O simpático escritor Millôr Fernandes um dia definiu o tempo como uma das pouquíssimas coisas que todos (os seres vivos?) dividem por igual. Achei uma demonstração muito feliz de como classificá-lo. Mas independentemente da dificuldade em teorizálo, há ainda a questão de que a cada época o tentamos compreendê-lo de forma diferente. Percebemos nossa vida sob as coordenadas do tempo. Não seria exagero afirmar que todo produto da raça humana e - por que não? - de toda natureza nada mais é do que uma colagem de instantes por cima de instantes, sem necessariamente que se acumule nada, o que deixa o perfil da existência das coisas sempre com uma boa dose de incerteza.
NOS NOSSOS TEMPOS
Certa vez, o centenário antropólogo Claude Lévi-Strauss pôs em xeque a questão da relação tempo/evolução e, por tabela, a noção ocidental de progresso. Realmente, nossas experiências acumuladas parecem se organizar de forma horizontal, se é que se organizam. De qualquer forma, nós, ocidentais, descrevemos a existência como parte de uma fração etária relacionada sempre a uma época e a uma cultura. "No meu tempo..." é a expressão prefixa de frase mais comum que ouvimos quando as pessoas falam de seu próprio passado. E é tão comum o passado das pessoas ser propositadamente mitificado. Ele é visto, frequentemente, como um momento de superação ou como o refúgio de uma felicidade efêmera. O futuro parece que deixou de ser o lugar natural onde habitam os sonhos.
Tamanha ilusão temos sobre nossa relação pessoal com o tempo e a perspectiva da felicidade que buscamos, atualmente, tentar (somente tentar) adiar de qualquer forma o futuro. Não seria pelos mistérios que o cercam e, sim, pelas certezas que ele agrega: a velhice, a morte dos entes queridos e a gradativa perda da capacidade de adaptação a um mundo que insiste em mudar.
Atualmente, parece que não estamos totalmente em paz com o "nosso" tempo. Mas será que sempre foi assim?
HISTÓRIA VIVA
O tempo, até a consagração do capitalismo no século XIX, era geminado às divindades. Essa relação entre as eras e os deuses, embora carnal, jamais significou um entendimento comum entre o tempo e a história. Os gregos antigos, tão generosos nas concepções divinas, sempre expuseram a configuração de deuses diferentes para cada assunto: Cronos e Clio que, cá entre nós, até formariam um belo casal, estariam fadados a um conturbado divórcio titânico. Enquanto Cronos era frio, metódico e implacavelmente cruel, Clio era doce, caprichosa e imprevisível. Ah! Que bela metáfora!
Nas sociedades ditas primitivas, mais comumente ligadas à pré-história, o tempo não correspondia a essa relação de instantes sobrepostos, de começo, meio e fim. A visão que aqueles homens tinham de sua existência estava ligada a ciclos naturais e, portanto, a vida não era linear. Calendários - ainda não existentes - eram perfeitamente substituídos pela interação dos homens com as estações do ano e estas, nas culturas ágrafas, não possuíam uma relação de nascer e morrer e, sim, de revezamento. Portanto, o tempo era circular e imutavelmente congelado. Interessante deveria ser reviver a perspectiva de se relacionar com um tempo que não passa e, sim, assiste a tudo passar por ele.
O TEMPO ESCATOLÓGICO
Além das cidades, da escrita e do Estado, certamente outro marco fundador do advento da civilização seria a noção de um tempo linear, embora bastante diferente do nosso.
O tempo escatológico. Em evidente coerência com sistemas teocráticos, o tempo, desde as primeiras civilizações da história até o período medieval, era o habitat natural dos deuses. Afinal de contas, a única coisa que os cristãos fizeram, com rara eficiência similar na história, foi subtrair todas as divindades ocidentais para que se estabelecesse apenas uma: a Santíssima Trindade. A partir da grande crise do século III do Império Romano, o tempo dos Homens passou a ser entendido do Gênesis ao Apocalipse. Não é à toa que o calendário medieval era todo dividido em dias santos e, vez ou outra, surgia um monge que atestava determinar qual seria realmente o sinal do Juízo Final. Assim, o Final dos Tempos fora declarado em eventos pontuais desde então: as invasões bárbaras, o Ano Mil, as Cruzadas e a Peste Negra.
