Contrastes e ambivalências
das cidades modernas
e a consolidação do
pensamento burguês liberal
Nas décadas finais do século 19, o mundo ocidental passaria por uma grande transformação. Sua conturbada primeira metade ? que assistiu às guerras napoleônicas, à criação da Santa Aliança e à emergência de forças liberais cada vez mais ativas em diversos países ?, cedia espaço aos animados anos de progresso e modernidade anunciados pelo desenvolvimento do capitalismo expansionista e pelas novas conquistas da ciência moderna, especialmente a partir dos anos 1870.
As grandes cidades, centros financeiros e administrativos dos impérios, figurariam como palco do maior espetáculo de contrários que aquele mundo de pompa e poder geraria. As máquinas, que nunca puderam dispensar a energia humana para funcionar, atraíam grandes contingentes de trabalhadores vindos de toda parte, transformando as cidades em verdadeiros ?formigueiros? de pessoas. Apenas para ter uma idéia, Londres, em 1851, tinha 2,5 milhões de habitantes, passando a 3,9 milhões em 1881. Paris, nesse mesmo intervalo, quase duplicou sua população, aumentando de 1 milhão para 1,9 milhão de habitantes. Era o advento das metrópoles modernas.
As pessoas que chegavam iam se amontoando como podiam em conglomerados habitacionais fétidos, privados quase que absolutamente da penetração da luz solar, em ruas e vielas imundas, sem esgoto nem calçamento. Essa situação impunha medidas drásticas ao poder público municipal. Era necessário um planejamento urbano regular que evitasse a superlotação de pessoas e a proliferação de doenças ? o terror das epidemias já tirava o sono das nobres famílias. É nesse contexto que se aprimoram os conhecimentos de engenharia, arquitetura e medicina sanitária. Das sedes administrativas de importantes capitais como Viena, Paris, Londres e Berlim começam a sair complicados projetos de limpeza e melhoramento do espaço urbano.
Aos médicos sanitaristas caberia vacinar a população e esterilizar ambientes públicos e privados, como ruas, praças, fábricas, lojas e residências. Aos engenheiros e arquitetos estaria reservada a importante tarefa de promover as reformas urbanísticas e de infra-estrutura.
A lógica central dessas reformas era a seguinte: abrir ruas largas para melhor circulação de pessoas e mercadorias, eliminando becos e ruelas onde poderiam se formar barricadas revolucionárias ? daí o surgimento dos bulevares ?; manter a higienização dos espaços públicos e privados; e, por fim, promover o embelezamento das cidades.
A população pobre, em vez de receber saneamento básico e outras benesses, foi expulsa das áreas centrais das cidades e confinada nos subúrbios, onde dividiu espaço com os odores da química industrial pesada e a fumaça sufocante das chaminés. Nos bairros centrais, ricos, as reformas estavam em franca expansão. E não era apenas para abertura de avenidas e a construção de praças e ruas arborizadas. Havia um sonho por detrás dos projetos de reforma, o ideal da belle époque.
Na mente dos engenheiros e arquitetos, bem como no pensamento das elites proprietárias, os bairros centrais da metrópole tinham também de se transformar em verdadeiros espetáculos arquitetônicos, dádivas da razão politécnica da época.
As elites urbanas almejavam que suas cidades fossem vitrines para o mundo, de modo que suas práticas, seus costumes e seus monumentos fossem venerados e copiados pelo sonho alheio. Tratava-se de difundir para o mundo a cultura burguesa. Paris encarnou como nenhuma outra o ideal de ?cidade dos sonhos?, servindo de inspiração para engenheiros alhures.
As reformas eram baseadas em um projeto claro: a constituição de um espaço urbano que se pautasse na preservação da propriedade privada, e que fosse condizente com o estabelecimento de uma nova ordem burguesa de relação entre trabalho e capital; um lugar onde o indivíduo pusesse em prática o seu ?nobre? estatuto de cidadão, conhecendo os limites de um quadro no qual a segregação e a exclusão conviviam com discursos de felicidade, evolução, abundância e prosperidade.
Assim, à sombra dos gestos chiques e da conduta esnobe de homens e mulheres de posses, que freqüentavam os sobranceiros cafés de Viena e Paris, ficava oculto um mundo de dor, perseguição e sofrimento. As milhares de pessoas que habitavam os cortiços e casebres simples dos bairros pobres de Londres, Bruxelas, Berlim, Viena, Roma e Paris, além de não gozar das benesses de infra-estrutura do urbanismo moderno, tornaram-se alvo predileto das campanhas sanitárias e da perseguição policial. De repente, o sonho de alguns se transformou no pesadelo de outros.
