História do Brasil e do Mundo
Mitologias políticas na literatura de cordel
Na consolidação de cada nação está envolvida a construção de seus mitos. Dentre esses, os mitos políticos parecem ter uma função especial. De maneira geral é possível dizer que eles possuem uma função de coesão social e legitimação da ordem vigente. Não restam dúvidas de que os mitos políticos distinguem-se dos demais, mas em busca dessa especificidade que os marca, corre-se o risco de confundi-lo com outros conceitos, tais como o de representação, imaginário político ou ideologia. O primeiro esforço que será feito nesse trabalho será um percurso teórico para definição do conceito de mito político, e sua demarcação frente a outros conceitos importantes no âmbito do político. Todavia o foco principal aqui não é essa definição conceitual, mas sim como aplicar esse conceito a partir da leitura de uma fonte específica que (re)conta a história nacional: a literatura de cordel. Analisando alguns personagens da política e da história do país, poderemos adentrar no universo da cultura popular brasileira e entender como ela elaborou e reelaborou essas figuras, criando e disseminando alguns mitos políticos importantes entre as camadas mais humildes da população brasileira. Pode-se dizer que se hoje a mídia tem um papel fundamental na construção desse ideário mítico, no passado quem atuava nesse sentido era a literatura de cordel.
Mitos políticos: reflexões em torno de um conceito
A palavra mito tornou-se vulgarizada em tempos recentes, o que produz, no mais das vezes, uma desvirtuação de seu conceito. Esvaziada de sua precisão conceitual e teórica, torna-se mais um vocábulo sem sentido preciso, divulgado através dos meios de comunicação. Mas nem por isso deve-se negar a importância fundamental que os mitos têm em todas as sociedades humanas, desde a antiguidade até os tempos modernos. De fato, é a partir da expansão da revolução industrial, da aceleração crescente da vida a partir do século XIX, que os mitos políticos desempenharão um papel crescente. Utopias, sonhos e esperanças, fundidos em sentimentos que vão da nostalgia à projeção do futuro, para configurar alguns dos mitos políticos com maior força de mobilização e coerção.
Buscando definir mais precisamente o vocábulo, vejamos as definições dadas pelos estudiosos. Normalmente o mito é concebido como uma narrativa referente a um passado, ou ainda a tempos imemoriais, mas que mantém uma ligação com o presente, tendo um valor explicativo sobre uma certa realidade. Para Eliade:
“mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’. [...] É sempre, portanto, a narrativa de uma ‘criação’: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente.”
Além disso, essa narrativa pode conter uma justificativa das formas de organização social do presente, ou ainda de um possível futuro a ser alcançado.
Uma outra noção, também associada aos mitos, liga-os a um componente de mistificação. Próxima a essa, encontra-se também aquela que os vincula à fabulação. Questiona-se aqui o componente do realmente, do trecho citado. De certa forma, o que ambas as definições parecem indicar é a relação entre mito e realidade, ou mito e verdade. A idéia é a de que o mito altera os dados da realidade, produzindo uma espécie de falsa visão do mundo. É impossível não deixar de notar, nessa visão, a proximidade com a idéia de ideologia como falseamento da realidade, tão difundida por alguns autores marxistas. O fato é que esse tipo de noção tenta distinguir algo que não pode ser separado ao se tratar dos mitos: a fronteira entre o racional e o imaginário, entre o objetivo e o sonho. É nos meandros dessa complexa teia que o mito político encontra sua força. Força que é ao mesmo tempo explicativa, justificativa e mobilizadora.
Para entender como os mitos políticos cumprem essas funções é preciso se remeter aos momentos históricos de seu surgimento. Essa gênese parece estar ligada a certos hiatos históricos, momentos de crise de valores, e de desestruturação social. Em uma análise que pode pender da sociologia histórica, seguindo Durkheim e os momentos de anomia, à psicologia individual, expressa através da angústia e do sentimento de solidão do homem moderno. Nas palavras de Raoul Girardet:
“Não há nenhum dos sistemas mitológicos que tentamos definir que não se ligue muito diretamente a fenômenos de crise: aceleração brutal do processo de evolução histórica, rupturas repentinas do meio cultural ou social, desagregação dos mecanismos de solidariedade e de complementaridade que ordenam a vida coletiva. Nenhum que não se relacione a situações de vacuidade, de inquietação, de angústia ou contestação. (...) é nos ‘períodos críticos’ que os mitos políticos afirmam-se com mais nitidez, impõem-se com mais intensidade, exercem com mais violência seu poder de atração”.