Hereges, muçulmanos e judeus, ou seja, subversivos da religião dominante, são os verdadeiros mártires do calendário ocidental, organizado definitivamente pelo Papa Gregório XIII, no último quartel do século XVI, e adotado pela maioria das nações atualmente.
Não foi por acaso que nosso atual calendário foi formatado sob as luzes do Renascimento Cultural. Não foi o primeiro, mas certamente foi o mais reluzente sinal de racionalidade de uma era que durou mil anos e foi caracterizada pelo poder umbilicado entre uma nobreza guerreira e uma nobreza religiosa fundamentalista. A afirmação do calendário gregoriano nada mais foi do que o resultado direto, surgido de um fenômeno anterior e profundamente interessante em virtude de seu potencial revolucionário na área cultural: a adoção do relógio mecânico nas cidades medievais, fato ocorrido a partir do século XIII.
TEMPO E PRODUÇÃO
A revitalização do comércio e das manufaturas urbanas no início da Baixa Idade Média fez brotar uma nova sociedade no caule das raízes estamentais do período. Desse processo, visto com cautela pela Igreja, nascem os sinais que promovem as primeiras relações de tempo/produção, embora substancialmente limitadas pelo perfil corporativo dos produtores e pelos valores coletivistas da época. Ainda assim, uma irresistível tendência.
Durante o Racionalismo do século XVII, o Criador começa a ser separado dos fenômenos naturais. Newton e Descartes são os arquétipos dessa nova concepção. A física, por meio dos alicerces da matemática, fundamenta os fenômenos naturais de forma mecânica, precisa e se configura nos argumentos de uma divindade engenheira. Dessa forma, o tempo começou a se livrar dos grilhões de um ente superior, mas ainda assim não deixou de ser escatológico, pois o próprio Newton previu o fim do mundo.
Foi somente no século XVIII, durante o Iluminismo, que a ideia do Apocalipse pareceu dar seus primeiros sinais de erosão. Primeiro o tempo e agora, também, a história passaram a ser usurpados pelo Homem. Nobres e clérigos perderam, literalmente, a cabeça. Não é à toa que o calendário da Primeira República Francesa, surgida dentro de uma atmosfera revolucionária, laicizou profundamente o tempo.
A primeira Revolução Industrial, ocorrida no último quartel também do século XVIII, determinou a moderna relação do famoso "time is money!". O tempo agora passou a ser entendido pelo coeficiente de produção industrial. A vida das pessoas, principalmente a dos operários, passou a se organizar com a finalidade de atender às necessidades fabris. A infância, ou melhor dizendo à época, somente a primeira infância é vista como preparação, aprendizagem. A adolescência, ainda não reconhecida pelos conceitos do período, ou comumente antes mesmo disso, a época de um trabalho que somente findará no instante em que a decadência física humana determinará o colapso produtivo. O ócio, componente preponderante para que se estabeleça uma relação de deleite com o tempo, é profundamente condenado. Finalmente, o tempo, que antes desse fenômeno econômico-social era contado em estações, eras ou no máximo anos, passa a ser entendido em horas, determinadas pela barulhenta velocidade das engrenagens.
TEMPO DO PROGRESSO
O tempo escatológico se laiciza no curso do século XIX. Marx simultaneamente solapa, com seu materialismo histórico, o tempo bíblico (moribundo desde a teoria darwinista) como também o recém-criado tempo hegeliano. Os messias de suas noções de salvação seriam agora caracterizados por bandeiras vermelhas e discursos revolucionários e o seu paraíso seria entendido por meio de um coletivismo econômico. O Éden era o comunismo e nele a história findaria sua longa marcha. Vale lembrar que sua tese de "mais-valia" explora, acima de tudo, as relações do tempo.
O século XIX termina com a clássica frase de Nietzsche conclamando a morte de Deus. O Homem, por si só, não precisaria mais daquilo que não seria explicável pelo prisma da racionalidade. Finalmente, ele tornara-se auto-suficiente. Em tudo. E o tempo agora era o tempo do progresso.
