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Arábia Saudita estará finalmente se interessando por seu próprio legado?
JASON BURKE
A Arábia Saudita vem há anos obliterando qualquer evidência de seu passado de politeístas moradores no deserto. Agora, porém, essa maré pode estar começando a mudar, aos poucos.
Diga a pessoas em Riad, a capital saudita, que você está partindo para a província de al-Qassem, e elas reagirão com expressões de espanto. Al-Qassem é um lugar profundamente conservador, mesmo pelos padrões deste país profundamente conservador. Fica a duas ou três horas de distância de Riad pela rodovia principal em direção oeste, bem no meio do interior árido. Nas últimas décadas, várias cidades de al-Qassem foram palco de revoltas contra a autoridade da família real saudita, lideradas por clérigos que denunciaram os líderes sauditas como reformadores e moderados perigosos. Há poucos turistas na Arábia Saudita e menos ainda em al-Qassem.
Ibrahim Darwish, estudioso religioso e sociólogo que comanda um instituto de estudos em Rass, a terceira maior cidade da província, descreve uma sociedade "fechada e sólida" que é "tradicional, hospitaleira, generosa e de fala direta, sem rodeios".
É também uma sociedade que vem mudando muito rapidamente --mesmo em uma região em que é comum falar sobre a rapidez das transformações. Na Arábia Saudita, onde uma população desértica sem o legado cultural de outros Estados da região, como o Egito, Irã ou Turquia, foi beneficiada por riqueza excepcional, a vida de seus pais é irreconhecível para os jovens --o que dirá as de seus avós ou bisavós.
Assim, em Rass, as autoridades locais ergueram um museu dedicado ao passado. Ele ocupa a esquina de um dos shopping centers modernos que, ao lado das mesquitas, concentram a maior parte da vida pública na Arábia Saudita. O museu não é muito grande. Uma sala é ocupada por uma reconstrução de uma moradia rural, completa com poço e tubulação engenhosa de barro que permitia aos agricultores se banharem. Outra é repleta de fuzis e espadas. Uma terceira sala é ocupada por teares e têxteis.
O maior espaço é uma reprodução de um café, com tapetes no chão e persianas pintadas. É o lugar onde Suleiman Mohammed al'Dubayan, 56 anos, geralmente pode ser encontrado. Soldado aposentado, ele é empregado pela prefeitura local para vestir roupas tradicionais e fazer café para os visitantes, da maneira tradicional.
Al'Dubayan conta que vê até cem pessoas por dia, em sua maioria "rapazes que vêm para cá em busca de algo. Eles querem saber como eram as coisas no passado. Me perguntam sobre como se fazia o café, sobre os velhos tempos. Então conto a eles."
O museu em Rass faz parte de um fenômeno mais amplo na Arábia Saudita: a redescoberta do passado do reino. Ninguém prestou muita atenção à preservação durante as primeiras décadas da consolidação do país, que tem 79 anos de idade, ou durante a corrida instigante do desenvolvimento e enriquecimento estupendo vivida desde o início da década de 1970. Há muito poucas construções que tenham mais de 30 ou 40 anos.
Em Riad, há o "masmak" --o forte antigo que foi usado pelos governantes da cidade no século 19, perto do quartel-general da polícia religiosa_ e há um labirinto de casas velhas de adobe no centro da cidade, onde trabalhadores migrantes da Índia e do Oriente Médio vivem no meio da sujeira. E há o palácio restaurado do século 19, a pouca distância de carro da cidade, onde você pode ver bengaleses mal-pagos, com vistos de trabalho temporários, representando o papel de moradores de vilarejos sauditas "dos velhos tempos". Mas quase todo o resto é sistematicamente demolido para dar lugar ao mais recente arranha-céus ou prédio de apartamentos.
O museu em Rass é um dos muitos sinais de que isto está mudando. Hoje existem no país dois sítios tombados pelo Unesco --as ruínas da cidade de Ad-Dir'iyah e os resquícios antigos do oásis Al-Hijr, no noroeste, e espera-se que a cidade velha de Jedá, porto no mar Vermelho, se junte a eles em breve.
Há mais em jogo, contudo, que um novo interesse pelo passado ou um desejo de atrair turistas, como parte dos esforços do reino para diversificar sua economia, predominantemente dependente do petróleo. Como é o caso em outros lugares, controlar a história é a chave do poder. A Casa de Al'Saud só vem podendo governar seu reino com a colaboração e o apoio do clérigo, em grande medida ultraconservador. É possível promulgar reformas --como a introdução do ensino para as mulheres, que na década de 1960 provocou tumultos em al-Qassem, mas apenas com o consentimento da maioria dos clérigos.
Para os conservadores religiosos no reino, qualquer resquício físico da história, até mesmo da história dos primeiros muçulmanos, desvia a atenção de Deus e levanta o espectro do politeísmo. Assim, há anos vêm sendo destruídos todos os traços de religiosidade passada no reino, o que dirá qualquer coisa que possa ser considerada anti-islâmica. Dezenas de santuários, cemitérios e sítios históricos foram demolidos, danificados, ou construiu-se em cima deles. Isso aconteça até mesmo nas cidades sagradas de Meca e Medina --na realidade, talvez aconteça especialmente lá.
Logo, preservar qualquer coisa que restou do passado constitui resistência religiosa --e, portanto, política.
Não apenas Deus, mas também o dinheiro exerce um papel na nova disputa pela história do país. Mais recentemente surgiu uma disputa entre construtoras que querem erguer apartamentos com vista da grande mesquita de Meca --imóveis que renderiam valores astronômicos-- e, por outro lado, conservacionistas locais. Como o conflito mais amplo em torno do "legado", essa discussão não será resolvida em pouco tempo.
Seu resultado --ou, melhor, sua evolução-- será uma janela fascinante para ter uma visão de uma sociedade extremamente conservadora que, por uma série de razões, ainda está engajada em obliterar todos os traços de um passado mais pobre.
"Eu não gostaria de viver no Ocidente", me diz um burocrata enquanto dirigimos pela rodovia de seis pistas que faz as vezes de rua central de Riad, passando por enormes arranha-céus novos, shopping centers em sequência e quilômetro após quilômetro de apartamentos com fachada de concreto. "Nunca estive lá, mas olho para a vida no Reino Unido, França ou América e acho que o problema é que vocês perderam todas suas tradições."
Tradução de Clara Allain
http://www1.folha.uol.com.br
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