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Diários da UcrâniaJOHN THORNHILL
DO "FINANCIAL TIMES"Quando qualquer país se torna manchete e é convulsionado por distúrbios históricos, é difícil imaginar que a vida cotidiana continue mais ou menos como no passado. Mas mesmo em tempos de guerra, bebês nascem e os velhos morrem (de causas naturais), enquanto as pessoas com idades entre esses dois extremos se apaixonam e desapaixonam, e registram sucessos e fracassos profissionais.
O poder de "Ukraine Diaries" (Diários da Ucrânia), de Andrey Kurkov, que cobre o período entre novembro do ano passado e abril deste ano, está em entrelaçar o extraordinário e o corriqueiro. Em suas anotações diárias, o escritor fala de sua visão sobre alguns dos mais momentosos acontecimentos na história recente de seu país, mas também relata sua vida cotidiana. Como leitores, vivemos a revolução Maidan, a derrubada do presidente Viktor Yanukovych e a anexação da Crimeia pela Rússia. Mas também somos informados sobre a festa de paintball organizada por Kurkov para celebrar o 11º aniversário de seu filho, o progresso da safra de batatas em sua dacha [casa de campo], e sua visita ao hospital com a mãe, que foi passar por um eletrocardiograma. Dessa maneira, a história recente da Ucrânia se torna mais humana e real.
Como um dos mais famosos escritores ucranianos, Kurkov conquistou apreciação generalizada no Ocidente por meio de seus romances do absurdo, tais como "Death and the Penguin" (1996) e "The President's Last Love" (2007). Ele explica no prefácio que mantém um diário pessoal há mais de 30 anos e que jamais havia se sentido tentado a publicar quaisquer porções de suas anotações. Mas como homem que vive com a mulher e os três filhos em um apartamento localizado a apenas alguns quarteirões da Praça da Independência, em Kiev, ele se tornou vítima do "redemoinho da História". "De nossa sacada vimos a fumaça subindo das barricadas em chamas, ouvimos as explosões das granadas e os tiros", ele explica. "Registrei essa vida quase todos os dias, de modo que agora posso tentar relatá-la a vocês em detalhes".
Um dos temas mais notáveis do diário é a dificuldade que ele sente em compreender o que está acontecendo no país. Cabe a jornalistas e historiadores construir narrativas interpretativas. Mas os diários de Kurkov destacam o quanto é difícil interpretar a importância de eventos enquanto eles ainda estão em curso. Como homem de letras, Kurkov se sente incomodado por sua incapacidade de se expressar com clareza. Ocasionalmente, ele admite, quase lhe faltam palavras. E o tumulto político tem um custo pessoal: em dado momento, Kurkov escreve sobre ter se sentido envelhecer cinco anos em três meses.
Parte do problema é que rumores e desinformação deliberada influenciam demais a nossa compreensão. O movimento Escolha Ucraniana, que rejeita a aproximação com a Europa, conseguiu convencer muita gente de que a conversão universal à homossexualidade era condição para a assinatura do acordo de associação com a União Europeia. Em fevereiro, um dos assessores do Partido das Regiões, de Yanukovych, causou comoção ao alegar que paraquedistas norte-americanos estavam operando no oeste da Ucrânia e exigir que tanques russos fossem enviados para combatê-los. "Já posso vê-los cruzando todo o país, até a fronteira oeste, procurando soldados norte-americanos, e depois voltando para casa e pedindo desculpas pelo incômodo!", escreve Kurkov.
Revoluções podem parecer empreitadas românticas, mas, como Kurkov deixa claro, elas muitas vezes são sangrentas e confusas, e só radicalizam as pessoas, tornando mais difícil uma solução de compromisso. Sobre aquela que está vivendo, ele ouve alguém dizer que só as floriculturas e os fabricantes de velas foram beneficiados. As ruas estão enfeitadas de coroas de flores celebrando as vítimas da revolução, e o número de velas queimando nas igrejas é 100 vezes maior que o normal, ele alega. "É para que Deus possa ver com clareza o que está acontecendo na Ucrânia".
Outro tema do livro é o lamento de Kurkov pela deterioração no relacionamento entre os povos ucraniano e russo. De acordo com diferentes estimativas, há entre oito milhões e 14 milhões de pessoas de etnia russa vivendo na Ucrânia. O escritor mesmo é russo, nascido em 1961 em Leningrado mas morador de Kiev desde a infância, e claramente sente de maneira aguda esse crescente antagonismo. Ele recorda que o primeiro membro de sua família a pisar o solo da Ucrânia foi seu avô, que chegou em 1943 com o exército soviético e foi morto na batalha pela libertação de Kharkiv. "Ele morreu combatendo os fascistas, e agora ouço a palavra 'fascista' dirigida a mim porque me pronunciei, e continuo a me pronunciar, contra a corrupção generalizada organizada pelo presidente Yanukovych, de seus esconderijos".
Ao longo do diário, Kurkov expressa sua crescente indignação diante do que está acontecendo na Rússia. É quase como se um amigo que alguém conhece bem estivesse perdendo o juízo. Putin surge como um vilão de bastidores, conspirando pela "restauração da legitimidade histórica", compreendida aqui como a reconstrução da União Soviética. "Acredito que um plano como esse existisse, e que ainda exista", ele escreve. Para Putin, a Crimeia é como um diamante roubado; ele só pode se vangloriar sobre ela na escuridão, em lugar de apresentar o caso abertamente como triunfo. Mas a Crimeia claramente aparece nas reportagens meteorológicas da TV russa, em companhia do Donetsk e de Kharkiv, e sua flora e fauna estão incluídas nas classificações russas.
A ira mal contida de Kurkov se concentra naqueles que distorcem o que está acontecendo na Ucrânia. Ele escreve uma carta ao escritor russo Sergei Lukyanenko, que proibiu a publicação de traduções de seus livros em ucraniano em protesto contra o fascismo, dizendo que "fui informado de que você escreve trabalhos de fantasia. É estranho que sua imaginação não tenha poder suficiente para que você compreenda que o povo ucraniano não deseja mais viver sob um sistema de total corrupção, sob um governo analfabeto que só deixa para trás um país pilhado e falido".
Em um posfácio ao diário, escrito em junho, Kurkov sugere que a Ucrânia ?como os médicos costumam dizer? está em situação estável mas crítica. Ninguém pode prever o futuro do país, ele prossegue, citando um provérbio ucraniano: "Se você quer que Deus ria, conte-lhe seus planos". Mas ele expressa amargura quanto à União Europeia, inicialmente vociferante em seu apoio aos protestos do Maidan, que mais tarde caiu no silêncio e se afastou da Ucrânia, preferindo lucrar no comércio com a Rússia. Kurkov pode ter revisto suas opiniões diante das sanções internacionais contra a Rússia anunciadas esta semana; no livro, porém, ele chega a uma conclusão sombria: "O dinheiro importa mais que a democracia", ele escreve. "Essa cínica lição ensinada pela Europa à Ucrânia inevitavelmente influenciará o futuro de meu país".
"Ukraine Diaries: Dispatches from Kiev", de Andrey Kurkov (Vintage Digital, US$ 9,99, na Amazon, e-book).
John Thornhill é editor assistente do "Financial Times" e foi chefe da sucursal do jornal em Moscou.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
FOLHA DE S.PAULO
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