O século XX, não importando em qual sistema produtivo qualquer sociedade estivesse inserida, assistiu a um profundo fracionamento do tempo em uma louca corrida pela produção de bens e de metas. Desde a Revolução Tecnológica da Segunda Revolução Industrial, tudo passara a se tornar mais rápido, mais curto e menor. Os relógios são miniaturizados, popularizados e se tornam uma coleira onipresente no pulso das pessoas, surgindo, assim, novas formas de percebermos o tempo ao redor de nós mesmos: momentos, instantes, segundos.
Paradoxalmente, enquanto as noções de tempo são fragmentadas, a expectativa da vida se multiplica. Será que começamos a viver mais somente para produzirmos e consumirmos mais coisas ao longo de nossa existência?
Os manuais de administração contemporânea falam insistentemente em "otimização". As propagandas, em "forever young". As linhas de montagem, em centésimos de segundo. Os restaurantes, em comida rápida. Vivemos em uma overdose intensa de números digitais relacionáveis a objetos que, definitivamente, desaprendemos a necessidade da paciência. A espera nos agride. Brilhantemente, o filósofo Mário Sergio Cortella chamou-me a atenção quando analisou que a nossa atual relação com o tempo é regressivo, afinal, para nós, sempre falta tantos minutos para alguma coisa. E estamos sempre correndo, atrasados e neuróticos.
Ao considerarmos deselegante questionarmos alguém sobre sua idade, teríamos hoje uma relação conflitante com o tempo? Não há dúvidas que o tentamos repeli-lo, principalmente no desenrolar da vida adulta, por meio de academias, maquiagens, arsenais sintéticos e intervenções cirúrgicas. Tornamos nossas crianças miniadultos precoces por meio de agendas massacrantes e erotizações doentias e nossos adultos travestidos, ridiculamente, de adolescentes mimados e narcisistas. Tentamos, em vão, pela via estética, usurparmos o tempo do tempo.
Que tal, por alguns dias (só dá pra ser nas férias), de preferência longe de algum grande centro urbano, guardarmos os relógios nas gavetas e novamente revivermos a perspectiva de deixarmos o ciclo da vida ditar nosso ritmo? A fome ditar nosso apetite? O sono ditar nossa noite? A libido ditar o contato do amor? Pois é, talvez sermos atemporais seja a melhor forma de curtirmos o tempo e, como nossos antepassados faziam há séculos e séculos, vivermos em paz com ele.
"mais-valia"
Marx chamou de maisvalia a diferença entre o valor adicionado pelos trabalhadores (incorporado às mercadorias produzidas) e o salário que recebem. A mais-valia definida desta maneira é em tudo semelhante ao trabalho gratuito que escravos ou servos entregavam a seus senhores. É uma forma disfarçada de transferência de um excedente para a classe dominante. A mais-valia é a base para os lucros, os juros das aplicações financeiras e para todas as formas de rendimentos vinculados à propriedade. A apropriação da mais-valia é o fundamento da divisão das classes sociais no capitalismo. Fonte: João Machado - Economista, professor da PUC/RJ membro da Direção Nacional do PSOL.
Renascimento Cultural
Período entre os séculos XV e XVI em que a produção artística e científica na Europa estava em efervescência. A valorização da cultura greco-romana, a qualificação da inteligência, conhecimento e dom artístico do ser humano, além do homem ser colocado com centro dos interesses (antropocentrismo), em detrimento ao teocentrismo da Idade Média, são marcos do Renascimento.
Iluminismo
Assista ao filme Danton - o processo da revolução (1982). Nessa obra clássica sobre a revolução francesa, você acompanhará o período do "terror", quando a radicalização revolucionária dos jacobinos encabeçada por Robespierre inicia um violento processo político com expurgos, manipulação de julgamentos e uma rotina de execuções pela guilhotina. Danton, líder revolucionário, critica os rumos do movimento, tornando-se mais uma vítima do terror instalado por Robespierre.
Revista Filosofia