Os 100 anos por trás da nova superprodução da televisão brasileira. Uma saga de aventureirismo, exploração predatória e degradação ambiental. E o desafio de promover o desenvolvimento sustentável.
por Ana Lúcia Araújo
A história do Acre é marcada pela personalidade dos líderes que lutaram por sua independência e desenvolvimento. Lembrados com entusiasmo pela população, foram eles o espanhol Luiz Galvez, que presidiu a República do Acre, o libertador Plácido de Castro e o líder camponês Chico Mendes. No início deste ano, a discussão sobre como o estado foi anexado ao Brasil voltou à tona. Recém-eleito presidente da Bolívia, Evo Morales relembrou então um antigo folclore político para incendiar a crise do gás. Ao discursar para chefes de Estado reunidos em Viena, o boliviano afirmou que o Brasil havia comprado o Acre de seu país pelo preço de um cavalo. Exagero, é claro. O Acre estava longe de valer um cavalo quando foi anexado ao Brasil. Valia ouro, o "ouro negro", como era chamada a borracha. A épica história da formação do estado, suas lendas e seu folclore devem voltar ao debate público em 2 de janeiro, quando a TV Globo prevê levar ao ar a minissérie Amazônia, de Galvez a Chico Mendes, da acreana Glória Perez, com direção geral de Marcos Schechtman.
Até 1880, o Acre estava ocupado praticamente apenas por índios. Para a Bolívia, proprietária do espaço, ali era uma terra não-descoberta. Segundo o diretor do Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural do Estado do Acre, Marcos Vinicius Neves, a área servia de refúgio para todos. Havia brasileiros fugidos da seca no Ceará, da Guerra de Canudos, da Revolução Federalista do Rio Grande do Sul e até sírios e libaneses que escaparam dos turcos.
Adaptar-se à vida da floresta, porém, talvez fosse o maior desafio para quem se aventurava a trabalhar nos seringais. Nas palavras de Euclides da Cunha, que esteve na Amazônia em 1905, quando o Acre já havia sido anexado ao Brasil, "o homem, ali, ainda é um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado nem querido - quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão". Em À margem da história, o escritor relata como, apesar do descaso do governo em relação aos colonizadores, mas graças à ajuda do dinheiro estrangeiro, as cidades acrea-nas conseguiram prosperar. Segundo Cunha, era para a Amazônia que o governo despachava doentes e flagelados, sem oferecer suporte médico que lhes permitisse enfrentar o "inferno verde". Malária e beribéri eram algumas das temidas doenças autóctones.
"Não se conhece (...) exemplo mais golpeante de emigração tão anárquica (...) e tão violadora dos mais vulgares preceitos de aclimamento, quanto o da que desde 1879 até hoje atirou, em sucessivas levas, as populações sertanejas do território entre a Paraíba e o Ceará para aquele recanto da Amazônia. (...) Em menos de 30 anos, o estado, que era uma vaga expressão geográfica, (...) definiu-se de chofre, avantajando-se aos primeiros pontos do nosso desenvolvimento econômico. A sua capital - uma cidade de dez anos sobre uma tapera de dois séculos - transformou-se na metrópole da maior navegação fluvial da América do Sul. E naquele extremo sudoeste amazônico, (...) cem mil sertanejos (...) apareciam inesperadamente e repatriavam-se de um modo original e heróico: dilatando a pátria até aos terrenos novos que tinham desvendado."
Quando as disputas pela posse do território começaram, por volta de 1880, a Amazônia era responsável por 100% da borracha usada pela nascente indústria automobilística internacional. As seringueiras localizadas no Acre produziam 60% desse total. "O monopólio brasileiro só teve fim em 1909, quando a Inglaterra começou a produzir borracha na Malásia", explica Gerson Rodrigues de Albuquerque, coordenador do Centro de Documentação e Informação Histórica da Ufac (Universidade Federal do Acre).
O garimpo vegetal crescente e a investida dos brasileiros despertaram a Bolívia para uma nova perda de território. Em 1883, o Chile vencera a Guerra do Pacífico - um conflito de quatro anos - e ficou com a área de extração de salitre do Atacama, fechando a saída que a Bolívia tinha para o oceano.
Rebeliões contratadas
Para conter a dominação de brasileiros, em 1899 um posto alfandegário boliviano foi instalado em Puerto Alonso, próximo à atual Rio Branco. Os impostos cobrados no posto chegavam a 40% sobre o preço do produto. Os seringalistas não tinham como arcar com os novos gastos. Segundo o historiador Eduardo Carneiro, da Ufac, os seringalistas e os governos do Pará e do Amazonas, que passaram a arrecadar menos, tiveram de arcar com o prejuízo.
Interessado em manter a borracha sob seu comando, o governo do Amazonas começou a financiar seringalistas e contratou líderes que organizassem revoltas contra os bolivianos, explica Carneiro. A primeira insurreição foi liderada por José Carvalho, em 1o de maio de 1899, e deu início ao processo que levaria à Revolução Acreana. Nesse mesmo momento, chegou à região, vindo do Amazonas, o jornalista espanhol Luiz Galvez, o "Imperador do Acre". Galvez, para alguns um aventureiro, para outros um herói, proclamou um Estado independente em 14 de julho de 1889 - data proposital para homenagear a queda da Bastilha, momento-chave da Revolução Francesa.
