por Jorge Caldeira
Nas ruas da pequena vila de São Paulo, desde a fundação até o século XVIII, a maioria das pessoas falava na língua geral tupi. Num tempo em que o comportamento português, nas palavras do primeiro historiador da terra brasílica, Frei Vicente de Salvador, era o de arranhar o litoral feito caranguejos, estes habitantes andavam na direção contrária: em 1700 a área da vila vinha a ser um sertão que ia do Rio Grande do Sul a Minas Gerais, no sentido norte-sul, e da Serra do Espinhaço ao Mato Grosso, no leste-oeste.
A relação com os índios se dava sentido à existência da pequena vila e a seu imenso sertão, incomodava até mesmo portugueses como Jorge Macedo. Depois de uma estada em São Paulo em 1679, escreveu ao rei: são gente inútil para o serviço de Sua Alteza e mui danosa por inquietadores e perturbadores de toda disciplina. Esta fama de pouco obedientes já havia ultrapassado fronteiras há muito tempo. Em 1639, o rei Felipe IV, da Espanha, lançou uma cédula condenando bandeirantes passados e futuros à pena da perda dos bens e das vidas, devendo ser enquadrados em tribunal da Inquisição.
A carga moral negativa de indisciplina, selvageria e heresia, marcou o adjetivo paulista desde seu surgimento, no início do século XVII. Neste momento, é bom lembrar, havia a capitania de São Vicente, e o adjetivo se aplicava apenas aos moradores da vila planaltina.
Obviamente os paulistas não se viam nem como selvagens, muito menos como hereges. Mas eram quase todos analfabetos, de modo que suas opiniões a respeito de si mesmos, nas raras ocasiões em que chegaram a ser escritas, contaram muito menos que aquelas de seus detratores para formar uma imagem.
Só no século XX, quando a cidade enriqueceu, surgiu a versão que concentrava bons valores morais nos antepassados bandeirantes, transformados em heróis fundadores do Brasil. Mas a onda durou pouco: já nos anos 30, os paulistas começaram a ser enquadrados como invasores brancos e escravizadores de índios. A diferença entre a versão coeva negativa e esta, até hoje considerada politicamente correta, é que os tais invasores são pensados como europeus, enquanto no século XVII eram condenados por serem mestiços, mamelucos. Há assim um embranquecimento dos bandeirantes.
Este fator de correção política do passado é complementado por outro, de origem antropológica. Enquanto o movimento negro contabiliza descendentes mestiços como pertencentes ao grupo, os descendentes mistos de indígenas são vistos por historiadores e antropólogos como pertencentes a outras etnias.
Disto tudo resulta que o século e meio onde São Paulo foi uma vila de língua tupi esteja praticamente apagado da memória de seus habitantes no momento em que a cidade completa seus 450 anos.
Jorge Caldeira é jornalista e historiador. Autor, entre outros, de Noel Rosa, de Costas para o Mar(1981), Mauá, Empresário do Império (1995) e A Nação Mercantilista (1999).
Revista Historia Viva
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