No quadro acima, aparece a tradicional visão da maçã como símbolo do pecado original. Lucas Cranach, o Velho (1472-1553) nascido em Kronach, sul da Alemanha, adotou a mesma profissão do pai e foi um dos expoentes do renascimento alemão. Pintor da corte da Saxônia até 1550 e prefeito de Wittenberg em 1537, fez várias pinturas de Adão e Eva no Éden, da criação de Eva à Queda e expulsão.
Nesta imagem, também pintada por Lucas Cranach, Cristo menino segura em suas mãos pão e maçã. A maçã simboliza o pecado original, já o pão (corpo de Cristo), a redenção. A Virgem é considerada a segunda Eva, redimindo o pecado da primeira. É possível ver nas duas pinturas, portanto, primeiro um sentido negativo da maçã, o do pecado, e em seguida um sentido positivo, o da salvação. Meu objetivo neste artigo é justamente mostrar o significado múltiplo desta fruta durante a Idade Média.
É importante ressaltar que a maçã é proveniente de uma árvore, elemento simbólico em várias culturas. Devido ao fato de suas raízes mergulharem no solo e seus galhos voltaram-se ao céu, é considerada como representante das relações entre a terra (o microcosmo) e o céu (macrocosmo). Tem o sentido de centro, e sua forma vertical faz a árvore do mundo ter sinônimo de Eixo do Mundo (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1995: 84), e está também relacionada à cruz da redenção, que na iconografia cristã é representada como a árvore da vida (CIRLOT, 1984: 99).
Sua verticalidade também liga-se à idéia de escada ou montanha. Vários deuses da mitologia grega são associados a árvores: Júpiter (azinheira), Baco (videira), Apolo (louro). No Apocalipse, a árvore da vida frutifica doze vezes, dando um fruto a cada mês (A Bíblia de Jerusalém, 1995, Ap 22,2: 2328), um símbolo de renovação cíclica.
Outro significado para o vegetal era a arbor inversa (árvore inversa) cujas raízes estavam no céu e os ramos na terra, simbolizando a fé e o conhecimento, e representando Cristo (GUREVITCH, 1990: 79). Como pensava-se que a vida era extraída do alto e depois penetrava na terra, Cristo era tido como o mais belo fruto feito pelo céu (Deus) na terra (Maria) (LURKER, 1997: 282). Na Bíblia existe menção a duas árvores, a árvore da vida, que confere a imortalidade e a árvore do conhecimento ou do bem ou do mal.
Para os germanos, a árvore da vida era o freixo Yggdrasil, com três raízes: no Asgard, viviam os deuses, em Jotunheim, os gigantes e em Nifheim, os mortos. Neste último local um monstro se abastecia dos cadáveres e mordia a própria Yggdrasil. As raízes do Asgard eram regadas pelas Norns, deusas do destino. Os primeiros humanos, Ask e Embla, também eram originários de uma árvore (o freixo) segundo a mitologia germânica, tendo recebido a vida através dos deuses.
A sabedoria representada pela árvore também provém do sofrimento. Deus disse a Adão que se comesse da árvore do conhecimento iria morrer (Gn 2, 16-17), o que significava que ao adquirirem a capacidade de discernimento, os humanos passariam a ter uma vida de atribulações. Assim, Adão e Eva comeram do fruto proibido e adquiriram o livre-arbítrio por seus atos, mas perderam a imortalidade e foram expulsos do Éden, passando a enfrentar vários tormentos, como a necessidade do trabalho para a obtenção do seu sustento ?com o suor do rosto? e as dores enfrentadas pela mulher no parto (Gn 3, 16-19).
Na mitologia germânica, Wotan (ou Odin, deus dos mortos, da guerra, da magia rúnica e da poesia) pagou com um dos seus olhos para beber a poção do conhecimento da fonte de Yggdrasil (LURKER, 1993: 154). Também ficou nove dias pendurado na árvore da vida sem comer ou beber para obter conhecimento e ao sair de lá era capaz de curar os doentes, cegar a espada dos inimigos e pegar um flecha em pleno vôo.
