A coroação de espinhos. Óleo sobre tela de Franco Velasco, c. 1819.
No Direito romano, um processo é uma peça modesta encenada por três atores apenas: o acusador, o acusado e o juiz. No caso de Jesus, o acusador é, de fato, uma coletividade, que constitui uma pessoa moral, "os grão-sacerdotes e os anciãos do povo" (Mateus, 26, 3). Esses personagens são cortejados pelo Estado romano que apóia sempre e em toda parte os notáveis, mas, ao mesmo tempo, desprezados porque são judeus, isto é, pertencem a um povo vencido.
O acusado, Jesus, pertence à categoria dos "peregrinos": homem livre, ele não possui cidadania romana. Para os romanos, ele não passa de um vagabundo judeu, o que o torna duplamente indigno porque não exerce nenhuma profissão e é - de resto, como seus adversários - descendente de vencidos.
O juiz chama-se Pôncio Pilatos. Esse personagem histórico, bem conhecido aliás, exerce a função de governador da Judéia: encontrou-se uma inscrição mencionando seu nome na construção de um santuário em homenagem ao imperador Tibério (14-37 d.C.). Recrutado entre os cavaleiros, ele é mais versado na arte da guerra e das finanças do que nos assuntos de justiça. Além disso, para tomar suas decisões ele é assistido por um conselho formado de especialistas que não aparece nos Evangelhos seja porque o julgamento não é difícil de sentenciar, seja porque essa instância não desempenhou um grande papel nesse caso. Testemunhas podem ser intimadas; elas constituem, na verdade, o coro dessa tragédia.
Muitas instituições de hoje em dia não existiam no mundo romano, em particular, a polícia, o juiz de instrução e o ministério público (o procurador geral). Dessas ausências decorrem várias originalidades no processo judicial romano. Por exemplo, quando um cadáver era descoberto na rua, ninguém prevenia a polícia, que não existia, e ninguém confiava o caso a um juiz de instrução, que também não existia. Conforme a tradição, os passantes procuravam identificar a vítima e prevenir a família. Era ela que realizava a investigação e que indicava ao juiz a pessoa que considerava culpada. Compreende-se, portanto, que um homem sem família jamais seria vingado se fosse morto. Em seguida, o acusador devia convocar o acusado a se apresentar ao juiz e precisava obrigá-lo, se preciso, pela força, a comparecer perante a justiça. Em geral, as pessoas convocadas para um processo compareciam: não comparecer significava reconhecer a culpabilidade e, portanto, incorrer numa condenação.
O processo de Jesus é, a esse respeito, muito interessante. Os grão-sacerdotes e os anciãos do povo queriam arrastá-lo para o tribunal do governador. Era preciso primeiro encontrá-lo e foi aí que Judas interveio: por trinta denários, prometeu entregá-lo a eles. Disse-lhes que Jesus se retirara para o jardim de Gethsêmani e o indicou para seus contratadores. Esses enviaram seus homens para prendê-lo: "Falava ainda, quando chegou Judas, um dos doze, e com ele uma grande turba, com espadas e bastões, mandada pelos grão-sacerdotes e pelos anciãos do povo" (Mateus, 26, 47). Um de seus amigos tenta defendê-lo e fere um dos atacantes. Mas Jesus se recusa a ser socorrido por meio da violência: "Aquele que empunhar a espada, perecerá pela espada." Todo esse processo está conforme com o direito romano. Em alguns casos, os magistrados municipais enviavam seus escravos, por exemplo, para prender um homem que estivesse fazendo escândalo numa taverna. Ou então, recorriam a milícias locais, a associações de filhos de ricos, os juvenes, que ajudam voluntariamente na manutenção da ordem. Em situações excepcionais, o exército intervinha. Para os soldados se mexerem, era preciso que bandidos estivessem submetendo uma região Nesse caso, a intervenção se caracterizava por sua brevidade e dureza. Mas cada governador possuía uma guarda de honra que lhe permitia, em caso de necessidade, garantir as funções de polícia.
