Relatos de aventureiros, religiosos, espiões e funcionários da Coroa inventariaram as riquezas e viabilizaram a colonização do Brasil
Ronald RaminelliPor intermédio das viagens, europeus e colonos realizaram um minucioso inventário do Brasil. Durante o percurso, o viajante produziu narrativas, redigiu cartas, desenhou mapas, coletou amostras dos três reinos da natureza e artefatos da cultura indígena. As viagens possuem um profundo vínculo com os interesses da colonização, inventariando as potencialidades e os entraves ao estabelecimento colonial. Inúmeros viajantes percorreram o Brasil: eram religiosos (católicos ou protestantes), aventureiros, espiões e administradores coloniais. Além dos lusitanos, houve franceses, ingleses, holandeses que pretendiam comercializar produtos e, por vezes, estabelecer colônias. Geralmente, as primeiras explorações não possuíam objetivos ou finalidades precisas e relatavam os mais diferentes aspectos do Brasil. Somente na segunda metade do século 18, elas ganhariam atribuições específicas e instruções de viagem. Das viagens originaram inventários destinados a conhecer o Brasil em três aspectos básicos: a geografia, os costumes e a natureza.
Os inventários geográficos, inicialmente, descreveram o litoral para fornecer subsídios para cartografia do Brasil. A partir de meados do século 17, os colonos passaram a freqüentar o interior, restava conhecer os sertões de Minas Gerais, Amazônia e Mato-Grosso. Sua finalidade era a conquista ou a manutenção da conquista, procedimento básico para viabilizar a colonização. Gabriel Soares de Sousa escreveu, em 1587, um minucioso roteiro geral da costa do Brasil. Do percurso entre o rio Amazonas ao rio da Prata, ele forneceu as distâncias entre os acidentes geográficos, escreveu uma pequena história da ocupação lusitana e localizou as atividades econômicas ao longo do litoral.
Na década de 1630, realizou-se a importante viagem pelo rio Amazonas de Pedro Teixeira, que redescobriu a passagem entre o oceano Atlântico e o Peru. Desde então, os portugueses iniciaram o processo de ocupação da vasta bacia amazônica. No século 18, iniciou-se uma nova leva das viagens demarcadoras. Pautados nos princípios iluministas, os viajantes recorriam à ciência para dinamizar a economia e delimitar as fronteiras do império português. Os engenheiros-cartógrafos organizavam expedições, anotavam informações, escreviam relatórios e cartografavam o território, pautados em observações astronômicas, cálculos de geometria, trigonometria plana e álgebra.
Francisco José de Lacerda e Almeida viajou pelo interior do Brasil, entre 1780 e 1790. Formado em matemática na Universidade de Coimbra, percorreu estradas fluviais da maior importância para a comunicação do Brasil: a ligação entre Belém e São Paulo. A viagem demarcadora não possuía apenas o interesse em delimitar os espaços, mas inventariar as potencialidades econômicas contidas no território. Partindo do princípio de uti possidetis, os colonos deveriam efetivamente ocupar o território, para assegurar a posse. Assim, as viagens realizavam levantamentos sobre fertilidade da terra, circulação de mercadorias, dinâmica demográfica e construção de fortalezas. A criação de núcleos populacionais e os empreendimentos agrícolas seriam indispensáveis para o controle das fronteiras.
Quanto aos inventários etnográficos, vale advertir que jamais existiu, no período colonial, uma viagem dedicada exclusivamente a descrever os costumes. A etnografia é um ramo do conhecimento que se consolidou apenas no século 20. Há, no entanto, um número significativo de viajantes e missionários que testemunharam o cotidiano colonial, e sobretudo o indígena.
Esses relatos possuem igualmente a lógica colonial, pois surgiram da necessidade de conhecer os grupos indígenas, integrá-los ao trabalho e convertê-los ao cristianismo. Os conquistadores necessitavam de informes sobre as guerras intertribais para viabilizar a colonização. Contando com o apoio de tribos aliadas, os portugueses fomentavam rivalidades, dominavam áreas controladas por tribos rivais e capturavam prisioneiros de guerra que se tornariam escravos. Os missionários, por sua vez, enfrentavam as adversidades do meio em busca de almas para convertê-las ao cristianismo. Nos primeiros séculos, os índios do litoral receberam a atenção dos colonizadores.
Alguns temas foram abordados com muito freqüência: o canibalismo, a nudez, as guerras, a culinária e o saber indígena sobre a natureza, como nos escritos de Cardim, Soares de Sousa, Thevet, Léry e Abbeville, entre outros. No século 18, as viagens etnográficas percorreram o interior, e a Amazônia tornou-se o espaço privilegiado de observações e reformas. No interesse de dinamizar a exploração econômica e a posse das conquistas em áreas de litígio, a coroa portuguesa enviou dezenas de viajantes para a região. Comparadas às quinhentistas e seiscentistas, as viagens pela Amazônia não produziram relatos etnográficos com a mesma complexidade.
Há razões para explicar o fenômeno: a diversidade de grupos lingüísticos (Aruak, Tupi e Karib), certamente, dificultou o entendimento das culturais locais; os colonos e missionários formaram aldeias multi-étnicas que impediam a preservação das culturas e línguas; os interesses econômicos e, sobretudo demográficos, produziram mapas populacionais, destinados a avaliar a capacidade produtiva da população. Com esses levantamentos podia-se verificar a difusão de doenças e o extermínio de centenas de comunidades indígenas. Esses fatores, enfim, explicam o desinteresse pelos aspectos culturais das comunidades amazônicas.
Quanto aos inventários científicos, sua principal característica é coligir informações sobre a natureza. No período colonial, porém, poucos viajantes contribuíram para os avanços da ciência européia. No entanto, há vários escritos destinados a realizar um inventário da fauna e flora, segundo a lógica da colonização: a natureza era considerada como útil ou nociva à sobrevivência dos europeus nos trópicos.
O padre Anchieta, em 1560, escreveu uma carta onde demonstrou um verdadeiro pendor naturalístico e forneceu notícias sobre várias espécies. Thevet, Léry e Gabriel Soares de Sousa, entre outros, descreveram plantas e animais, sempre enfatizando seus aspectos utilitaristas. Em 1624, o frei Cristóvão de Lisboa concebeu uma obra singular onde desenhou e realizou pequenos comentários sobre as espécies do Maranhão. Por muito tempo, a natureza do Brasil seria conhecida na comunidade científica pelos trabalhos de George Marcgrav e Willem Piso. Na década de 1630, esses naturalistas visitaram o nordeste, descreveram e desenharam centenas de espécies.
Em 1743, Charles La Condamine partiu do Peru e percorreu o rio Amazonas. Descobriu novas espécies, como o golfinho de água-doce e o curare, veneno mortal empregado pelos índios, além de outros produtos extraídos de plantas e animais que servem de inseticida e medicamento. Suas observações foram fundamentais para as análises realizadas pelo grande naturalista francês Buffon. A Viagem Filosófica do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira percorreu as capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato-Grosso e Cuiabá, entre 1783 e 1792 e inventariou a natureza, as comunidades indígenas e seus costumes, avaliou as potencialidades e o desempenho econômico dos núcleos populacionais desse território.
Ronald Raminelli é professor de História da UFF
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