri e proclamar a República Socialista Espanhola. O Governo, assustado e sem forças para controlar a situação caótica, entregou o comando da repressão ao general Francisco Franco, militar galego que fizera carreira meteórica no Marrocos espanhol e que, em 1923, tornara-se o comandante da Legión Española. Ultracatólico, monarquista e antidemocrático, Franco não teve participação política ativa nos anos que precederam a queda da Monarquia espanhola e a instauração da República, mas, ao sufocar o levante revolucionário das Astúrias, se converteu em figura política tão admirada quanto odiada entre os espanhóis. Pela vitória na repressão, que matou cerca de mil pessoas e fez mais de 3 mil prisioneiros, Franco recebeu a Grã- Cruz do Mérito Militar. Em fevereiro, foi nomeado comandante-chefe das Forças Armadas em Marrocos e, três meses depois, assumiu a chefia do Estado Maior, recebendo o controle total sobre o Exército.
O trauma desse acontecimento mais o crescente aumento do perigo fascista possibilitaram a unidade de todas as forças de esquerda radicais? socialistas, comunistas, anarquistas, minorias nacionais ? numa Frente Popular antifascista que venceu as eleições em fevereiro de 1936, com a conseqüente formação de um governo popular.
Dentre os grupos de tendência fascista que atuavam provocativamente, destacava-se a Falange Española Tradicionalista, fundada por José António Primo de Rivera, filho do ex-ditador. Contudo, era um movimento que não possuía forças para colocar em perigo a República.
A verdadeira ameaça vinha dos militares que, ansiosos para comandar um golpe, centralizavam suas discussões na Unión Militar Española (UME), associação clandestina de caráter direitista e anti-republicana. Mas os planos vazaram e, cientes da
conspiração golpista, os líderes da República prenderam José António Primo de Rivera, cujo partido, Falange, fora posto na ilegalidade, e os principais generais de direita, transferidos para localidades distantes. O general Manuel Goded foi deportado para as ilhas Baleares e o general Francisco Franco para as Canárias.
O perigo marxista
Mas a ameaça de golpe ainda pairava no ar, enquanto novos distúrbios explodiam em toda a Espanha. A luta por reformas estruturais não se manteve dentro das disputas parlamentares e ganhou as ruas. Grupos de camponeses começaram a confiscar sumariamente terras dos grandes proprietários; pilhagens tornaram-se freqüentes; igrejas, seminários e conventos foram incendiados; greves ocorriam em todo o país. Essas agitações contribuíram para aliar a burguesia moderada e católica aos adversários mais intransigentes do regime: os militares e os fascistas.
O estopim da Guerra Civil ocorreu em Marrocos, onde se encontravam importantes efetivos militares, compostos de soldados do Exército regular e pela Legião Estrangeira Espanhola, que era engrossada pelo recrutamento de soldados marroquinos, chamados de moros. Esta foi a responsável por formar a base dos primeiros movimentos do golpe.
Em 17 de julho de 1936, eclodiu, nas cidades marroquinas de Melilla, Ceuta e Tetuán, uma rebelião militar que rapidamente se estendeu por toda a Espanha. O líder da conspiração era o general José Sanjurjo y Sacanell, morto pouco depois num misterioso acidente aéreo. O general Francisco Franco, então nas ilhas Canárias, dirigiu-se imediatamente ao Marrocos. Assumiu o comando do exército e estabeleceu contato com os outros chefes militares dispostos a lutar contra o que chamavam de ?perigo marxista?. Os rebeldes se autoproclamaram nacionalistas e, tal como os nazi-fascistas, não se mostravam dispostos a transigir com os grupos democráticos e de esquerda, denominados genericamente de republicanos.
