Em busca de um horizonte inatingível
História do Brasil e do Mundo

Em busca de um horizonte inatingível



Em busca de um horizonte inatingível
A democracia de Atenas era indireta. Com o tempo, ela se tornou uma 'forma' branda, flexível e elástica, na qual se pode inserir qualquer coisa.
Gilles Lapouge - O Estado de S.Paulo
Democracia é um conceito formado de duas palavras: "demos", que significa povo, e "cratos", poder, governo - mas é traduzida como "governo do povo, pelo povo, para o povo", como afirmou o grego Péricles. Enunciado que hoje é atribuído, erroneamente, ao americano Abraham Lincoln.

Os cidadãos gregos eram felizes. Por outro lado, os sátrapas, os senhores feudais, os reis e magos que regiam o resto do mundo entre o vale do Indus e a Bretanha, recusavam-se a partilhar seus privilégios com o "povo".

A democracia de Atenas era indireta. Só os cidadãos de primeira classe tinham direito de adotar decisões políticas, ou seja, cinco mil cidadãos para um grupo de 40.000 habitantes, excluídos os, escravos, as mulheres e os estrangeiros. O modelo "democrata" grego foi copiado depois por Roma, demolido por Júlio Cesar e que caiu no Império. Na Idade Média, a preferência foi pela monarquia, pelo feudalismo e o despotismo, exceção feita à Islândia que, nos seus desertos de neve, pratica, com um Parlamento ao ar livre, uma "democracia direta" mais avançada do que a de Atenas.

A democracia só ressuscita depois de passados alguns séculos e vários reis, com a tomada da Bastilha pelos franceses em 14 de julho de 1789, e a abolição do Antigo Regime francês, em 21 de setembro de 1792, substituindo a monarquia pela República e a Democracia - que nascem juntas, o que muitas vezes provoca confusão. Na verdade são dois sistemas parentes, mas não equivalentes (uma das mais respeitáveis democracias do mundo, a Inglaterra, é uma monarquia).

Essa vitória tardia da democracia na França de 1792 foi preparada por um século de filosofia, o século do Iluminismo (Voltaire, Montesquieu, Rousseau), pela franco-maçonaria e pela magnífica Declaração de Independência assinada na Filadélfia em 1776, que iria inspirar na França a Declaração dos Direitos do Homem (1789).

Portanto, no fim do século XVIII vemos o segundo nascimento da democracia e o início da sua cavalgada triunfante em torno da terra. Triunfante, mas muitas vezes enganadora. Hoje, todos os poderes, ou quase, supostamente são democráticos ou republicanos. O voto popular, um dos princípios da marcas da democracia, é praticado em todas as partes, mesmo em Estados os menos democráticos.

Hitler não só chegou ao poder em 1933 pelo voto parlamentar, mas depois multiplicou os plebiscitos com 99% de votos favoráveis. Stalin fez o mesmo. Hoje, o totalitário e feroz Irã é uma "república islâmica". A China comunista é uma república popular.

A democracia se torna, portanto, uma "forma" branda, flexível e elástica, na qual se pode inserir qualquer coisa. Por isso, é preciso manejar esse conceito com prudência. A democracia é o regime em que o poder é do povo (princípio da soberania) sem nenhuma distinção ligada a nascimento, riqueza ou competência (princípio da igualdade). Para que um sistema como esse funcione, ele tem que ser apoiado por outros princípios. Como o da liberdade dos indivíduos, da submissão à maioria, da separação dos poderes legislativo, executivo e judiciário, das consultas regulares ao povo, da pluralidade dos partidos políticos, da independência da justiça, da liberdade de opinião e expressão, da liberdade da imprensa.

Mas tem que existir uma sociedade onde cada um dos cidadãos seja um indivíduo virtuoso para que a democracia se realize. Por exemplo, num ponto todos os países, mesmo os mais democráticos, falham: eles não contemplam a democracia direta. Todas as democracias são indiretas, ou seja, as decisões não são adotadas pela totalidade dos cidadãos, mas por seus representantes eleitos (deputados, senadores).

E não poderia ser de outra maneira: a Índia, por exemplo, tem 700 milhões de eleitores. Impossível consultar 700 milhões de pessoas a cada decisão a ser tomada. Somente a Suíça, um país pequeno, pratica a democracia direta, por meio do referendo.

Mas não basta que um país tenha tradição democrática para estar protegido das perversões do despotismo. A França, por exemplo, dez anos após a Declaração dos Direitos do Homem, caiu no jugo do despotismo de Napoleão Bonaparte e, mais recentemente, de 1939 a 1944, do Marechal Pétain, que chegou mesmo a trocar o nome, República Francesa, por Estado Francês.

A América Latina ficou durante um longo tempo submissa às juntas militares, condenada aos golpes de Estado, à opressão de todos por alguns. Foram horas grandiosas vividas pelo fascismo em meados do século passado, quando grandes Estados, como Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, ficaram nas mãos dos militares, do despotismo (se bem que com a cumplicidade dessa grande democracia que são os Estados Unidos). Hoje, o continente tem uma outra paisagem. Chile, Uruguai e Argentina se desembaraçaram dos dirigentes fascistas. O caso mais espetacular é o do Brasil - que, 25 anos depois da ditadura, surge como um modelo de democracia.

Claro que nem todo o continente está curado. A Venezuela, mesmo sendo uma "república bolivariana", não se assemelha à Atenas de Clístenes. A Colômbia não é um Estado perfeito. E se Cuba se diz uma "república", quem pode dizer que é uma democracia?

Esse é o percurso tumultuoso e fascinante da paixão democrática. Um longo caminho em busca de um objetivo radiante, jamais alcançado porque a fraqueza do homem, suas ambições, seu cinismo, seu egoísmo, o poder perverso do dinheiro, não cessam de perverter e infestar esse maravilhoso instrumento imaginado por Atenas, pelos "pais fundadores" dos Estados Unidos, pelos revolucionários franceses de 1789.

A democracia é como um horizonte que se dissipa à medida que nos aproximamos dele. É inatingível. Uma miragem brilhante do nosso futuro. É a busca incessante desse horizonte sempre em fuga que constitui a realidade, o ser, a fascinação, o gênio e a formidável fecundidade da ideia democrática. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
O Estadão




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