Os prédios ricos e arejados, as ruas largas e confortáveis, as galerias reluzentes de mercadorias caras e encantadoras, a moda ? que misturava a casimira inglesa com os fios nobres da Fenícia e outras indumentárias orientais ? inspiravam a ?civilização? e descreviam balizas claras entre esse mundo de riquezas e o mundo ?bárbaro?, de doenças e penúria dos bairros pobres, de habitações amontoadas e ruas disformes.
BELLE ÉPOQUE
O termo refere-se mais ou menos ao período que vai de 1870 a 1914. A belle époque corresponderia no campo da arte ao advento do impressionismo e da art nouveau ? estética de design; na arquitetura caracteriza-se pelo uso de vidro e ferro, elementos ligados à Segunda Revolução Industrial, ou Revolução Científico-Tecnológica das décadas de 1870-1880. Mas a belle époque também se diz de hábitos e costumes citadinos, como o footing (passeio) em praças, galerias e nos bulevares e cafés parisienses.
Barrados nos bulevares
As posturas municipais, conjunto de leis e decretos que regulavam a vida urbana dessas cidades-metrópoles, proibiam o trânsito de descalços e descamisados pelas ruas, a circulação de animais, a vadiagem, a mendicância, os jogos de azar e a prostituição. A cidade estava vigiada, impedindo que o trabalhador comum transitasse pelas ruas do centro. A vida esmerada e supostamente feliz dos núcleos comerciais e financeiros ? a leveza do footing nos bulevares, o chope ou o chá
nos cafés e confeitarias do centro ? não podia ser aproveitada pelo trabalhador suburbano, força que realmente sustentava toda essa grandeza.
A coerção policial, não por acaso, recaía sobre esses homens e essas mulheres pobres, que, em busca de melhores condições de vida, deixavam o campo para amargar dias e noites de infortúnio nas grandes cidades. Um desempregado poderia muito bem ser abordado pela polícia e preso como vadio, considerado ?inimigo do trabalho? e, portanto, indivíduo de índole suspeita, possível criminoso, verdadeiro perigo para a sociedade. Mulheres, com poucas opções de trabalho, também poderiam ser enquadradas como vadias e julgadas por crime contra a ordem pública e afronta à moral das nobres famílias. Amigos reunidos em bares suburbanos poderiam ser enquadrados como ociosos, e praticantes do jogo de azar, o que acarretaria em punição deliberada.
O mundo do trabalho e do lazer cujo cenário era a ala pobre da cidade estava, portanto, muito bem vigiado; e o centro das grandes cidades, lócus do exercício de uma cidadania burguesa excludente e segregacionista, ocultava suas mazelas, deixando as trancafiadas nos bairros dos subúrbios. Julgava-se ?protegido? por fortes muros ideológicos, amparados pela lei e pela opinião pública, que pretendiam isolar aqueles homens e aquelas mulheres pobres, considerados por critérios de posse e aparência social os desclassificados do progresso e da modernidade.?
RUMO À GLOBALIZAÇÃO
Depois da Grande Depressão de 1873, uma crise fundamentalmente causada pela superprodução, os negociantes europeus passaram a organizar suas atividades em uma nova perspectiva. Se antes os mercados não ultrapassavam, senão timidamente, as fronteiras nacionais, agora a ordem era a expansão a todos os cantos do globo. A China e a Índia, por exemplo, com seus 700 milhões de consumidores em potencial, transformaram-se em locais cogitados por empresas inglesas, francesas e alemãs. Eram os tempos do capitalismo financeiro e monopolista; os tempos do neocolonialismo, quando os grandes impérios estenderiam seus domínios formidavelmente, a ponto de um dentre eles, o britânico, ser lembrado como ?império onde o sol nunca se põe?, por abarcar territórios em ambos os hemisférios do globo e por toda a extensão dos meridianos.
A grande riqueza gerada pelas conquistas fez com que as potências européias vivessem dias de glória animados pela febre nacionalista e pelo frenesi da produção em larga escala. Consolidava-se nesse período uma nova ordem calcada na acumulação econômica desmedida, na lógica pecuniária da riqueza e da ostentação, na vida urbana e nos novos paradigmas políticos e sociais ligados ao pensamento burguês liberal.
Revista Desvendando a História
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