Um general no poder
No fim de julho de 1936, os militares formaram uma junta de defesa nacional, que, em setembro, nomeou o general Franco ?dirigente máximo da Espanha nacionalista?. Em seu apoio acorreram a Falange, antigos monarquistas, proprietários de terras, industriais e católicos tradicionalistas. Os nacionalistas de Franco contavam com grande vantagem, pois a maior parte do exército regular estava a seu favor. Os republicanos, por sua vez, dispunham apenas dos contingentes policiais e massas de voluntários das regiões industriais, milícias mal equipadas e sem nenhuma experiência de combate. Além disso, estavam divididos por diferenças ideológicas. Os anarco-sindicalistas, por exemplo, por algum tempo opuseram-se ao Partido Comunista em sua tarefa de transformar as milícias populares num exército convencional. Outros grupos entraram na guerra reivindicando interesses diferentes, em destaque os carlistas, que queriam a volta da casa monárquica de Bourbon ao poder.
A disputa entre partidos políticos e grupos rivais também estava ocorrendo entre os nacionalistas. Apesar de unidos pela defesa da fé católica e pela idéia da luta contra o liberalismo e o comunismo, os ?negros? dividiram-se quanto aos objetivos da guerra civil.
Uns defendiam a restauração da monarquia. Outros, a instalação de uma ditadura de caráter fascista.
Para manter a unidade do grupo nacionalista, Franco suprimiu todos os partidos em 19 de abril de 1937, decidindo pela existência de umaúnica agremiação política: a Falange Española Tradicionalista de las Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista (FET/Jons). Com a morte de José António Primo de Rivera, fuzilado pelos republicanos em 20 de novembro de 1936, Franco ficara livre de seu mais poderoso concorrente, colocando-se como chefe único e indiscutível dos nacionalistas espanhóis.
Em fins de 1936, apesar da feroz resistência dos republicanos em Madri, Franco já dominava mais de metade da Espanha. Ao longo de 1937, os nacionalistas liquidaram a frente norte, tomando Bilbao, Santander e Gijón. No fim do ano, os republicanos conquistaram a cidade de Teruel. Mas, em fevereiro de 1938, os nacionalistas penetraram na Catalunha e conquistaram Lérida. Logo depois, atingiram o Mediterrâneo e conseguiram uma larga passagem entre Castellón de la Plana, no sul, e Tortosa, ao norte, dividindo a Espanha republicana em duas partes.
A ditadura se instala
A última ofensiva de Franco começou em dezembro de 1938, quando a União Soviética já havia retirado totalmente seu auxílio à República espanhola e as Brigadas Internacionais tinham deixado o país. Os nacionalistas penetraram na Catalunha e cercaram Barcelona, que caiu após resistência de 34 dias. Enquanto 400 mil refugiados atravessavam a fronteira com a França, Negrín era deposto pelo general Miaja. Em 28 de março de 1939, Franco entrava em Madri, instaurando mais uma ditadura fascista na Europa. Dois dias depois, caiu o último reduto republicano, Valência. Em 1° de abril de 1939, a Guerra Civil Espanhola chegou ao fim, com a vitória total e incontestável de Franco, que emergiu como o ?chefe supremo? do país, ?responsável somente diante de Deus e da História pelos destinos da Espanha?.
A República Espanhola estava morta e, com ela, mais de 600 mil cidadãos, cifra que atingiu quase um milhão em 1944, em conseqüência das execuções em massa ordenadas pelo general. A ditadura reinou na Espanha de 1939 até a morte de Franco, em 20 de novembro de 1975. Durante todo o período mantiveram- se os símbolos, hinos e lemas dos nacionalistas na Guerra Civil. Por meio da máquina de propaganda franquista afirmava-se que o bem da mãe-pátria estava acima de tudo: a Guerra Civil tinha salvado o autêntico país da ?AntiEspanha?, e as sinistras influências dos comunistas, franco-maçons e judeus tinham de ser mantidas à distância. O saldo dessa obsessão foi a morte de milhões de espanhóis e um trauma que ainda hoje marca o povo ibérico.
Wagner Pinheiro Pereira é doutorando em História Social da USP.
Texto da Revista Desvendando a História
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