O Andersen da América Latina
CECÍLIA PRADA
No momento em que, em 1943, soube do editor que as tiragens de seus livros infantis haviam ultrapassado a casa do milhão de exemplares, Monteiro Lobato escreveu ao amigo Godofredo Rangel: "O meu caminho é esse - e é o caminho da salvação. Estou condenado a ser o Andersen desta terra - talvez da América Latina... E isso não deixa de me assustar".
Assombro e perplexidade deviam ser realmente os sentimentos dominantes naquele homem de 61 anos - que morreria cinco anos mais tarde -, ao lançar um olhar retrospectivo sobre a sua longa trajetória de escritor, jornalista, empresário, homem de ação cívica e política. Sentimentos polarizados de amargura e de triunfo, eivados do enorme descontentamento existencial que o caracterizou sempre - exigência demasiada, em relação a si próprio, em relação aos outros, o característico mau humor, o ânimo agressivo e atrabiliário, expresso sem pejo nos grandes debates jornalísticos sobre as mais diversas questões, do ataque aos gramáticos à defesa dos interesses nacionais. E a par disso tudo, uma enorme bondade, uma imensa pureza de coração, uma honestidade, um idealismo a toda prova - raiando as bordas do patético.
Elementos que fazem dele, até hoje, uma das figuras mais controvertidas e paradoxais da primeira metade do século, no Brasil. Com Euclides da Cunha e Lima Barreto, é considerado um dos precursores do pensamento modernista, pioneiro no levantamento das questões sociais, sensor da estagnação cultural que definiria, com sua linguagem original: "Lentamente cai a tapera nas almas e nas coisas..."
Esteticamente, porém, assumiria posição extremamente conservadora e preconceituosa, rompendo com a geração que fez a Semana de 22. Passaria mesmo à história como o infeliz demolidor da arte - que classificava como "degenerada, teratológica e mistificadora" - da jovem pintora Anita Malfatti - cuja exposição de 1917 se tornaria o estopim do modernismo brasileiro. No campo da literatura adulta, seu estilo de cunho classicista, influenciado pelo autor português Camilo Castelo Branco, desencontrou-se da forte temática colhida no meio rural brasileiro. Embora Lobato tenha atingido na época sucesso extraordinário de vendagem, na opinião quase unânime dos críticos seus contos só conseguem hoje ser lidos por curiosidade ou estudo. Dele diz Alfredo Bosi, que se "desviava continuamente da interioridade" e "descansava na superfície dos seres e das coisas".
Erro fundamental, entretanto, parece estar sendo cometido pelos principais historiadores da literatura brasileira - inclusive o próprio Bosi - ao separarem a literatura em dois campos, para adultos e infantil/juvenil, desconsiderando na historiografia literária geral os autores voltados para esta última. Ou eliminando completamente, como no caso de Lobato, o seu campo principal de atuação.
Uma visão limitada, preconceituosa, bem século 19, que definia a criança apenas como a miniatura, desvalorizada, do homem. E o escritor dedicado ao gênero, como um subliterato. O grande boom do gênero entre nós - que curiosamente faz do Brasil de hoje um país onde as crianças estão lendo mais do que os adultos - está a pedir uma revisão urgente de conceitos.
O livro onde se mora
Já em 1916 confessava Lobato ao amigo Rangel o desejo de dar início a uma literatura infantil como ainda não fora feita entre nós: "É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a iniciação de meus filhos... Um fabulário nosso, com bichos daqui, se for feito com arte e talento dará coisa preciosa... As fábulas em português que conheço, em geral traduções de La Fontaine, são pequenas moitas de amora do mato - espinhentas e impenetráveis".
Em 1920, já estabelecido como o editor que revolucionaria o mercado do livro no Brasil, Lobato publicaria A menina do narizinho arrebitado, um pequeno volume de 43 páginas, em formato álbum, ilustrado por Voltolino - marco inicial de uma imensa e profunda revolução literária, expressão de uma nova visão da criança, do mundo infanto-juvenil, do relacionamento entre crianças e adultos, e da educação.
No ano seguinte, reformatado e ampliado, Narizinho teria uma edição de 30 mil exemplares e seria adotado como livro de leitura nas escolas primárias do estado de São Paulo. Dessa data até hoje, os personagens únicos do Sítio do Pica-Pau Amarelo - Narizinho, Pedrinho, Dona Benta, Tia Nastácia, a boneca Emília, o Visconde de Sabugosa, o Marquês de Rabicó e tantos outros - multiplicam suas aventuras em 36 livros originais, que por sua vez se perpetuam em reedições constantes, adaptações para teatro e TV, e continuam povoando o imaginário das crianças brasileiras.
Em 1926, em plena efervescência criadora, assumia definitivamente a sua vocação: "De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro de Robinson Crusoé. Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar..." Adotando com humor e irreverência inigualáveis uma linguagem extremamente personalizada, descontraída, baseada no coloquialismo brasileiro, é como se o escritor revestisse uma segunda e mais autêntica personalidade, que faria dele um inovador lingüístico mais "moderno" do que qualquer um dos rebeldes de 22 que tanto atacara. Tematicamente, sua literatura para crianças foi incorporando de maneira original, única no mundo, o maravilhoso e o real, fundindo as tradições do fabulário de outros povos com o nosso folclore.
Ideologia e marretadasVisceralmente avesso a todos os ismos - estéticos ou políticos -, Lobato seria atacado pelas duas facções em luta no cenário nacional, esquerda e direita. Esta, encarnada no moralismo provinciano e no catolicismo reacionário, empenhou-se nas décadas de 40 e 50 em denunciar como "catecismos comunistas" os seus livros infantis, e como corruptora da família, da tradição e dos costumes, a linguagem arrebatada, malcriada, desrespeitosa, dos seus personagens.
Nas décadas seguintes, seria a vez da esquerda de atacá-lo, acusando-o de reacionário, antiquado e racista e tentando, em vão, substituir a vitalidade dos seus livros pelas mumificadas fórmulas de uma literatura ditada pelos moldes do Partido Comunista. Rica em contradições, como foi a sua própria vida, a obra de Lobato continua válida e a exigir hoje - como diz Nelly Novaes Coelho - "uma leitura crítica que lhe estabeleça as verdadeiras dimensões", porque "esse corpo-a-corpo dos novos com o texto lobatiano lhes será extremamente benéfico, como conscientização de realidades essenciais, e como prazer puramente lúdico".
A tese Os filhos de Lobato - O imaginário infantil na ideologia do adulto, defendida no ano passado por José Roberto Whitaker Penteado na UFRJ, mostra como 75% dos adultos brasileiros que têm hoje entre 40 e 60 anos absorveram em Lobato valores como o nacionalismo, o respeito pela individualidade e pela democracia, a conscientização para problemas sociais como o da mulher, e abriram-se para um cabedal de conhecimentos que se estendia da mitologia grega à geografia, à história universal, à ciência e ao folclore nacional.
Desentendido com os homens do seu tempo, o escritor teria - numa feliz imagem da jornalista Roberta Jansen, em artigo para "O Estado de S. Paulo", no ano passado - executado uma "vingança" semelhante à daquele flautista de Hamelin que, ludibriado pelas autoridades de uma cidade, seduz com o som mágico da sua flauta todas as crianças e as leva embora consigo.
Revista Problemas Brasileiros
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