No começo, os romanos proibiam a profissão de advogado. Mas ninguém podia impedir um acusado de pedir a um bom orador, um bom conhecedor do Direito, de o ajudar "amigavelmente" em troca de um "presentinho." Foi assim que Cícero adquiriu celebridade e uma sólida fortuna. Plínio o Moço também advogava bastante: em sua correspondência, que data do início do século II de nossa era, ele menciona freqüentemente os casos em que interveio. Mesmo quando a profissão de advogado foi finalmente reconhecida, era preferível defender-se sozinho: era o indício de que não se tinha nada a temer.
Um dos processos mais conhecidos da Antigüidade teve como cenário Sabratha, na atual Líbia, e se desenrolou por volta de 158. O jovem Apuleio, celebrizado posteriormente como romancista, foi acusado por um membro da família de sua mulher de ter recorrido a práticas mágicas para seduzir aquela que se tornara sua esposa, uma mulher bem mais rica e mais idosa do que ele.
Na época, a acusação era grave e conduzia facilmente à morte. Diante do procônsul da África, de passagem pela cidade, Apuleio apresentou a própria defesa, a sua Apologia, texto que conservamos e que é muito instrutivo. Ele se compõe de três partes. Em primeiro lugar, ele afirma a honradez de sua pessoa. Em segundo, defende-se da acusação de magia. Mostra que as práticas que lhe foram recriminadas dizem respeito à ciência e não à magia. A procura de peixes raros pertence ao domínio das ciências naturais e, se ele pretendia praticar dissecações não era para enfeitiçar uma pessoa obviamente seduzida pelo seu encanto e sim para estudá-los porque era um sábio. Em terceiro, aborda os delitos menores que lhe foram imputados. No geral, transforma o processo em uma disputa opondo citadinos cultos a camponeses ignorantes. Naquelas condições, ele consegue a absolvição e percebe-se claramente o papel de três personagens, o acusador (membro de uma família), o acusado (Apuleio) e o juiz (o procônsul).
Esse caso de Sabratha ilustra que o exercício da justiça variava conforme ela fosse feita em Roma ou na província. Em Roma, durante o Alto Império (séculos I e II de nossa era), um processo podia seguir dois caminhos diferentes, dois tipos de procedimentos. O procedimento dito "formular" remontava a uma tradição que datava de um período recente, o fim da República. O acusador comparecia primeiro diante de um magistrado, o pretor, que "dizia o direito". Esse último pedia ao acusador que escrevesse sua petição e ao acusado, sua resposta. Com elas, ele redigia um texto, ou "fórmula", que continha os pontos de vista das duas partes e observações de Direito destinadas ao juiz. Depois, designava um juiz, um simples cidadão romano (no Império, essa escolha era confiada aos "decênviros encarregados do processo"). Os juízes, chamados centúnviros, são distribuídos em quatro, depois cinco cortes. Eles escutam as duas partes e as testemunhas, depois decidem. O objeto do litígio lhes deve ser apresentado, por exemplo, quando se trata de um escravo. Mesmo no caso de um bem imobiliário, como um campo, o demandante precisava apresentar uma parte simbólica, como um punhado de terra. O acusado também devia estar presente. Mas se ele tinha razões sérias para não estar lá, especialmente se estivesse doente, podia pedir um relatório ou se fazer representar. Se o dossiê lhes parecesse obscuro demais, os juízes podiam desistir pronunciando a fórmula: non liquet (não está claro, existe dúvida). Assim como o acusador devia obrigar o acusado a se apresentar, ele também devia obrigá-lo a pagar, não podendo contar com a força pública que não intervinha nos conflitos particulares. Às vezes, era preciso um segundo processo para obrigar um perdedor que fosse mau pagador. Nem mesmo os juizes eram profissionais do Direito. Como Pôncio Pilatos, eles precisavam se cercar de um conselho de especialistas.