Outro símbolo associado à árvore e também à maçã é o coração, órgão central do corpo humano e simbolicamente centro do homem e do mundo (LURKER, 1997: 152). Para Santo Agostinho o coração é o recipiente do amor divino e os homens devem procurar o conhecimento através do amor. O coração é o rei do corpo, pois sem ele não há vida. Pode-se por isso fazer uma analogia entre o coração e o monarca, considerado na Idade Média essencial para o bom funcionamento da sociedade. Daí o dito: ?o rei morreu, viva o rei?. A monarquia era considerada neste período como forma ideal de governo (LE GOFF, 1999: 356-359) e havia várias teorias afirmando que os súditos deveriam obedecer ao soberano, mesmo se ele não fosse bom. São Tomás de Aquino, por exemplo, em Sobre o Governo dos Príncipes, afirmava que mesmo se o rei fosse um tirano, a população deveria rezar para que ele se tornasse bom: ?em seu poder [de Deus] está converter à mansidão o coração cruel do tirano? (COSTA, 2000: 115).
Na mitologia grega, a maçã ocupa um papel importante. Pode ser um elemento desagregador, como o pomo da discórdia atirado pela deusa Éris, com a inscrição ?à mais bela?, que levou à disputa entre as deusas e conseqüentemente à Guerra de Tróia. Afrodite prometeu a Páris dar-lhe o amor da mais bela mortal se ele entregasse a esta deusa o pomo. Como cumprimento da promessa da deusa, Helena, casada com o troiano Menelau foi raptada por Páris, dando início ao conflito entre gregos e troianos que durou dez anos (GRIMAL, 2000: 355-356; COTTERELL, 1997: 68-69).
O pomo também pode significar um atributo dos deuses como as maçãs de ouro do Jardim das Hésperides, originalmente um reino do Além (LURKER, 1997: 15) guardado por um dragão. As maçãs simbolizam a imortalidade e tinham sido presentes de casamento recebidos por Zeus e Hera. Mesmo quando Hércules conseguiu pegar alguns pomos como parte de seus Doze Trabalhos, estes foram devolvidos ao jardim dos deuses por representarem um atributo deles.
A maçã de ouro também foi um elemento positivo para garantir a união entre Hipômenes e Atalanta. O jovem jogou três frutos durante uma disputa com Atalanta; se vencesse a corrida casaria-se com ela, se perdesse, seria morto. Graças aos pomos dourados, que distraíram a atenção da moça, o jovem venceu a donzela e as bodas se realizaram.
Para os povos germânicos, a maçã também significa a imortalidade, representada pela deusa Idun (a rejuvenescedora). Ela guardava uma maçã numa taça e quando os deuses ficavam velhos mordiam a maçã e encontravam a juventude (GUREVITCH, 1990: 119). Numa ocasião, porém, a deusa e seus pomos de ouro foram raptados por um gigante, o que deu início ao envelhecimento dos deuses do Asgard. Com o resgate de Idun pelo deus Loki, todos readquiriram a juventude (LURKER, 1993: 97).
Durante o período medieval, outras frutas também foram associadas ao pecado original, como a uva e o figo. A figueira na Grécia era consagrada à Atena e seus frutos sagrados não podiam ser exportados. Em Roma possuía um sentido erótico e era associada a Príapo. Na Bíblia, após comerem o fruto proibido, Adão e Eva descobriram que estavam nus e cobriram-se com folhas de figueira (Gn 3,7).
O figo está relacionado ao fígado, principal órgão dos sentidos para os gregos, sendo a figueira usualmente considerada local de contemplação. Por isso, ao transgredir o decreto dos deuses e fornecer o fogo aos homens, Prometeu foi condenado a ter seu fígado eternamente comido pela águia (animal ligado aos deuses), podendo-se estabelecer um paralelo entre a transgressão de Adão na cultura judaico-cristã e a de Prometeu na greco-romana, pois ambos teriam simbolicamente roubado a sabedoria do mundo divino (FRANCO JR., 1996: 57). O figo também aparecia em representações de bacanais, e o seu interior assemelha-se ao órgão sexual feminino.