Um momento histórico que expressa bem essas características é o cenário europeu pós-Primeira Guerra. O horror provocado pela guerra, a destruição causada, possibilitou a emergência de diferentes mitos políticos, talvez tendo a figura do Salvador como seu maior representante. O fato é que é nesses momentos de crise que os mitos surgem, ou reaparecem sendo ressignificados. E ganham a força de darem coesão seja a um grupo, seja a uma sociedade. Reinterpretação do passado, projeção de um futuro melhor, oscilando entre a nostalgia e a profecia o mito político ganha a capacidade de mobilizar os homens.
Nesse ponto, torna-se importante uma reflexão da relação entre o mito político, a política e a história. De um lado o mito não surge do nada, como mera especulação ou fabulação. Pelo contrário, é a partir de certos fatos históricos que ele se alimenta e se formula. De um outro lado, o caráter político do mito, tanto em sua fundação quanto na mobilização dele decorrente não pode ser esquecido. Todavia, por não se tratar de uma narrativa científica ou estritamente objetiva, o mito produz uma espécie de homogeneização do passado e da realidade. Uma espécie de sociedade ideal, com solidariedades e laços afetivos dá lugar às disputas e conflitos políticos existentes. A história escrita sempre através de confrontos e disputas, passa a ser vista em um plano ideal, quase romântico, de permanências e não disparidades. Nesse sentido alguns acusam os mitos de tornarem-se anti-históricos e anti-políticos. Ainda que seja necessária essa ressalva, os mitos políticos encontram seus lugares no imaginário de nossa sociedade, daí a importância de serem analisados historicamente, em seu processo de eclosão, construção, solidificação, e queda.
Outro tema importante a ser tratado é o da alienação. Note-se que não se trata aqui de uma alienação produzida a partir das condições objetivas e materiais de existência, seguindo a trilha de Marx. O plano aqui é o do subjetivo. Isso porque
“a efervescência mítica começa a desenvolver-se a partir do momento em que se opera na consciência coletiva o que se pode considerar como um fenômeno de não identificação. A ordem estabelecida parece subitamente estranha ou hostil. Os modelos propostos de vida comunitária parecem esvaziar-se de toda a sua significação, de toda legitimidade. A rede das solidariedades antigas se desfaz”.
Momento de afirmação de uma nova identidade, esse é também o da suspensão das velhas certezas e verdades. Daí o drama da alienação, do sentir-se deslocado, do sofrimento, da angústia subjetiva expressa enquanto sentimento pessoal e intimamente vivido. Uma incerteza que é ao mesmo tempo geradora e propulsora dos mitos políticos, e que projeto nesses a imagem de uma Salvação ou Idade do Ouro. Esse tema nos leva diretamente a uma das funções do mito político.
Partindo de um certo traumatismo psíquico no momento de sua origem ou afirmação, a primeira das funções do mito político colocada por Raoul Girardet, atua exatamente no sentido de uma reestruturação mental que visa a sanar essas aflições. Ainda que o mito político tenha em sua narrativa uma composição de imagens fragmentárias, essas acabando tendo uma visão mais globalizante ou estruturante da sociedade em seu passado e seu futuro. Recompõem-se, assim, o equilíbrio dos corações, das consciências, rompidos nos momentos de tensão. É com se uma nova inteligibilidade fosse construída, a partir do imaginário mítico, gerando uma realidade em que é possível se reconhecer e ser reconhecido. Isso se dá seja a partir da identificação da figura de um Salvador, um herói mítico, até a identificação de um inimigo comum, presente nos temas do Complô, ou da Conspiração.
Todavia, conforme se afirmou aqui, não é apenas na dimensão individual, psíquica ou subjetiva que atuam os mitos políticos. Aliada à função de reestruturação mental surge outra, fruto da potência mobilizadora, que é aquela da reestruturação social. A partir de um momento de vacuidade social, onde os laços estão frágeis, o mito político apresenta-se com instrumento de reconquista de identidade. Aparece aqui o papel de reconstrução de novas formas de organização comunitária no seio da sociedade global. É na comunidade que se geram os valores e sentimentos que permitem uma coesão maior e um projeto político comum. Interessante notar a relação paradoxal do mito político, analisado do ponto de vista sociológico em que aparece como determinante e determinado: “saído da realidade social, é igualmente criador de realidade social. Surgido ali onde a trama do tecido social se rompe ou desfaz, ele pode ser considerado como um dos elementos mais eficazes de sua reconstituição”.
Reconstituídos os laços que ligam a dimensão individual, psicológica, à coletiva, social, vale lembrar que Girardet distingue quatro grandes temas da mitologia política: a conspiração, o salvador, a idade do ouro e a unidade. Vale lembrar que esses são temas que se aplicam ao objeto de pesquisa do autor. O esforço que se seguirá será de ver até que ponto esses modelos podem ser aplicados ao objeto desse estudo. Que mitologias políticas podem ser encontradas na literatura de cordel brasileira?
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