Também o Senado possuía uma jurisdição. Ele julgava todos os casos envolvendo algum de seus membros e desempenhava, pois, o papel de uma alta corte. Mas ocorre que o imperador assistia a essas sessões e pesava nos resultados com a sua presença ou mesmo simplesmente enviando um de seus subordinados próximos, especialmente o prefeito da pretoria. Com efeito, é o principal do Senado que desempenhava um papel crescente como mostra outro procedimento, denominado "extraordinário" porque escapava à "ordem" dos juízes, que se desenvolvia com regularidade. Trata-se daquele que se desenrolava no tribunal do imperador ou de seus funcionários, como o prefeito da pretoria. Nesse caso, havia apenas uma etapa: acusador e acusado se encontravam diante de uma personagem que "diz o direito" e que, ao mesmo tempo, preenchia as funções de juiz. O desenvolvimento contínuo do poder imperial encontra uma boa ilustração ao se examinar as compilações de leis que foram elaboradas no Baixo Império, o Código teodosiano (438 d.C.) e o Código Justiniano (534). Eles retomam uma velha tradição (gravura das Doze Tábuas, primeiro Código romano escrito em 450-451 a.C.) e permitem ver como as decisões imperiais foram se impondo aos poucos.
Nas províncias, o caso podia ser tratado em nível municipal se não oferecesse grande importância. Cada cidade elegia, todos os anos, dois magistrados cujo título era explícito, os "duúnviros encarregados de dizer o direito". Diante deles compareciam os ladrões de galinha e os autores de agressões físicas nas tavernas. Nos casos mais importantes, era o governador da província que intervinha na qualidade de juiz supremo.
No século I, a Judéia era uma pequena província submetida à autoridade do imperador e não do Senado - na verdade, sob Tibério, ela não era uma província de direito, mas de fato: constituía um território dependente da Síria, de maneira teórica, é bem verdade. Naquela época, ela estava confiada a um "prefeito" e não a um "procurador", como dizem, de maneira anacrônica, os Evangelhos (ou, pelo menos, sua tradução em latim). O fato de Jesus ser denunciado diante do Sinédrio não apresentava nenhum interesse para o Direito romano. Essa assembléia de notáveis judeus não tinha poderes amplos e não recebia o "direito de espada", isto é, o direito de vida e morte. Mas essa passagem tinha um impacto político e psicológico. Mostrava ao governador o sentimento das elites sociais locais. Embora ele zombasse desse sentimento quando se tratava dos interesses de Roma, tinha interesse de levar em conta o que não dizia respeito diretamente à autoridade do império.
O processo de Jesus ilustra perfeitamente o procedimento "extraordinário" porque Pôncio Pilatos agiu na condição de representante do imperador. Ele teve apenas uma fase, portanto, diante do governador que era, ao mesmo tempo, o personagem que "diz o direito" e que pronunciava a sentença. Ali se encontraram os três personagens esperados, o acusador, o acusado e o representante da autoridade. Os "grão-sacerdotes e os anciãos do povo" conduziram a acusação, relembrando o que foi dito no Sinédrio: Jesus declarara ser o rei dos judeus. Agora era a vez de Pôncio Pilatos intervir. Ele perguntou a Jesus: "Tu és o rei dos judeus?" (Mateus, 27 11). Se Jesus respondesse "sim", ele se colocaria numa posição indefensável: reconheceria a intenção de insultar a autoridade de Roma e de seu imperador. Ele também podia dizer "não" e o governador certamente o liberaria. Mas Jesus não reagiu, não disse nada, o que provocou o espanto de Pilatos. O acusado permaneceu mudo. E, claro, ele era pobre demais para pagar um advogado. Aí o juiz sentenciou. Diante dos clamores do povo e levando em conta a atitude dos notáveis de Jerusalém, ele julgou mais político condená-lo à pena de morte por crucificação. Nesse caso, o condenado não valia grande coisa aos olhos do governador: seu meio social e sua origem étnica não depunham a seu favor. Além disso, sua atitude, seu silêncio o prejudicaram.
O processo termina aí porque Jesus, tendo status de peregrino, não pode apelar. Ao contrário, alguns anos mais tarde, Paulo, que é cidadão romano, pede por duas vezes o benefício da apelação a César e, por duas vezes, vai a Roma. Seja como for, essa audiência com o comparecimento de Jesus diante de Pilatos também está conforme com o Direito romano.