A uva era outra fruta associada à transgressão de Adão e Eva, relacionando-se à fertilidade e ao sacrifício (CIRLOT, 1984: 590). Seu significado está ligado ao sangue e, por isso, à Paixão de Cristo. Para os medievais, a ato de comer era sagrado e indiretamente ao beber o vinho e comer a hóstia comiam Deus, morto para redimi-los do pecado.
A partir do século XIII, a maçã passou a ocupar o principal lugar como fruto proibido. A uva era uma fruta em grande abundância em várias regiões européias e daí a substituição pela maçã por motivos econômicos. Um exemplo da relevância da vinha é sua constante representação nos calendários, associada às atividades agrícolas, estampada nos meses de abril (poda da vinha), setembro (colheita) e outubro (preparação do vinho).
Entre as populações de origem céltica, a maçã representa o conhecimento, a revelação e a magia. Existem vários relatos referentes às viagens célticas ao Além, os imrama, nos quais um herói é atraído por uma fada, que lhe entrega um ramo de maçã e o convida para ir para o Outro Mundo, como em A Viagem de Bran, Filho de Febal. Num outro imrama, A Viagem de Maelduin, que trata da busca do herói pelos assassinos de seu pai, ele passa por uma ilha onde encontra uma macieira e dela corta um ramo com três maçãs. Estes frutos são capazes de saciar a sua fome e a de seus companheiros por quarenta dias sem ingestão de qualquer outro alimento (MARKALE, 1979: 246).
Numa outra narrativa céltica, Condle, filho de Conn, herói das cem batalhas também é alimentado por maçãs que nunca diminuem sua quantidade (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1995: 573). Na mitologia desses povos, a maçã está ligada a um espaço específico: a Ilha dos Bem-Aventurados, local de abundância e imortalidade. Os gregos já imaginavam essas ilhas com um clima ameno e aprazível, cercadas por árvores frutíferas e fontes para onde os heróis eleitos se dirigiam sem sofrer a morte (LURKER, 1997: 337).
Mais tarde, Isidoro de Sevilha deu maiores descrições destas regiões, ressalvando, no entanto, que não correspondiam ao paraíso terrestre, o qual, de acordo com a concepção cristã, localizava-se em algum lugar da terra no Oriente, sendo inacessível aos humanos. Na Baixa Idade Média, o conceito de Ilha Afortunada de Isidoro fundiu-se com a noção da Ilha Céltica de Avalon (DELUMEAU, 1994: 123).
Tal como a árvore, a ilha tem o significado de centro e sua forma circular representa a perfeição. Sua localização isolada e de difícil acesso garante que só os escolhidos podem alcançá-la após uma viagem iniciática, na qual passam por outras ilhas e enfrentam perigos até chegar ao seu destino. Existe uma analogia entre a Terra das Fadas, os reinos utópicos, como o País da Cocanha e o Éden bíblico. Todos estes locais são caracterizados pela abundância, fertilidade e inexistência do trabalho humano. Veremos mais tarde algumas diferenças na passagem dos eleitos por estes locais. Avalon, a Ilha das Maçãs (Insula Pomorum) era, de acordo com as descrições da Vita Merlini de Geoffroy de Monmouth (século XII) uma ilha tão abundante que ao invés de grama o chão era coberto por frutos:
La isla de los Frutos, que llaman Afortunada, bien puesto tiene el nombre, que de todo produce por sí sola. Pues no ha menester esta isla de labriegos que aren sus campos: no hay allí ningún cultivo, todo lo da espontáneamente la naturaleza. (...) De todo da su suelo en extrema abundancia, frutos en lugar de grama. (GEOFFREY DE MONMOUTH, 1994: 32)
A primeira menção latina a esta ilha paradisíaca ocorre em outra obra de Geoffrey, a Historia Regum Britanniae, na qual é nomeada como lugar onde fora forjada a espada Caliburn do rei Artur (GEOFFROY DE MONMOUTH, 1993: 208). Também é o local para onde o monarca é levado após a Batalha de Camlan contra Mordred, para curar seus ferimentos, sem que a obra cite se Artur retornará ou não (GEOFFROY DE MONMOUTH, 1993: 258). Em outros relatos ficamos sabendo que lá ele será curado ou ficará em sono profundo até poder retornar um dia.
