Os analectos
A melhor fonte para se entender e estudar o confucionismo em seus primórdios advêm das páginas dos analectos (Lun yü em chinês), escrito por seus discípulos após a morte do mestre. Depois desta obra, outra fonte importante é o Mencius, escrita por Mêncio o qual fora um filósofo confucionista, tendo escrito sua obra no século III a.C, quase duzentos anos depois da morte de Confúcio.
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Mêncio (370-289 a.C). Proeminente seguidor do confucionismo |
Nesse falarei um pouco dos analectos antes de adentrar a falar propriamente da doutrina confucionista. Não se sabe exatamente em que época Os analectos foram escritos, e através de alguns estudos, constatou-se que os livros que compõem a obra, não datam do mesmo período. Fato este que no livro Han shu (História da Dinastia Han) escrito por Pan Ku, por volta do século I a.C, o autor cita três versões do Lun yü:
- Lu lun (versão de Lu, com vinte livros)
- Ch'in lun (versão de Ch'in, com vinte e dois livros)
- Ku lun (versão encontrada escondida na casa de Confúcio com vinte e um livros).
Nesse caso, a versão que utilizei para realizar este trabalho corresponde a versão Lu lun com vinte livros. Todavia, alguns comentaristas sobre Os analectos, apontam que o Ch'in lun além de ter dois capítulos a mais, também possuía mais frases e ensinamentos de Confúcio e seus discípulos, embora que hoje em dia haja desconfiança quanto a credibilidade daqueles versos, fato este que não podemos nos esquecer que Confúcio, se tornou uma pessoa famosa e até lendária, logo as pessoas queriam se promover através de sua fama, de forma honesta o desonesta, daí haver tais variações na obra dos analectos.
"Lu Te-ming cita Huan T'an (24 a.C - 56 d.C), dizendo no seu Hsin Lun que no Ku Lun a ordem dos capítulos era diferente e que havia mais do que quatrocentas variantes. Algumas das variantes das três versões foram registradas por intelectuais em uma época que elas ainda existiam e foram coletadas assiduamente por críticos em séculos recentes, mas tais leituras muito ocasionalmente lançam alguma luz sobre o significado das passagens". (LAU, 2011, p. 228).
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Uma página de Os analectos (Lun yü) |
Não obstante, outros autores fizeram suas próprias edições comentadas dos analectos nos séculos seguintes, todavia, a versão mais estudada e respeitada e o Lu lun, já que é a mais antiga conhecida. De qualquer forma, não me prenderei aqui a debater acerca das especifidades contidas em cada versão, embora possuo material para fazê-lo. O importante é que o leitor saiba que independente de possuir vinte ou mais capítulos, a obra em si, traz conversas entre Confúcio e seus discípulos, entre ele e outras pessoas, principalmente pessoas ligadas a corte e ao Estado. Traz relatos da vida de Confúcio, descritos pelos discípulos; traz perguntas feitas ao mestre e as respostas dadas; traz conversas entre os os próprios discípulos; citações das Odes como referência; menções a pessoas e fatos históricos anteriores a Confúcio. Embrenhado nessas páginas, pode-se retirar os ensinamentos do velho mestre.
O cavalheiro
Para se compreender a doutrina do confucionismo, devemos primeiro entender o ideal do cavalheiro. Confúcio falava em dois tipos de cavalheiro: o Cavalheiro (shih) que corresponde ao título nobiliárquico e o cavalheiro (chün tzu), no sentido de cavalheirismo, cordialidade. Nesse caso, ele dizia que um homem bom deveria ser um cavalheiro, já que este segue os ritos, sabe usar as Odes nas conversas; é um homem de coragem, de honra, de palavra, que busca pregar a benevolência, a humildade, trilhar o caminho do conhecimento em busca do aperfeiçoamento. Sendo assim, viver como um cavalheiro, era viver de forma digna, honesta e complacente. Era viver não apenas por si, mas viver por aqueles que amava, por aqueles a quem servia, por aqueles a quem ajudava.
"O Mestre disse: "O cavalheiro não almeja nem uma barriga cheia e nem uma casa confortável. Ele é rápido na ação, mas cauteloso com o que diz. Ele se dirije a homens virtuosos para receber orientação. Tal homem pode ser descrito como alguém ávido por aprender". (I.14).
Tseng Tzu um dos discípulos de Confúcio dissera o seguinte sobre ser um cavalheiro:
"Há três coisas que um cavalheiro mais valoriza no Caminho: ficar longe de violência ao apresentar uma aparência séria, tornar-se confiável ao mostrar no rosto uma expressão apropriada e evitar ser entendiante e pouco razoável ao falar em tom apropriado. Quanto as questões da liturgia ritual, há oficiais responsáveis por isso". (VIII.4).