De acordo com Neves, Galvez não criou nada. "Os seringalistas e seringueiros já haviam expulsado os bolivianos duas vezes antes de sua chegada ao Acre." Porém, diz o diretor do Departamento de Patrimônio, Galvez passou a se envolver com a questão da borracha quando denunciou o acordo que vinha sendo costurado entre o governo boliviano e o Anglo-Bolivian Syndicate, de Nova York, para controlar a extração do látex. O modelo de negócio dava à empresa poderes soberanos para controlar a produção, a exportação, os impostos e até a polícia local. Firmado o acordo, os EUA teriam plenos poderes no território boliviano, povoado por brasileiros.
"Foi da articulação de uma saída viável para a situação do Acre que se sedimentou a participação de Galvez no movimento revolucionário", diz Neves. Na manhã daquele 14 de julho, representando a Junta Revolucionária do Acre, Galvez aprovou com a população local atas para dar início ao governo independente do Acre. A animação do espanhol conquistou os presentes, que finalizaram o encontro histórico com uma salva de palmas.
Marcos Neves vê o efêmero governo do presidente Galvez - durou poucos meses - como hábil e organizado. Para ele, o espanhol acreditou na sua própria utopia ao liderar a independência naquelas condições. A administração de Galvez foi acompanhada em detalhes pela imprensa brasileira. Notícias entusiasmadas chegavam ao Sudeste dando conta da criação de secretarias, repartições, instituições de ensino e da construção de prédios públicos. Em meses, os acreanos ergueram uma capital.
O economista acreano Mário José Lima alerta para a importância da borracha nos cofres brasileiros. Autor da tese Capitalismo e extrativismo - a formação da região acreana, ele explica que a borracha foi o que segurou as contas nacionais durante a crise do café, no final do século XIX.
Em dezembro de 1899, o governo de Galvez lutava para manter sua unidade no Alto Acre. Ao conseguir apoio local, explica Neves, "Galvez reagiu aos boatos de deslocamentos de tropas bolivianas em direção à área e às pressões que lhe chegavam do governo federal brasileiro e dos comerciantes de Manaus e Belém: proibiu a exportação da borracha acumulada nos seringais".
Os comerciantes revoltaram-se e, em 28 de dezembro de 1899, aclamaram o capitão Antônio de Sousa Braga, grande proprietário local, o novo presidente do estado. A primeira providência de Braga foi mandar prender Galvez. Na pele de presidente, Sousa Braga enfrentou e expulsou as forças bolivianas que tentavam reconquistar Puerto Alonso. Mas, sentindo a pressão, reconduziu Galvez ao cargo em 30 de janeiro de 1900.
Os sucessos do Acre ganhavam a imprensa e inquietavam o mercado internacional, que temia diminuição no fornecimento de borracha. Dócil aos interesses estrangeiros, o governo brasileiro enviou uma embarcação da marinha para acabar com a República do Acre e devolver a região à Bolívia. Doente, Galvez aceitou a imposição brasileira. Em 15 de março, assinou a ata de rendição.
Para Albuquerque, o termo Revolução Acreana e o conceito de nacionalismo não são pertinentes ao processo de formação do Estado. "Revolução", ele diz, "se faz quando homens mudam uma estrutura já estabelecida, o que não foi o caso". Os soldados seringueiros eram convencidos a lutar a favor dos patrões - brasileiros, bolivianos ou árabes - em troca de terras e liberdade. Eram nordestinos que haviam sido levados para a floresta quase como escravos e trabalhavam na extração do látex para sobreviver. "Desde 1870, cerca de 50 mil trabalhadores, a maioria formada por homens com pouco mais de 20 anos, foram levados para os seringais com a ilusão de enriquecer." O sentimento de nação não era conhecido por eles.
O processo de ocupação da terra era completamente irregular. Os exploradores subiam os rios e habitavam áreas vazias. Plácido de Castro, outro herói do Acre, foi contratado pelos seringalistas para prestar serviços de agrimensor. Ex-militar, o gaúcho Plácido havia participado das forças federalistas no Sul. Chegado ao Norte e apoiado pelo governo do Amazonas, organizou um exército de seringueiros e seringalistas para, diferentemente de Galvez, conquistar o território acreano para o Brasil. Um conflito que começou em agosto de 1902 e terminou seis meses depois em Puerto Alonso, com 500 mortos, em uma população de 10 mil indivíduos.
Nas palavras de Carneiro, Plácido de Castro tomou de assalto a cidade de Xapuri, surpreendendo o intendente boliviano com o seguinte enunciado: "Não é festa, é revolução!". Era o início da quarta Revolução Acreana. As três últimas não tiveram tanto sucesso, por isso resolveu-se consagrar a data da tomada de Xapuri - 6 de agosto de 1902 - como feriado estadual.
