Em plena ditadura militar, os trabalhadores estavam dispostos a contestar a forma de produção vigente em nome da preservação da floresta. Não que lutar fosse uma novidade para eles. Havia quase um século que a região era palco de intensas disputas e conflitos.
Em 1898, a região do Rio Tejo já estava toda ocupada por seringueiros, e o missionário Parissier relatava o clima de violência que reinava no lugar: “Numa terra onde nenhuma polícia é possível e a lei do mais forte é absoluta, o caboclo nunca entra na floresta, nem sai de sua casa, sem seu rifle (...). Quando investem contra o patrão, cercam o barracão, matam quem puderem e tocam fogo no barracão. Isso foi o que aconteceu com o Seu Bonifácio (...) que escapou por um milagre, mas perdeu de um só golpe 300 mil francos, o equivalente a 30 toneladas de borracha”.
Bonifácio, que comandava a exploração dos seringais da área, era genro do comandante do vapor Contreiras, da empresa Melo & Cia., que desde 1897 visitava a região vindo de Belém, sempre trazendo mercadorias e novos seringueiros. A produção crescia movida pelo aumento da demanda mundial de borracha. Migrantes nordestinos eram recrutados em Belém, atraídos pela alta produtividade das seringueiras dos altos rios Purus e Juruá, num período em que os seringais mais acessíveis estavam depredados pela exploração desenfreada. A borracha dos altos rios era também a de melhor qualidade, o que se refletia na cotação da borracha “Acre Fina”, a mais alta no mercado internacional.
Os recém-chegados massacraram quem já estava na região – indígenas da língua Pano e seringueiros (também chamados “caucheiros”) vindos do Peru. O avanço dos brasileiros para além das fronteiras gerou conflitos armados com os países vizinhos – questão que só seria resolvida com a incorporação do território do Acre ao Brasil, graças a tratados com a Bolívia (1903) e com o Peru (1909). Em 1904, foi fundado o município de Cruzeiro do Sul, sede da administração local.
Mas a presença do poder público não conseguiu acabar com os embates na área. Em 1913, o padre Tastevin escreveu que uma “revolta” de seringueiros provocou várias mortes violentas, e em 1919, seringueiros do barracão da Restauração, no Alto Rio Tejo, expulsaram o gerente, exigindo novas condições para continuarem o trabalho. No ano seguinte, o gerente voltou de Belém acompanhado de uma tropa privada. O líder dos rebelados foi preso e acabou morrendo devido a maus-tratos. A ação dos seringueiros não foi bem-sucedida, mas aquele levante ficaria guardado na memória dos moradores.
Os conflitos eram acirrados pela crise comercial iniciada com a queda dos preços da borracha. Um dos efeitos foi a interrupção do abastecimento dos seringais distantes, que dependiam do alimento importado pelo rio em troca da borracha. Patrões proibiam seringueiros de plantar alimentos, forçando-os a se endividarem com a compra de comida. E ainda armavam emboscadas para os empregados que conseguiam saldar as dívidas. Muitas acabavam em assassinato. As condições de vida e de trabalho se deterioravam.
O início da exploração da borracha amazônica foi próspero, mas a bonança durou pouco. Em 1912, a produção atingia o pico de 42 mil toneladas – das quais 10 mil vinham do Acre. A borracha representava 40% de todas as exportações nacionais, incluindo o café. Mas naquele mesmo ano os ingleses começaram a exportar sua produção, obtida na colônia da Malásia. Em pouco tempo, desbancaram o látex brasileiro. Em 1920, a Malásia já produzia 400 mil toneladas de borracha. Dali em diante, a maioria dos seringais dos rios Juruá, Purus, Madeira, Tocantins e Negro faliu. Mas as vantagens do “Acre fino” garantiram a permanência da produção naquele estado.