Avalon era governada por Morgana e suas nove irmãs, que também possuíam o dom da imortalidade. Por isso, Avalon está associada a Caer Siddi (Outro Mundo) ou Annwn, a Terra dos Mortos e da Eterna Juventude. Existia em Caer Siddi uma fonte onde jorrava vinho doce e onde envelhecimento e doença eram desconhecidos (ELLIS, 1992: 25). Entre os seus tesouros havia um caldeirão mágico, tema diretamente ligado à abundância existente na Ilha das Maçãs.
Na mitologia céltica existem dois tipos de caldeirão: o caldeirão do renascimento e o caldeirão da abundância. Dagda, pai de todos os deuses, possuía um caldeirão proveniente da cidade de Múrias. Ao provar dele ninguém passava fome (ELLIS, 1992: 77). Já Matholwch recebera o caldeirão do renascimento do deus Bran e com ele era possível ressuscitar um morto, que no entanto, perdia a capacidade de falar (Mabinogion, 1988: 31).
No poema galês Preiddeu Annwn (Os Despojos do Outro Mundo), composto entre os séculos VIII e IX, o rei Artur e seus companheiros tentam inutilmente buscar numa expedição o caldeirão da abundância, representante da realeza e autoridade (ELLIS, 1992: 26). Segundo o poema contido no Livro de Taliesin: ?e quando fomos com Artur (...) exceto sete, ninguém voltou da Fortaleza da Intoxicação (....)? (KOCH, 1995: 290). O Outro Mundo á assim chamado no relato porque lá o vinho com fagulhas era bebida corrente (ELLIS, 1992: 25), o que podia estar ligado à intoxicação. Outros adjetivos usados em relação ao Além Céltico na mesma obra são: Fortaleza do Temor, Fortaleza Oculta e Fortaleza do Divino Lugar. (KOCH, 1995: p. 291).
Havia ainda um terceiro caldeirão entre os celtas, o caldeirão do sacrifício, no qual os maus monarcas eram jogados. É possível observar aqui um sentido totalmente diferente dado à figura régia, que tem principalmente a tarefa de estabilizar a sociedade e que é descartada quando não cumpre bem suas funções. O monarca é mais um ?moderador ou distribuidor de riquezas que um detentor de poderes civis e militares?. Representa um garantidor da abundância, sendo o rei que sobrecarrega os súditos de impostos sacrificado, afogado numa tina de cerveja ou hidromel (LE ROUX e GUYONVARC?H, 1993: 63).
O tema do caldeirão mais tarde, deu origem ao mito do Graal, inicialmente nas obras de Chrétien de Troyes. Com a sua cristianização em fins do século XII, o conteúdo do cálice passou a ser o sangue de Cristo na cruz. Sangue, conhecimento, alimento.
Em A Demanda do Santo Graal quem provasse do Santo Vaso obtinha satisfação material e espiritual. A revelação, isto é, conhecimento, obtido por Galaaz através do graal deu lugar a tal iluminação que ele ascendeu aos céus junto com os anjos (ZIERER, 1999: 124-125).
É importante ressaltar os desdobramentos da maçã como representante da Ilha Paradisíaca e o destino dos heróis ao empreenderem uma viagem iniciática ao Outro Mundo. No relato céltico A Viagem de Bran, o herói é atraído por uma fada que canta e lhe joga um ramo de maçã. Ele e seus companheiros a seguem, atingindo a Ilha da Mulheres (Tír na mBan). Num período que parece ser de pouco mais de um ano, um dos seus companheiros sente saudades da Irlanda e Bran decide voltar apesar de ser advertido de que muito tempo se passara. Com efeito, ao chegarem à terra natal, um deles se torna pó ao pisar no solo.
