Guerra Civil: Fúria espanhola
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Guerra Civil: Fúria espanhola



Guerra Civil: Fúria espanhola
Testemunha de uma das maiores e mais violentas guerras civis européias, o casal Valverde, que hoje vive em terras brasileiras, fez oposição às tropas do general Franco, na Espanha
por Márcio Sampaio de Castro

- Guerra Civil Espanhola: luzes sobre um conflito obscuro
- A guerra foi um laboratório


A Guerra Civil Espanhola, ocorrida entre 1936 e 1939, dividiu ideologicamente o país ao meio e custou, segundo estimativas, a vida de quase 1 milhão de pessoas. Tudo começou após um golpe militar contra o presidente socialista Francisco Largo Caballero. A insurreição fracassou, mas o confronto se espalhou pela Espanha. Liderados pelo general Francisco Franco, os rebeldes – reunidos no chamado Exército Nacionalista – ganharam o apoio dos regimes fascistas de Mussolini, na Itália, e Hitler, na Alemanha. Enquanto isso, as forças republicanas, leais ao governo espanhol, foram ajudadas pela União Soviética de Stálin.

Quando o conflito começou, Francisco Valverde Plaza tinha 17 anos e se alistou nas forças republicanas. Remédios Mora Perez de Valverde, sua noiva à época, três anos mais nova, não se engajou na luta, mas acompanhou todos os horrores da guerra em sua cidade natal, Barcelona – ela ainda se recorda claramente do temor que sentia dos bombardeios alemães sobre a região. Casados há mais de 60 anos e morando no Brasil desde 1953, os dois sobreviveram ao confronto (que terminou com a vitória dos nacionalistas e inaugurou a longa ditadura de Francisco Franco).

Francisco, ou simplesmente Paco, não consegue se lembrar de muitos dos detalhes de sua passagem pelo Exército Republicano Espanhol: aos 88 anos, tem a memória cada vez mais afetada pelo mal de Alzheimer. Nesta entrevista para História, realizada na residência do casal em Campinas, no interior de São Paulo, Remédios ajudou o marido a relembrar o passado. Enquanto isso, a pequena bisneta do casal corria pela casa, ainda alheia às aventuras vividas por eles na maior guerra civil de um país europeu durante o século 20. Naqueles tempos, os Valverde presenciaram cenas de morte e destruição, mas também de solidariedade.

História – Vocês chegaram a lutar na Guerra Civil Espanhola?

REMÉDIOS – Éramos contra as forças de Franco. Paco foi à guerra com 17 anos, porém não disparou um tiro. Ele fez parte do Estado-Maior (do Exército Republicano) trabalhando na cozinha. Após uma temporada nos Pirineus (região montanhosa na fronteira com a França), queimou os olhos por causa da neve. Foi dado como inútil para o combate.

Quando se conheceram? Foi durante a guerra?

PACO – Antes da guerra.

REMÉDIOS – Um irmão dele, Pepe, era casado com minha tia e eles moravam na Andaluzia (região que fica no sul da Espanha). Esse irmão, que era contra todo tipo de política, se meteu em uma revolta em Almería e o casal teve que se mudar para Barcelona. Eu, que havia nascido na cidade, fui com meus parentes recebê-los no porto e Pepe me disse: “Você se casará com meu irmão Paquito”. Eu nem o conhecia, pois Paco estava no sul com a mãe. Isso foi bem antes da guerra. Quando ela começou, Pacofoi para Barcelona e, logo em seguida, para a guerra.

Como era o envolvimento de vocês com a política antes da guerra? Se entendi bem, o irmão do Paco era anarquista...

PACO – Sim, ele era anarquista. Tinha também uma pequena oficina.

REMÉDIOS – Eles puseram uma bomba lá em Almería e tiveram que fugir para Barcelona.

A região de Andaluzia foi o primeiro ponto da reação nacionalista contra o governo, não?