O cavalheiro era a oposição ao "homem vulgar", na versão original, tal individuo era chamado de "homem pequeno", nesse caso pequeno não na estatura, mas pequeno no caráter. Confúcio dizia que os "homens vulgares", eram pessoas ignorantes, tolas, preguiçosas, corruptas, falsas, egoístas, mesquinhas, orgulhosas, em suma tudo aquilo que era diferente da conduta de um cavalheiro. No entanto, para ele a única coisa pior que um "homem vulgar" era um "bárbaro".
"O Mestre disse: "Tribos bárbaras com seus líderes são inferiores aos reinos chineses sem seu líderes"". (III.4).
"O Mestre disse: "O cavalheiro ajuda os outros a perceberam o que há de bom neles; não os ajuda a perceberem o que há de ruim. O homem vulgar faz o contrário". (XII.16).
Os chineses antigos consideravam todos os outros povos como bárbaros, uns mais que os outros. Mas, nesse caso, naquela época, povos como os hunos, tártaros e mongóis, eram os principais "bárbaros" que atacavam os reinos mais ao norte. Confúcio dizia que o cavalheiro deveria tentar educar os "homens vulgares", para que os trouxessem para o caminho correto, embora como ele mesmo falava, isso não dependia apenas do cavalheiro, mas da pessoa querer mudar. Daí, ele em alguns trechos dos analectos, refuta sua ideia da ignorância dessas pessoas.
"O Mestre disse: "Enquanto o cavalheiro acalenta o bom governo, o homem vulgar acalenta sua terra natal. Enquanto o cavalheiro acalenta respeito pela lei, o homem vulgar acalenta um tratamento generoso"". (IV.11).
"O Mestre disse: "Os erros de um homem são condizentes ao tipo de pessoa que ele é. Observe os erros e você conhecerá o homem"". (IV.7).
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Templo confucionista em Nagasaki, Japão. |
A doutrina
Se até aqui já compreendemos o que é ser um cavalheiro e seu dever. É chegado a hora de saber os princípios pelos quais este cavalheiro e qualquer outra pessoa pode seguir. Embora que possa-se destrinchar muitos princípios baseados na fala de Confúcio, citarei aqui os principais e mais relevantes que acredito serem. Confúcio dizia que três princípios deveriam ser básicos para as pessoas: benevolência, sabedoria e coragem. Tendo estes três princípios ou virtudes, o individuo poderia partir para os outros princípios complementares, embora isso não fosse algo necessário como ele ressalva. Antes de prosseguir nesta discussão sobre a doutrina, irei apresentar esses princípios, baseado na minha interpretação:- Benevolência
- Sabedoria
- Coragem
- Humildade
- Amizade
- Honra
- Caminho (Tao)
- Autoaperfeiçoamento
- Moral
- Respeito
- Lealdade
- Piedade
- Honestidade
Em suma estes são os principais princípios ou virtudes do confucionismo. Confúcio procurava ensinar isso aos seus discípulos e a todos que procuravam seus conselhos. Para ele, através da prática destes preceitos, as pessoas se tornariam melhores e poderiam tornar o mundo melhor. Todavia, muitos destes princípios estão ligados diretamente a prática da benevolência e da sabedoria. Para se entender melhor isso, citarei algumas de suas conversas e frases que exprimem sua visão acerca destes princípios.
A benevolência (jen) não era um ensinamento novo na época de Confúcio, contudo ele o resgatara. Ele dizia que a benevolência, ou seja, viver de forma digna, ajudar aos outros quando em necessidade, não praticar o mal, combater o mal, era o principal caminho que os homens deveriam seguir, embora que ser um homem verdadeiramente benevolente era quase que impossível, já que como ele cita, os homens eram imperfeitos.
"O homem benevolente é atraído pela benevolência porque ele se sente confortável com ela. O homem sábio é atraído pela benevolência porque percebe que ela é lhe favorável". (IV.2).
"Se um homem aplica seu coração no caminho da benevolência, ele estará livre do mal". (IV.4).
"O Mestre disse: "Força inquebrantável, resolução, simplicidade e reticência são próximas da benevolência". (XIII.27).
"O Mestre disse: "Em seu coração, Hui pode praticar a benevolência durante três meses ininterruptos. Os outros atingem a benevolência meramente por ataques repentinos". (VI.7).
Até mesmo Yuan Hui, não era considerado totalmente benevolente. Em um desabafo seu, Confúcio, disse que nunca conhecera um homem que pudesse ser chamado benevolente por completo. Tal fato reafirma sua ideia em dizer que os homens não podiam alcançar a perfeição.
A partir da benevolência, outras virtudes, como lealdade, humildade, honestidade, honra, piedade, respeito, etc, partiam. Embora que nem todos possuem tais virtudes, e mesmo que as possuíssem, uns mais e outros menos.
"O Mestre disse: "Não se preocupe por não ter um cargo oficial. Preocupe-se com suas qualificações. Não se preocupe porque ninguém apreciar suas qualidades. Procure ser merecedor de apreço". (IV. 14).