Com relação à passagem dos eleitos pelo local paradisíaco, no caso de Bran o herói fica preso. Assim como encontra um espaço de prazeres, imortalidade e abundância, ele também não tem como sair de lá. Com a sua fuga, não consegue retornar nem ao antigo lar, devido ao processo de envelhecimento, nem à Tír na mBan porque acaba por perder-se no meio do mar, vagando no oceano sem reencontrar o País das Fadas.
Num outro relato sobre uma viagem ao Outro Mundo, ainda que não diretamente relacionado à maçã, mas à abundância existente na Ilha das Mulheres, o fabliaux O País da Cocanha, o poeta se lamenta por não conseguir voltar ao lugar utópico após ter saído dali para buscar um amigo (FRANCO JR., 1998: 33-35). Neste caso, o protagonista após a sua aventura, ficou preso no mundo terrestre. Ele consegue retornar ao mundo terreno porque a garantia da eterna juventude na Cocanha era uma fonte ao passo que no País das Fadas, a simples permanência naquele local garantia a juventude, mas sua saída de lá resultava também num envelhecimento imediato de centenas de anos.
Numa terceira narrativa sobre uma viagem ao Além, o Laís de Guingamor, o herói é mais afortunado: consegue retornar ao local paradisíaco. Influenciado pela temática céltica, a aventura principia-se num ambiente cortês, mas leva o cavaleiro a um espaço desconhecido quando ele tenta matar um javali branco. De repente, ao atravessar um rio, ele chega ao Outro Mundo. Passado um tempo de prazeres, resolve voltar para cumprir sua missão como nobre e entregar o animal caçado apesar de as fadas lhe avisarem que no mundo terreno já havia transcorrido trezentos anos (FRANCO JR., 1996: 126-127).
Guingamor retorna ao seu mundo, depois de ser advertido que nada poderia comer ali, fato que ele esquece e acaba por ingerir três maçãs. Em seguida sente-se muito enfraquecido e quase morre, sendo resgatado pelos seres do Outro Mundo que o levam de volta. Mais uma vez aparece numa narrativa o teor da maçã como fruto do conhecimento, ao comê-la o corpo do cavaleiro toma ciência do prolongado período que havia se passado. Da mesma forma que o ocorrido com Adão e Eva, ao comer o fruto proibido o herói perdera a imortalidade.
Guingamor apesar de ter comido três maçãs e quase morrer, tem um destino feliz, as fadas voltam para buscá-lo talvez porque o alimento por ele ingerido na terra dos mortais fossem maçãs, fruto diretamente associado ao Outro Mundo. Já o poeta da Cocanha ficou preso no espaço terrestre e Bran perdido no mar, sem conseguir retornar nem ao mundo terreno nem ao Além.
O tema da ilha paradisíaca foi depois cristianizado. O eleito, agora um monge, consegue cumprir a sua missão e retornar ao mundo dos humanos, para logo depois morrer e atingir o paraíso (ZIERER, 2001: 41-51). Em lugar da Ilha dos Bem-Aventurados, desenvolve-se a trama do monge que atinge o paraíso terreal com o auxílio de uma mulher, como, por exemplo, Santo Amaro, numa versão portuguesa quatrocentista de A Viagem de São Brandão. Após uma viagem de sete anos e de vagar por diversas ilhas, o santo consegue chegar a uma ilha de onde recebe de uma religiosa, Valides, a indicação para atingir o paraíso terreal. Aqui é possível ver uma conotação positiva da figura feminina, associada à Virgem Maria. Em várias outras representações, porém, a mulher era associada à Eva, considerada a causadora da expulsão do Éden, e relacionada ao fruto proibido e à serpente, conforme mostrei na pintura de Adão e Eva de Lucas Cranach.