PACO – As tropas de Franco vieram do norte da África, porque ele pertencia às tropas de ocupação do Marrocos (na época, os espanhóis dominavam parte daquele país). Andaluzia foi uma das primeiras regiões a cair, bem antes de Barcelona, por causa dessa proximidade com o estreito de Gibraltar.

Como um jovem de apenas 17 anos acabou se engajando na política e em uma guerra civil?

PACO – Quando a guerra estava na iminência de começar, quando a República começou a ficar enfraquecida, houve um sentimento nacional de tentar salvá-la. Não era questão de engajamento político, mas de salvar a República.

A República começava a operar algumas transformações na Espanha, como a reforma agrária e a criação das colônias de férias para os trabalhadores. Quais mudanças foram mais marcantes?

PACO – As colônias de férias, a educação....

REMÉDIOS – A República durou tão pouco! Eu mesma nunca fui a uma dessas colônias.

PACO – Franco representava o fim da República.

REMÉDIOS – Dizem que ele matou mais gente depois que ganhou a batalha do que durante a guerra.

O senhor foi a Barcelona para se engajar nas tropas republicanas?

PACO – Não, fui para trabalhar. O sul da Espanha era muito pobre. Fui para a casa de Pepe, em Barcelona, à procura de trabalho.

Como o senhor foi para a guerra?

REMÉDIOS – Ah, isso é fácil de entender. Quando chegavam aos 18 anos, os jovens eram enviados pelo governo para onde fosse necessário (como recrutas), mas se um jovem quisesse ir antes dessa idade, tudo bem. Pepe agiu para que ele fosse primeiro para o hospital militar onde o próprio irmão já servia. Depois, Paco foi trabalhar na cozinha do Estado-Maior, nos Pirineus. Isso foi em 1936.

E a senhora? Como foram os anos de guerra em Barcelona?

REMÉDIOS – A guerra durou três anos e inicialmente só escutávamos os disparates que faziam. Em Madri, quando os fascistas entravam na cidade, as mulheres jogavam óleo pelas janelas sobre eles. Depois vieram os alemães e os italianos bombardear as cidades.

Como era a sensação de ter exércitos estrangeiros combatendo em plena guerra civil?

REMÉDIOS – Morria de medo... O primeiro bombardeio em Barcelona foi realizado por um navio alemão. A oficina onde eu trabalhava foi destruída, assim como uma série de casas e prédios de apartamentos residenciais. Muita gente morreu. No último ano da guerra, os alemães vinham bombardear a cidade dia e noite. Uma coisa que ficou em minha cabeça foi uma das bombas que atingiu uma moça que estava amamentando. Enfim, os horrores da guerra. Mas não havia como vencer as tropas do Franco, a guerra estava perdida desde o começo. Nos locais ocupados pelos republicanos havia muitos fascistas infiltrados. Por exemplo, no hospital militar. Eram os “quinta-coluna”, todos disfarçados. Não era assim que se chamavam, Paco?

PACO – Sim, quinta-coluna.

REMÉDIOS – Um tio meu, irmão de minha mãe, trabalhava na despensa do hospital militar, onde ficava o almoxarifado. Ele contava que chegavam soldados da linha de frente com as pernas machucadas, que poderiam ser tratadas sem problema, mas os médicos as cortavam. Por quê? Porque eram fascistas.

A República havia separado, pela primeira vez na história espanhola, a Igreja do Estado, não? Foi por isso que o clero apoiou os nacionalistas?

REMÉDIOS – Ah, naquele tempo, se a pessoa não se casasse na igreja, não era casada. Quando Franco chegou ao poder, os padres o abençoaram, mesmo sabendo de toda a maldade que esse homem havia feito. Durante a guerra, as tropas da República entravam nos conventos de clausura. Eu, muito jovem ainda, ia atrás para ver o que eles retiravam de dentro desses conventos. E sabe o que tiravam de lá? Muitos nenês! De quem eram aqueles bebês?! Era uma verdadeira farra.