Xapuri tinha luxo e cinema
Graças ao comércio da borracha, Xapuri era uma cidade opulenta, onde se podia comprar tecidos finos como a seda e ir ao cinema. Tratava-se de um mercado promissor, afirma Albuquerque. A revolta de Plácido termina com um acordo diplomático, comandado pelo barão do Rio Branco. Em novembro de 1903, o Tratado de Petrópolis foi assinado, e o Acre anexado ao Brasil em troca de áreas no Mato Grosso, o pagamento de 2 milhões de libras esterlinas e a promessa de construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré.
Na visão de Neves, começava uma nova etapa de lutas na sociedade acreana, agora contra o governo brasileiro, que retirava somas fabulosas com a exportação da borracha, mas pouco revertia em investimentos locais. "Não havia escolas, hospitais ou quaisquer outras estruturas públicas."
Em 1912, houve a maior produção de borracha no Brasil. Desde então, a Ásia começou a colocar no mercado a borracha vegetal cultivada - deflagrando uma competição desigual com a borracha brasileira, que era nativa. A procura pelo produto brasileiro despencou no mercado internacional. Segundo a antropóloga e doutora em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília Mary Allegretti, nenhuma iniciativa de cultivo de borracha na Amazônia não teve sucesso.
Setenta anos separam Plácido de Castro do mais recente herói da história do Acre, Chico Mendes. Nesse período, o Acre presenciou sua decadência econômica nos anos 20, foi palco da "Batalha da Borracha" durante a Segunda Guerra Mundial e passou da categoria de Território para Estado Federal na década de 60. O governo militar implantou na Amazônia diversos projetos para integrar a região. Houve uma forte campanha para deslocar a população do Sul e do Sudeste para aquilo que era considerado o "filé mignon da Amazônia". A floresta foi desmatada para se transformar em pasto; alguns seringueiros continuavam extraindo o látex numa estratégia de subsistência; outros, desempregados, começaram a migrar para as cidades. Na década de 70, novas tensões sociais despontaram.
O contexto propiciou o surgimento de líderes que passaram a questionar a propriedade e o desmatamento e buscar soluções alternativas para o desenvolvimento sustentável da região. "A história da borracha criou uma sociedade", diz Mary. Essa sociedade entendeu que precisava cultivá-la sem destruir a floresta. Em 1975, o seringueiro Chico Mendes foi escolhido secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Basiléia, que acabava de ser fundado. E pôs em ação uma nova estratégia política, que batizou com a palavra "empates". Em entrevista ao Jornal do Brasil, 13 dias antes de morrer, Chico explicou como eram os empates: "É uma forma de luta que nós encontramos para impedir o desmatamento. É forma pacífica de resistência. (...) No empate, a comunidade se organiza, sob a liderança do sindicato, e, em mutirão, se dirige à área que será desmatada pelos pecuaristas. A gente se coloca diante dos peões e jagunços, com nossas famílias, mulheres, crianças e velhos, e pedimos para eles não desmatarem e se retirarem do local. Eles, como trabalhadores, estão também com o futuro ameaçado. E esse discurso, emocionado, sempre gera resultados. Até porque quem desmata é o peão simples, indefeso e inconsciente".
O economista Mário Lima ressalta que a liderança de Chico foi forjada na luta pela terra. O envolvimento com a ecologia surgiu mais adiante, nos anos 80. Sua proposta, de "União dos Povos da Floresta", ganhou repercussão internacional. A idéia era reunir os interesses dos seringueiros e dos índios em defesa da floresta amazônica.
Defesa da ecologia
Para Mary, Chico conseguiu sintetizar a história do passado e do futuro. Neto de um nordestino que chegou ao Acre para trabalhar no seringal, ele foi alfabetizado e, com isso, tornou-se capaz de fazer a mudança na forma de trabalhar e viver da terra. Em 1987, a ONU visitou Xapuri e comprovou a devastação das florestas e a expulsão dos seringueiros financiadas por corporações internacionais. Logo depois, Chico recebeu da própria ONU o prêmio Global 500, oferecido a pessoas que se destacam em defesa da ecologia. Em 22 de dezembro de 1988, o líder foi assassinado numa emboscada. Uma onda de violência havia atingido o Acre. Em 1989, a Anistia Internacional divulgou relatório que mostrava que 90 pessoas foram assassinadas no estado desde novembro de 1988.
Hoje, o mundo cobra do Brasil ações para evitar o desmatamento. A idéia de "florestania", continuação do pensamento de Chico Mendes, ganha força. Segundo o jornalista acreano Antonio Alves, que cunhou o termo, florestania é uma espécie de campo conceitual que envolve o sentimento de pertencer à floresta. "Esse sentimento pode orientar nossas escolhas políticas, sociais, econômicas, ambientais, culturais. Nossas decisões serão mais que coletivas, pois incluirão não apenas os interesses da sociedade, mas de todos os outros seres."
Revista História Viva
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