Com a derrocada da borracha nacional, a empresa Melo & Cia., que administrava os seringais do Rio Tejo, foi à falência, sendo substituída pela Nicolau & Cia., também de Belém. Esta faliu em 1936, deixando sua imensa área no Juruá acreano nas mãos do antigo empregado Armando Quirino, em troca de créditos que a empresa não tinha como saldar.
Os seringueiros do Tejo e das margens do Juruá continuaram a trabalhar nas florestas da região durante as décadas de 1920 e 1930, mas o produto, sozinho, já não era suficiente para lhes garantir o sustento. Precisaram diversificar a produção, obtendo alimentos como farinha, feijão e açúcar, criando rebanhos domésticos e recorrendo também à caça e à coleta, que haviam assimilado dos indígenas sobreviventes dos massacres da ocupação. Famílias se formavam e cresciam, muitas delas fruto justamente da mistura entre migrantes (ou seus descendentes) e índias. Os antigos seringueiros especializados eram agora camponeses da floresta. Embora pagassem a “renda” aos patrões (que agora eram moradores da região, como Armando Quirino), eram donos do que plantavam ou coletavam na mata, e, em muitos casos, podiam vender a borracha a quem quisessem.
O sistema durou até a Segunda Guerra Mundial, quando o governo brasileiro voltou a investir na borracha, como parte de um acordo de cooperação com os Estados Unidos, visando ao suprimento das forças aliadas. O esforço não teve grandes resultados – a produção nunca chegou aos níveis de 1912, estacionando em torno de 20 mil toneladas –, mas serviu para fortalecer os patrões regionais, que se beneficiaram do mercado garantido e dos bons preços fixados pelo governo, além de contarem com créditos a juros baixíssimos concedidos pelo Banco da Borracha e pelo Banco do Brasil. Eles voltaram a impor o monopólio sobre o comércio, deixando aos seringueiros apenas o direito de plantar e coletar na floresta.
“Terra sem homens para homens sem terra”. Foi com este slogan que o governo militar instituiu, nos anos 1970, uma nova política de incentivo à ocupação da Amazônia. Empresários e colonos vindos do sul passaram a comprar terras no Acre, novamente interessados nos seringais. Mas o processo era fraudulento: não havia títulos de propriedade na maior parte daquelas terras. Com documentos falsos (“grilados”), os novos compradores expulsaram a ferro e fogo os antigos seringueiros que permaneciam na área, já ambientados à vida na floresta.
Alguns líderes locais resistiram à expulsão. Na bacia do Rio Purus, nos municípios de Xapuri e Brasiléia (sudeste do estado), os seringueiros Wilson Pinheiro e Chico Mendes começaram a chamar a atenção das autoridades para a truculência de que os trabalhadores vinham sendo vítimas. Já no Alto Juruá, isolado pela falta de estradas, os seringais do Rio Tejo foram vendidos no final da década para a empresa paulista Santana Agropastoril, que passou a arrendar a exploração para patrões locais por prazos curtos.
A pressão por lucro rápido levou ao reajuste das dívidas dos seringueiros, de quem se exigia o aumento da produção. Além de alimentos e bens essenciais (munição, ferramentas de trabalho, sal, óleo de cozinha, roupa etc.), eles eram estimulados a comprar nos barracões “bens de valor”, como espingardas, motores para casas de farinha e para canoas, relógios e similares, a preços extremamente elevados. De repente, essas dívidas passaram a ser cobradas a curto prazo, e com violência. Isso atingia particularmente famílias grandes, com chefes doentes ou chefiadas por mulheres e viúvas.
O primeiro sindicato de trabalhadores rurais da região foi criado em 1979. Dois anos depois, o delegado sindical João Claudino liderou uma marcha armada de seringueiros até o barracão da Restauração e obteve a redução das dívidas ou seu perdão, no caso de viúvas e pessoas doentes. Claudino queria mais: defendia a isenção total do pagamento da renda das “estradas de seringa” (pelo uso de caminhos abertos por eles próprios) e a liberdade para comercializar a borracha “de saldo” – isto é, vender a quem quisessem depois de pagarem a dívida ao patrão no fim da safra anual.
