Franklin Leopoldo e Silva
Se a filosofia é a tentativa de compreensão da condição humana, então a questão do mal ocupa o centro das preocupações ? e a marca profunda que a tradição socrático-platônica deixou na constituição da herança filosófica bastaria para atestá-lo. Mesmo quando o questionamento se dá por via de uma racionalidade mais formal e orientada por paradigmas que desprezam as orientações ditas ?metafísicas?, o mal não deixa de aparecer como uma constatação inseparável de certa perplexidade, oculta sob a aceitação dos limites da razão e do rigor da argumentação. Mais do que isso, ainda que o cinismo, contemporaneamente tão difundido, nos faça aceitar o mal como realidade dada ou como banalidade, essa pretensa certeza primária não nos isenta do incômodo presente na má-fé inerente ao conformismo e à indiferença ética.
Mas há também as decisões e ações que derivam de nossa liberdade. Desde Aristóteles, persiste a ideia de que a prática é muito mais complexa do que a teoria, porque no universo das ações não podemos mobilizar e esgotar todos os elementos que nos proporcionariam a certeza do acerto das escolhas. O bem não é demonstrável como a verdade. Tudo que podemos fazer é contar com um discernimento, espécie de sabedoria prática, que empregamos na tentativa de que nossas opções se orientem pelo critério do melhor possível, sem esperar a segurança proporcionada pela dedução da verdade teórica. Por isso o mal nos espreita como presença proporcional ao grau de imprudência a que estamos, inevitavelmente, sujeitos.
A filosofia cristã enfrenta ainda outra dificuldade. Como Deus só pode ser considerado como o bem e causa do bem, a criação está necessariamente impregnada de bondade e perfeição, o que torna o mal inexplicável do ponto de vista da criação divina. A rigor, o mal não deveria existir. Para dar conta de sua presença na experiência humana, Santo Agostinho apela para a diferença entre o relativo e o absoluto. Criaturas limitadas que somos, e inclinadas à corrupção desde o pecado original, não discernimos, em nossas escolhas, o bem absoluto que deveria ser a nossa meta, mas nos contentamos com os bens relativos, exacerbando-lhes a dimensão e o significado, de modo que apareçam como absolutos. Em outras palavras, não distinguimos, via de regra, o fim supremo dos meios relativos pelos quais poderíamos atingi-lo. Assim nunca escolhemos o mal, porque ele em si mesmo não existe; escolhemos um bem menor e o elegemos como o que de maior poderíamos desejar.
A tese é paradoxal: aquilo que nos faz semelhantes a Deus é também aquilo que nos leva ao erro e ao pecado. Mas é também uma estratégia eficiente quanto ao poder explicativo da dificuldade em pauta: Deus nada tem que ver com o erro e o mal, já que não podemos contestar a dimensão finita do entendimento, o que é natural e coerente em criaturas finitas; e muito menos podemos lamentar a liberdade absoluta, que é em si mesma um bem, pois nos remete à nossa origem divina. Com efeito, a desproporção entre intelecto limitado e vontade ilimitada diz muito sobre a nossa natureza: somos criaturas e, nesse sentido, não somos perfeitos; mas somos criaturas de Deus e, nesse sentido, trazemos em nós a marca da perfeição do criador. Ontologicamente, a natureza da criatura traz em si uma divisão: de um lado, a absoluta perfeição do criador, isto é, sua realidade infinita; de outro, o nada de que fomos feitos, ausência de ser e negatividade. Isso permite entender por que podemos desejar tudo e podemos saber muito pouco. E nos ajuda a entender também o aspecto ético da divisão que nos afeta: o ser em plenitude, isto é, o bem, e o não ser, o nada, ausência do bem.
Mas essa desproporção não nos condena ao erro e ao mal. A completa liberdade de que dispomos não apenas nos conduz a afirmar ou a negar qualquer coisa, mas também a suspender o juízo nas circunstâncias em que o entendimento não oferece suficiente respaldo para emitir um juízo. Lembremo-nos do principal preceito metódico: só devo aceitar como verdade representações claras e distintas. Quando não disponho delas, a prudência recomenda permanecer no estado de suspensão de juízo, para não cair em erro. Ora, há que se observar que as verdades da fé estão além do entendimento e, no entanto, são necessárias para orientar eticamente a conduta, pois justificam escolhas e ações que muitas vezes não poderiam ser submetidas à racionalidade do juízo objetivo. Nesse caso, se admito que tais verdades se situam além do poder de conhecimento e, portanto, além da dúvida, devo aceitá-las por via de outros critérios, aqueles que regulam a crença, mesmo porque os fundamentos da crença, como por exemplo a existência de Deus, podem ser submetidos ao crivo da razão.
Mas isso não ocorre apenas por via de um equívoco racional; a causa é também uma contradição que pode acontecer no uso da liberdade, quando o indivíduo abdica de sua condição de sujeito da própria liberdade, entregando-a a poderes que o sobrepujam absolutamente. Os grandes exemplos, como se sabe, foram as manifestações de violência do século 20 que produziram os genocídios, isto é, o mal racionalmente administrado: Auschwitz, Gulags, Hiroshima.
Assim, é a reflexão que nos leva ao espanto, e é este que nos leva às interrogações angustiadas. Como poderíamos reduzir a meras aparências ações como a tortura, o assassinato, a opressão e a dilapidação da dignidade? Se nos sentimos constrangidos e incomodados quando temos de admitir anaturalidade de catástrofes como inundações ou terremotos, como poderíamos considerar que o sofrimento que um ser humano inflige a outro seria apenas a aparência localizada do bem em sua totalidade? Se temos dificuldade em admitir que o castigo pode ser fruto da justiça divina, como poderíamos entender que a dor e a morte provocadas pelo próprio homem possam estar inseridas numa arquitetônica racional do mundo?
Talvez devamos aceitar o caráter incompreensível do mal, isto é, que, diante dele, o que está em jogo não é explicação ou compreensão, mas sim revolta ou resignação. E que o mal e o bem, na medida em que se referem à nossa liberdade, dizem respeito à afetividade, à relação não reflexiva que mantemos com nós mesmos e com o que nos transcende, sejam os outros, seja Deus. Nesse tipo de relação, em que a negatividade aparece por vezes como uma potência assustadora, é provável que a perplexidade predomine sobre o entendimento, mas é possível também que ela nos mova e nos faça agir tanto ou mais do que o conhecimento.
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