História do Brasil e do Mundo
Terra da vergonha
Legalmente, a escravidão não existe. Mas milhares de trabalhadores sabem que a realidade é bem próxima do cativeiro
Vivi Fernandes de LimaAntônio morava no Maranhão e precisava de trabalho. Até que ficou sabendo que uma propriedade estava recrutando peões. Ele se interessou e foi com mais 41 trabalhadores para o local do serviço. Chegando lá, foi vendido por R$ 80,00 ao fazendeiro Miguel de Souza Rezende. Ele passou a trabalhar na derrubada da mata e na limpeza do pasto. Dormindo em barraco, passando fome, sem dinheiro para enviar à família e ainda devendo ao armazém da fazenda, decidiu fugir. Mas o cantineiro avisou: ?Não faça isso, que eles te matam?, referindo-se aos muitos jagunços armados que rondavam a fazenda. Um colega de Antônio fugiu e o grupo chegou a ouvir tiros à noite.
As condições a que Antônio e seus companheiros foram submetidos ? pressão física ou psicológica, sob pretexto de dívida, comprometendo a liberdade de ir e vir ? é o que defensores dos direitos humanos, sindicalistas, funcionários do Estado e pesquisadores chamam de trabalho escravo. Quanto ao uso do termo, o sociólogo e coordenador do Grupo de Pesquisa de Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC), da UFRJ, Ricardo Rezende, esclarece: ?A categoria trabalho escravo por dívida, como não é exatamente a mesma escravidão que havia na antiguidade romana e grega, ou a da África e das Américas até o século XIX, suscita dúvidas para alguns pesquisadores; por isso, a categoria vem acrescida, algumas vezes, de complementação (semi, branca, contemporânea, por dívida ou análoga)?.
O trabalho forçado mais comum no Ocidente é o que está associado à dívida. Os explorados são obrigados a cumprir o compromisso de trabalho porque, segundo os fazendeiros, eles devem hospedagem, alimentação e remédios, que são comprados no armazém das fazendas. ?Normalmente, o valor de pagamento combinado não é honrado. Quando chegam ao local de trabalho, esse mesmo valor já está 50% menor porque os exploradores cobram até o transporte que os levou para lá?, diz a professora Adonia Antunes Prado, também do GPTEC.
Exploradores como Miguel Rezende ? mais de uma vez flagrado pelos grupos de fiscalização do governo federal utilizando mão de obra escrava ? devem ser julgados pela Justiça do Trabalho e podem ser punidos criminalmente, ficando de dois a oito anos na cadeia. Mas, até hoje, somente um fazendeiro foi preso por esse crime. A sociedade civil criou um meio de ajudar a punir economicamente esses exploradores. Trata-se do Pacto Nacional, coordenado pela OIT, pelo Instituto Ethos, pelo Instituto Observatório Social e pela ONG Repórter Brasil. Por meio deste instrumento, empresas se comprometem a não negociar com propriedades que estejam na Lista Suja de Trabalho Escravo. Mais de 200 empresas já aderiram ao Pacto. Entre elas estão Vale, Petrobras, Pão de Açúcar e Shell.
Enquanto isso, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel percorre o país para repreender casos de trabalho forçado. Auditores do Ministério do Trabalho, acompanhados pela Polícia Federal, vão aonde há denúncias, normalmente registradas pela Comissão Pastoral da Terra. De acordo com pesquisa da ONG Repórter Brasil, 25 mil pessoas foram escravizadas por ano no país desde 2001. O número de libertos ainda está longe de zerar essa estatística: desde 1995, quando o governo federal reconheceu a existência de trabalho escravo, 36 mil pessoas foram libertadas.
O uso desse tipo de mão de obra não é exclusividade do Brasil. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, há 200 milhões de pessoas escravizadas no mundo. A revista Time publicou recentemente um artigo sobre esse tipo de exploração na África do Sul e destacou que nunca houve tantos escravos no mundo como há hoje. Para o coordenador da Repórter Brasil, Leonardo Sakamoto, as principais causas dessa exploração no país são a impunidade, a ganância e a pobreza. ?Manter um trabalhador como um ?cativo? hoje é muito mais barato do que antes de Lei Áurea?.
As diferenças entre o trabalho forçado de hoje e a escravidão são basicamente a ilegalidade, o baixo custo dos explorados e a curta duração do ?contrato?. Atualmente, há mais denúncias desse tipo de crime nas regiões Norte e Centro-oeste. Mas isso não quer dizer que as outras regiões tenham menos ocorrências. ?Em 2009, o Rio de Janeiro inaugurou sua presença na lista dos ?campeões? em trabalho escravo. Em apenas cinco operações de fiscalização, o Rio teve 521 trabalhadores libertados ? o maior número para o Brasil no ano ?, enquanto o Pará, tradicional palco deste tipo de infração, em 64 operações teve pouco mais de 300 libertações?, diz Adonia, referindo-se às libertações feitas em Campos dos Goytacazes, onde prevalecem as plantações de soja.
A atividade agropecuária é campeã nos registros de trabalho forçado. A fazenda que abriga a destilaria Pagrisa, no Pará, foi uma das repreendidas pela fiscalização. O número de libertações em suas terras assusta: 1.064. ?Trata-se de um processo de exploração em massa?, diz Caio Magri, coordenador do Instituto Ethos. Para os fazendeiros manterem mais de mil trabalhadores ilegais e coagidos, é necessária uma forte estrutura de vigilância, ou seja, muitos seguranças particulares armados. ?Por isso, é importante a presença dos policias federais junto com os auditores. Trata-se de um trabalho muito perigoso, basta lembrar a Chacina de Unaí?, diz Magri, referindo-se ao assassinato de fiscais do trabalho na cidade goiana em 2004.
O assunto é duro, difícil de ser medido, por ser ilegal, e de ser descrito, por ser tão desumano. Os pesquisadores, quando acompanham a fiscalização móvel, surpreendem-se com os maus-tratos sofridos pelos trabalhadores ao ouvirem relatos sobre torturas, chicotadas e até assassinatos. Adonia já acompanhou uma dessas incursões e não esquece: ?É muito bom ver a transformação nos rostos dos trabalhadores na hora em que eles vão voltar pra casa. Eles ficam mais bonitos?. Revista de História da Biblioteca Nacional
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