O santo não consegue penetrar no paraíso terrestre, mas visualiza o seu interior, tendo a possibilidade de trazer um pouco da terra deste local, com a qual funda uma nova e próspera cidade. Santo Amaro volta ao mundo humano, mas unicamente com a função de contar as maravilhas do que presenciara e logo depois morrer para retornar ao paraíso. Dentre as descrições do paraíso terreal ele vê uma macieira (A Vida de Sancto Amaro, 1901: 517).
Destaca-se também o fato de durante todo o período da viagem os alimentos que Santo Amaro recebe são enviados do céu por Deus, podendo-se fazer uma relação entre a maçã céltica que saciava e nunca se esgotava e os alimentos provenientes do Criador que alimentaram Amaro e seus companheiros por sete anos.
A propósito da temporalidade do Outro Mundo representada pela Insula Pomorum, é interessante observar que a passagem do tempo não é percebida pelos humanos que para lá vão, como pode ser visto nos relatos sobre Bran, Guingamor e Santo Amaro. Ao passo que na concepção cristã, o tempo dos castigos, passado no purgatório ou no inferno, é o triplo do tempo terrestre (LE GOFF, 1993). Por isso, ressalto que mesmo para os medievais (e para nós também) o tempo dos prazeres é fugaz e o dos tormentos muito longo.
Conclusão
Como demonstrei, no período medieval a maçã possui um sentido multifacetado. Fruto proibido, levou os homens ao sofrimento e ao conhecimento, que segundo Santo Agostinho, deveria ser obtido através do amor. Para os homens da Igreja, a sapientia era uma prerrogativa deles, na medida em que, por estarem afastados do ato sexual, eram mais puros e totalmente voltados a Deus. Vistos como os intérpretes da palavra sagrada e da verdade, os oratores consideravam que sua proximidade com o mundo divino os autorizava a controlar o resto da sociedade, procurando assim estabelecer normas que garantissem aos vivos a futura entrada no paraíso. Porém, os relatos medievais apresentavam outros tipos de paraíso e outras vias, como as seguidas por Bran, Guingamor ou pelo poeta da Cocanha.
A maçã também possui um significado curioso com relação à figura feminina. De um lado representa o mal e o pecado, através da ingestão do fruto proibido por Eva, que levou os medievos ao desprezo e à desconfiança com relação aos seres deste sexo. As mulheres eram usualmente vistas como mentirosas, tentadas ao adultério e inclinadas à luxúria e ao demônio. A salvadora dessas mulheres seria Maria, a virgem escolhida pelo Criador para gerar um homem perfeito, Jesus, o filho de Deus, que sacrificou-se para redimir os pecados da humanidade. Próxima ao modelo de Maria estava Valides, capaz de, através de sua pureza, indicar a um eleito de Deus, Santo Amaro, o caminho do paraíso terreal.
Uma outra imagem feminina era a das fadas, mulheres que habitavam a Insula Pomorum, e que competiam no plano simbólico com a Igreja com relação ao domínio do sagrado, pois, segundo as narrativas, possuíam a sabedoria, o dom da cura e da imortalidade.
O sentido da maçã como representante da Ilha Paradisíaca levou muitos a sonharem com a terra da abundância, da imortalidade e felicidade, que poderia ser encontrada num mundo paralelo em algum lugar misterioso: uma ilha no meio do oceano, um lugar na floresta. Para o clero, no entanto, só depois da morte e da passagem pelo purgatório, os indivíduos purificados poderiam aspirar à felicidade eterna.
A idéia de escrever este artigo foi inspirada pela conferência do medievalista Hilário Franco Jr. realizada em 1999 no III EIEM (Encontro Internacional de Estudos Medievais), intitulada Entre o figo e a maçã: hesitações medievais quanto à concepção do fruto proibido e devido à recorrência da maçã nas fontes que pesquiso atualmente. Esta fruta também evoca o simbolismo da árvore, fundamental para as culturas céltica e germânica, as quais venho pesquisando atualmente através do BRATHAIR - Grupo de Estudos Celtas e Germânicos, cuja formação iniciou-se durante o III EIEM (evento organizado pela ABREM - Associação Brasileira de Estudos Medievais).
Fontes
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