A cada avanço dos seringueiros por seus direitos, os donos das terras reagiam. Em 1983, um novo patrão, Sebastião do Isique, arrendou os seringais do Alto Rio Tejo e conseguiu afastar o líder sindical João Claudino, atraindo-o com o posto de gerente em outro seringal. Mas o seringueiro Chico Ginú continuou o trabalho de Claudino. De origem humilde, filho de um cearense e neto de uma índia, Ginú enfrentou episódios de brutalidade. Como em 1985, quando o capataz Manuel “Banha” passou a cobrar as dívidas com violência. Acompanhado de policiais à paisana, tomava máquinas de costura e vacas leiteiras, espancava moradores e interrogava até crianças para descobrir esconderijos de borracha (que os seringueiros tentavam vender por conta própria). Chico Ginú liderou uma marcha de cerca de 50 seringueiros, que, com suas armas de trabalho, conseguiram a retirada dos capangas de Manuel Banha.
Antigos conhecedores dos seringais, os trabalhadores tinham ainda outra preocupação. As árvores precisavam de um tempo de rodízio para se recuperar e continuar produtivas – os seringueiros cortavam uma mesma árvore no máximo dois dias por semana, e deixavam-nas em descanso de julho a setembro. Mas os arrendatários, em busca de lucro rápido, ordenavam que se extraísse o máximo das seringueiras. Em cada árvore, as cicatrizes da extração acusavam o abuso cometido por aqueles homens – que tinham íntima relação com a floresta e começaram a se preocupar com sua preservação.
Enquanto Chico Ginú atuava no Rio Tejo em favor da conservação das seringueiras, Chico Mendes já despontava no âmbito internacional contra a depredação da floresta e a expulsão dos seringueiros. Eles nunca chegaram a se encontrar pessoalmente. A comoção causada pelo assassinato do líder de Xapuri, em dezembro de 1988, precipitou uma solução para as reivindicações dos trabalhadores, que vinham ganhando importância e repercussão. Em julho daquele ano, o Conselho Nacional dos Seringueiros já tinha elaborado um “Plano de Desenvolvimento Comunitário Reserva Extrativista da Bacia do Rio Tejo”, iniciativa inédita: a ideia era fundar uma cooperativa de trabalhadores para gerenciar a produção, levando em conta cuidados ambientais para não exaurir a floresta. O tiro que matou Chico Mendes saiu pela culatra: pouco depois do seu assassinato, o BNDES aprovou o projeto.
Como era de se esperar, a reação dos fazendeiros à iniciativa foi mais violência, por meio de atentados, boicotes e ações judiciais. Chegaram a espalhar boatos de que as terras estariam sendo vendidas para estrangeiros. A solução definitiva veio em 15 de janeiro de 1990, quando um decreto do governo federal determinou a criação da primeira reserva extrativista do Brasil, com cinco mil quilômetros quadrados.
Após cem anos de batalhas inconclusas, a guerra de ocupação do Alto Juruá foi vencida pelos seringueiros. E, por tabela, pela mãe floresta.
Mauro W. B. de Almeida é professor da Universidade Estadual de Campinas e autor da tese “Seringueiros do Alto Rio Juruá: A formação de um campesinato florestal” (Universidade de Cambridge, 1993).
Saiba Mais - Bibliografia:
CUNHA, Euclides da. À Margem da História. Porto: Editora Lello Brasileira S.A., 1967.
FRANCO, Mariana Pantoja. Os Milton. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2002.
WEINSTEIN, Barbara. Borracha na Amazônia: Expansão e Decadência (1850-1920). São Paulo: Editora Hucitec, 1993.
WOLFF, Christina Scheibe. Mulheres da Floresta. Uma história Alto Juruá, Acre (1890-1945) São Paulo: Hucitec, 1999.
Disponível em Revista de História
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