História do Brasil e do Mundo
João Goulart - A cultura engajada
A radicalização política que tomou conta do país nos primeiros anos da década de 1960 propiciou um aprofundamento crescente do processo de politização da cultura iniciado nos anos 1950. A efervescência político-cultural se nutria sem dúvida da proximidade da esquerda com o poder, no interior de um projeto nacional-popular que se afirmava com a presença de João Goulart na presidência da República.
Esse movimento de contestação podia ser percebido, na verdade, em todo o mundo. De meados da década de 1950 até o final dos anos 1960, a efervescência cultural em diferentes países foi bastante intensa, e as manifestações estéticas se associavam a uma consciência política que tinha como pressuposto um desejo de transformação e de crítica à ordem estabelecida. O binômio arte e política, com intensidade variada segundo cada país e segundo as diferentes manifestações estéticas, predominou mundialmente no campo da reflexão e no da produção cultural. O teatro, a música e o cinema tornaram-se artes nas quais residia preferencialmente o debate cultural de esquerda.
No Brasil, a radicalização se alternava entre propostas de conscientização popular e de renovação da linguagem estética. Na linha do compromisso com o engajamento da arte, foi criado em 1962 no Rio de Janeiro o Centro Popular de Cultura (CPC), por inspiração de um grupo de intelectuais de esquerda em associação com a União Nacional dos Estudantes (UNE). O movimento estudantil, em fase de expansão, se unia assim a jovens teatrólogos, cineastas e compositores que já vinham desenvolvendo seus trabalhos, e que num futuro próximo viriam a se tornar expoentes da cultura brasileira nas suas mais variadas vertentes.
A bossa nova deixava de ser apenas a música moderna nascida na Zona Sul do Rio de Janeiro. Passava a ter uma ligação com o "samba do morro". A ampla receptividade do movimento pode ser comprovada pelos espetáculos que se realizaram em 1962 para platéias absolutamente distintas: de um lado, o concerto no Carnegie Hall, em Nova Iorque, realizado a convite de uma gravadora norte-americana, que contou com a presença não só de João Gilberto, mas também de Sérgio Ricardo, compositor identificado com o espírito nacionalista que interpretava Zelão, cuja letra evoca as dificuldades da vida no morro; de outro, o espetáculo "Noite da Música Popular Brasileira", no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, identificado com as diretrizes do CPC, no qual bossa nova e samba se integravam.
Fora do CPC, outras vertentes, tanto no cinema quanto no teatro, se afirmavam na busca de uma nova estética. No teatro, o Arena se renovava, tendo à frente Augusto Boal, e o Oficina encenava clássicos da dramaturgia mundial voltados sobretudo para uma problemática existencial. No cinema, ampliavam-se os caminhos do cinema moderno brasileiro aberto por Nelson Pereira dos Santos, da mesma forma que se aprofundava o diálogo com várias tendências renovadoras do cinema mundial, à parte do neo-realismo, que influenciara fortemente o diretor em experiências na década anterior.
Tinha início o Cinema Novo, preocupado em trazer à tona as questões sociais de um país até então pouco revelado em sua diversidade. Em 1962 Glauber Rocha lançava Barravento, que expressa a tensão social numa aldeia de pescadores, enquanto Nelson Pereira dos Santos - em seguida à experiência de Mandacaru Vermelho, voltada para o mundo rural - levava à tela Boca de Ouro, peça de Nelson Rodrigues escrita em 1958, sobre a vida de um conhecido bicheiro do subúrbio carioca. Uma afirmação de Glauber Rocha expressou de forma enfática em 1961 o caráter de construção da nacionalidade contido na proposta estética do cinema feito naquele momento: "Nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e nossa luz é nova e por isso nossos filmes já nascem diferentes dos cinemas da Europa." Os filmes mais representativos desse primeiro momento do Cinema Novo foram realizados entre os anos de 1963 e 1964 e eram ambientados no sertão nordestino: Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, e Os Fuzis, de Ruy Guerra.
As mudanças ocorridas no país a partir do golpe militar de 1964 e que colocam um ponto final no projeto nacionalista imprimem novos rumos e trazem novas questões para o debate cultural, que persiste com intensidade até o final da década, sobrevivendo mesmo à decretação do AI-5, em dezembro de 1968. Os sindicatos e o movimento estudantil foram duramente atingidos pelo golpe, mas a repressão que se segue não atingiu imediatamente o movimento cultural. Se, por um lado, houve então um redirecionamento do público, a partir da ruptura da ligação pretendida entre o movimento cultural e o povo, por outro lado, a hegemonia cultural da esquerda, mobilizada enquanto resistência ao novo estado de coisas permaneceu inconteste.
FGV-CPDOC
Mônica Almeida Kornis
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