Bebês vivos?

REMÉDIOS – Mortos! As milícias retiravam os caixões com os nenês. Depois se descobriu que todos os grandes conventos em Barcelona eram interligados por túneis. Havia até um caixão de uma freira com todos os pregos quase para fora e a morta toda retorcida lá dentro! Isso era um terror! Vi todas essas coisas. Paco ainda não havia ido para a guerra e ajudava as milícias a pegar os caixões.

O objetivo era mostrar as atrocidades cometidas pela Igreja espanhola.

REMÉDIOS – Sim, sim, para mostrar. Quem nasceu depois da vitória de Franco não acredita nessas coisas.

Havia também os combatentes das Brigadas Internacionais, lutando ao lado dos comunistas...

PACO – Não combatemos juntos. Somente na França, já no campo de concentração (um dos acampamentos em que o governo francês manteve temporariamente os republicanos que haviam atravessado a fronteira), é que conheci os russos. Nós morríamos de frio e eles achavam graça. Ganhei dois cobertores deles, que cheguei a trazer para o Brasil.

No fim já estavam sem recursos...

PACO – Não tínhamos nada. Passamos muita fome e frio enquanto fugíamos para a França.

Vocês tinham a esperança de receber asilo dos franceses?

PACO – Sim.

Quanto tempo o senhor ficou preso?

PACO – Na França fiquei alguns dias, pois o governo logo nos mandou embora. Voltei para a Espanha no teto de um trem. Ao passar pela fronteira fui detido e enviado a Santander, onde fiquei preso três meses.



O senhor foi ameaçado de fuzilamento?

REMÉDIOS – Ele era um criançola, não representava perigo. Todavia, precisava apresentar-se à polícia a cada três meses, depois que saiu do campo.

PACO – Queriam saber o que eu estava fazendo, se estava trabalhando...

E seu irmão?

PACO – Também foi ao campo de concentração, mas depois o soltaram.

E depois da guerra?

REMÉDIOS – Ah, passamos mais fome depois do que durante a guerra. Franco deu a comida que era dos espanhóis para os italianos e os alemães, como pagamento pela ajuda recebida. A guerra acabou em 1939, mas em 1953 ainda havia racionamento!

Que tipo de perseguição os ex-combatentes republicanos sofreram?

PACO – Coisas tolas. Eu possuía uma oficina de marcenaria e não tinha o direito de solicitar a força trifásica de eletricidade, que era mais barata.

REMÉDIOS – Ele sempre dizia que desejava sair da Espanha, que queria que nossa filha estudasse, e pensava em vir ao Brasil... Eu ficava apavorada! Falavam tão mal do Brasil que toda vez que ele vinha com esse assunto eu ficava louca. Primeiro mudamos para Madri, para tentar a sorte, mas não deu certo. Então ele disse que quando nascesse a criança iríamos para o Brasil.



Vieram todos juntos?

REMÉDIOS – Paco veio primeiro, em 1953. Nós viemos um ano depois.

O senhor conhecia alguém por aqui?

PACO – Tinha um amigo em São Paulo e fui morar com ele. Nos preparativos para o quarto centenário da cidade, trabalhei na montagem dos estandes e conseguidinheiro para trazer a família.

Vocês voltaram à Espanha alguma vez?

REMÉDIOS – Voltamos em 1967, mas em minha própria terra não me sentia bem. Pessoas que haviam combatido ao lado dos republicanos diziam que Franco, que ainda estava vivo, não era tão mau assim. A vida havia melhorado e esqueceram o passado. “Franquito” virou um deus.

Saiba mais
Livro

Lutando na Espanha, George Orwell, Globo, 2006.

Esta obra é considerada o registro definitivo do autor sobre suas experiências como combatente das Brigadas Internacionais e um vivo relato sobre a Guerra Civil Espanhola.


Revista Aventuras na História




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