A figura histórica de Maria, mãe de Jesus, constitui um desafio para o trabalho dos estudiosos da história e da religião, pois, ao mesmo tempo que são poucas as informações a seu respeito, sua importância entre os cristãos se impõe de maneira inegável. Figura marcante para boa parte da humanidade, seu perfil foi construído essencialmente com base em uma documentação de caráter religioso, ela própria não abundante, já que são raras as menções a Maria nos relatos bíblicos. Tal carência de informações impediu o questionamento de determinadas crenças a ela relativas, as quais se mantiveram, talvez por isso mesmo, ao longo de dois milênios.
Maria aparece pela primeira vez nos relatos bíblicos no episódio da anunciação, citado nos evangelhos de Lucas e Mateus, em que o anjo Gabriel lhe revela que ela conceberá e dará à luz o "filho do Altíssimo". A partir de então, seu nome aparece em vários momentos-chave da vida Dele, como a visita a sua prima Isabel, o nascimento, a pregação de Jesus aos doutores do templo - quando ainda criança -, as bodas de Caná, a morte na cruz e a hierofania de Pentecostes.
Ao que tudo indica, Maria desde muito cedo encontrou grande acolhida nas comunidades cristãs e seu culto foi iniciado ainda nos primeiros séculos. A redação e a difusão tardia dos evangelhos, como sugere Ambrógio Domini em sua História do cristianismo: das origens a Justiniano, abriram espaço para que a tradição oral preenchesse certas lacunas sobre Jesus e, conseqüentemente, sobre sua mãe.
É possível que os dados bíblicos tenham sido completados ainda no século II por uma narrativa romanceada, de autor anônimo, cujo título aparece como Natividade de Maria e que foi mais tarde considerada um apócrifo de relativa importância, o Proto-Evangelho de Tiago. Os manuscritos afirmam terem sido Ana e Joaquim, seus pais, que, conscientes da missão que lhe caberia, "devolveram-na ao Senhor, apresentando-a no templo quando ela tinha 3 anos de idade". Ali Maria teria vivido até tomar a José como esposo. Na resposta que dera ao anjo, Maria teria dito, entretanto, "não conhecer varão", ainda que já houvesse sido desposada por José. E esta é apenas a primeira e uma das bases sobre a qual se assenta uma leitura dogmática que se esforçou por construir uma figura, que, sendo mãe e modelo da Igreja, estivesse livre de todo pecado e fraqueza humana.
Já os Concílios de Éfeso (431) e Constantinopla (553) recomendaram a anatemização (excomunhão) dos que não aceitavam ser Maria a mãe de Deus. E um rol enorme de autores cristãos, entre os quais João Crisóstomo, Ambrósio e Agostinho, se esforçaram por identificar em Maria um modelo de perfeita santidade, que culmina em sua assunção aos céus. A Igreja Católica, no entanto, reconheceu como dogma a Imaculada Conceição somente em 1854, no tempo de Pio IX, um papa que, segundo Ambrógio Domini, "se serviu disso como desafio irracional ao liberalismo laico do século XIX". Já a Assunção foi reconhecida como dogma quase um século depois, em 1950, por outro pontífice que, para o mesmo autor, "sabia manobrar a arma do sobrenatural com fins políticos e sociais", Pio XII.
Assim, se por um lado Maria permanece um enigma histórico de difícil compreensão, por outro, aos olhos da fé, transformou-se em arquétipo feminino devotado por multidões e uma das personalidades mais proeminentes do cristianismo. Sua real face, no entanto, ainda é um desafio para historiadores dispostos a desvendar, mais que uma imagem consagrada, a construção de um verdadeiro mito.
Revista História Viva