Na justiça romana, o exército gozava de uma situação particular. Os militares, como em muitos Estados, mesmo os modernos, escapam à lei dos civis. Nos assuntos de disciplina, em caso de delitos leves, os oficiais, centuriões e tribunos, podem distribuir punições. Os casos graves são julgados numa instância superior.
O tratado de Tertuliano, Da coroa, ilustra essa hierarquia a um só tempo militar e judiciária. A história se passa em Roma no início do século III. Um soldado cristão recusa-se a participar de uma cerimônia pagã e, no meio das festividades, joga no chão seu capacete e a coroa de folhas que simboliza sua participação nos ritos do culto imperial. O centurião que o comanda ordena-lhe que volte às fileiras. Ele se recusa. O tribuno repete a ordem. Nova recusa. O cristão é preso e depois denunciado aos prefeitos da pretoria que prontamente o condenam à morte. Ele se torna um mártir, então.
Mais simples que nosso Direito moderno, o Direito romano apresenta características que lhe são próprias. Estas são três dessas características. Primeiro de tudo, embora seja tão formalista quanto a nossa, a prática judiciária dos romanos o é de uma forma diferente. Por um lado, a preocupação com a forma é indiscutível. O jurista Gaio narra assim uma anedota célebre. Um camponês que viu suas vinhas serem cortadas por um vizinho move uma ação "por vinhas cortadas", e a perde porque teria que ter agido "por árvores cortadas".
Por outro, é impensável um criminoso ser libertado por "vício de forma", o que se explica por uma outra escolha dos romanos: os direitos da vítima são privilegiados. Esse é um segundo traço do direito romano. Uma outra anedota o ilustra. O imperador Galba foi governador na Espanha antes de perder o poder. Nessa região, teve de julgar um caso abominável: um tutor matou seu pupilo para se apoderar de seus bens. O homem confessa e há testemunhas. Galba o condena à morte por crucificação. O assassino faz valer o fato de ser cidadão romano e pede para ser exercido seu direito de apelação e para ser julgado novamente, em Roma, pelo imperador. Galba recusa: o crime é evidente demais e a execução da sentença não deve ser adiada. Nova objeção do condenado: ele não deve ser submetido a uma pena infamante e pede para ser decapitado. Nova recusa de Galba, que lhe concede que seja crucificado numa cruz maior que as outras e pintada de branco para que se saiba que ele não é qualquer um. E assim foi feito.
Por fim, o acusado, sobretudo quando é condenado, não se beneficia de nenhuma proteção. Os guardiões, o povo que assiste à aplicação do castigo e os soldados que o aplicam podem lhe infligir sofrimentos suplementares sem que ninguém se comova. Os golpes e humilhações são parte da pena. O suplício de Jesus é, a um só tempo, exemplar e banal. Primeiro são os militares que o fazem padecer. "... E tecendo uma coroa de espinhos, puseram-lha na cabeça e na mão direita uma vara... e cuspindo-lhe, tomavam a vara e batiam-lhe com ela na cabeça". A turba dá sua contribuição em seguida. "Os transeuntes, abanando a cabeça, o insultavam... os grão-sacerdotes zombavam... Do mesmo modo o ultrajavam também os ladrões, crucificados com ele" (Mateus, 27).
Voltando à questão inicial: Jesus teve um processo justo? Para os cristãos, ele foi vítima do ato mais odioso possível, um deicídio. Para os homens de hoje, ele foi julgado e executado em condições terríveis e cruéis. Mas o historiador não deve julgar em função da época em que ele vive, mas em função da época que estuda. Nessas condições, é forçoso constatar que, do ponto de vista estrito do Direito romano, não há nenhuma ressalva a fazer na maneira como Pôncio Pilatos conduziu o processo.
Yann Le Bohec é professor de história romana da Universidade de Paris IV - Sorbonne. Ele é autor de César, chef de guerre (éd.du Rocher, 2001), de L`Armée romaine du Haut-Empire (Picard, 2002) e de Histoire militaire des guerres puniques (ed. du Rocher, 2003).
Revista Historia Viva