"O Mestre disse: "Na Antiguidade, os homens relutavam em falar. Isso porque consideravam vergonhoso se não conseguissem ser fiéis as suas palavras". (V.22).
"Meng Wu Po perguntou sobre piedade filial. O Mestre disse: "Não dê ao seu pai e à sua mãe nenhuma outra causa de preocupação além da doença". (II.6).
A sabedoria (chih) era outro assunto importante da doutrina confucionista. Embora que Confúcio fosse chamado de sábio por muitos, ele nunca se chamou de sábio ou se considerava um. Ele dizia, que houveram sábios, no entanto, ele ainda não era um destes. Esse fato é curioso, se lembrarmos que Sócrates (469-399 a.C) também teria dito o mesmo. O filósofo grego assim como o filósofo chinês, questionaram sua própria sabedoria.
Sabedoria era uma das virtudes que marcava o cavalheiro, além disso, Confúcio também dizia que o cavalheiro além de ser sábio era um homem inteligente. Nesse caso, o conhecimento, como já fora dito neste texto anteriormente, era visto por Confúcio como contínuo, ou seja, um "eterno aprendizado". Daí, o mesmo falar em autoaperfeiçoamento, implicando em se dizer, que o individuo deveria sempre buscar se melhorar, fosse através do estudo ou de suas ações. Confúcio se via nesse exemplo. Filho órfão de uma família pobre, conseguiu se tornar alguém na vida através dos estudos.
"O Mestre disse: "O sábio encontra alegria na água. O benevolente encontra alegria nas montanhas. Os sábios são ativos, os benevolentes são plácidos. Os sábios são alegres; os benevolentes são longevos". (VI.23).
"Um homem sábio nunca fica indeciso sobre seu julgamento sobre o certo e o errado. Um homem que não é sábio, entretanto pode facilmente confundir um hipócrita pelo genuíno". (LAU, 2011, p. 24).
"Fan Ch'ih perguntou sobre benevolência. O Mestre disse: "Ame os seus semelhantes". Ele perguntou sobre a sabedoria. O Mestre disse: "Conheça os homens"". (XIII.22).
"O Mestre disse: "O homem sábio nunca fica indeciso; O homem benevolente nunca fica aflito. O homem corajoso nunca tem medo". (IX.29).
Coragem (yung) era um terceiro aspecto que ponderava a virtude de um cavalheiro. Nesse caso, Confúcio não referia-se apenas a bravura, ou a coragem de não se ter medo do perigo, a "coragem de força", mas falava também na "coragem de determinação". Ele dizia, que os homens devem ter coragem para realizar aquilo o que procuram, nesse caso, ter coragem em tomar decisões. Um fato interessante, é que ele dizia que se você era um homem justo e bom, e procurava ser benevolente, deveria ter coragem em ajudar os outros e aplicar sua bondade. Se você era um homem sábio e culto, deveria ter coragem em ensinar os outros.
"O Mestre disse: "Um homem de virtude com certeza é autor de dizeres memoráveis, mas o autor de dizeres memoráveis não necessariamente é virtuoso. Um homem benevolente com certeza é corajoso, mas um homem corajoso não necessariamente é benevolente". (XIV.4).
A coragem era uma faca de dois gumes, como Confúcio bem observou. O homem corajoso poderia tanto aplicar sua coragem para o bem ou para o mal. No caso do cavalheiro, este era guiado pelo respeito aos ritos (li) e pelo respeito ao próximo, sendo assim, o cavalheiro possuía moral e ética, para guiá-lo. Um homem que não possuísse isso, seria guiado por sua própria vontade, por sua ambição, por seu ego, por seus desejos.
"Para o cavalheiro, é a moralidade que é suprema. Com coragem mais desprovido de moralidade, um cavalheiro causará problemas, ao passo que um homem vulgar se tornará um bandido". (XVII.23).
Por fim encerro aqui este texto a respeito da vida e o obra deste grande filósofo, pouco conhecido para nós ocidentais. Embora muitos devam achar que o que Confúcio disse não é novidade nenhuma, devemos antes de afirmar isso, lembrar que, este homem viveu há 2.500 anos, que no tempo dele, isso fora novidade. E no entanto, se pensarmos bem, a doutrina que Confúcio aplicou em sua época, também pode ser aplicada nos dias de hoje, já que alguns problemas que ele vivenciou em seu tempo, são os mesmos hoje em dia. Os homens podem ter evoluído de forma vertiginosa nas ciências e na tecnologia, mas a evolução do seu caráter e de seu espírito ainda é lenta.
NOTA: Para mais informações sobre o confucionismo recomendo lerem Os analectos. Uma boa sugestão é a versão comentada de D. C. Lau.
Referência Bibliográfica:
CONFÚCIO. Os analectos. Tradução do chinês, introdução e notas, D. C. Lau. Tradução do inglês de Caroline Chang. Porto Alegre, L&PM, 2011.