História do Brasil e do Mundo
Império Romano - O CASAMENTO COMO DEVER A CUMPRIR
O CASAMENTO COMO DEVER A CUMPRIR
Essa nova moral formulava-se assim: "Eis o dever de um homem casado". A formulação da moral cívica, ao contrário, era [pág. 47]
a seguinte: "Casar-se é um dos deveres do cidadão". Resultado: essa maneira de expressar-se incitava os pregadores de ética a recordar a existência de tal dever; por volta do ano 100 antes de nossa era, um censor disse à assembleia de cidadãos: "O casamento é uma fonte de confusão, todos sabemos; mas é necessário se casar por civismo". E cada cidadão era incitado a perguntar-se expressamente se decidiria cumprir esse dever. O casamento não era algo implícito, mas explicitava: o que criou a ilusão de uma crise da nupcialidade, de uma difusão do celibato (sabemos o que são essas obsessões coletivas, que nenhuma prova estatística consegue eliminar); os romanos tiveram tal ilusão antes que seus historiadores também a tivessem, e o imperador Augusto decretará leis especiais para incitar os cidadãos a se casarem.
O casamento, portanto, era tido como um dever entre outros, uma opção. Não é o "fundamento de um lar", o eixo de uma vida, e sim uma das numerosas decisões dinásticas que um senhor deverá tomar: entrar na carreira pública ou permanecer na vida privada a fim de aumentar o patrimônio dinástico, tornar-se militar ou orador etc. A esposa será menos a companheira desse senhor que o objeto de uma de suas opções. Tanto será um objeto que dois senhores poderão repassá-la amigavelmente: Catão da Útica, modelo de todas as virtudes, emprestou a esposa a um amigo e mais tarde casou-se novamente com ela, abiscoitando de passagem uma herança imensa; um certo Nero "prometeu" (era o termo consagrado) sua esposa Lívia ao futuro imperador Augusto.
O casamento é apenas um dos atos da vida, e a esposa não passa de um dos elementos da casa, que compreende igualmente os filhos, os libertos, os clientes e os escravos. "Se teu escravo, teu liberto, tua mulher ou teu cliente ousam replicar, tu te enraiveces", escreve Sêneca. Os senhores, chefes de uma casa, resolvem as coisas entre si, como de poder a poder, e se um deles deve tomar uma grave decisão reúne o "conselho de amigos" em vez de discutir com a mulher.
Senhor e senhora formam um "casal"? O senhor permite [pág. 48]
que os visitantes vejam a senhora, como os ocidentais atuais, ou a senhora se retira rapidamente, como nos países islâmicos? E quando se convidar o senhor para jantar convém convidar também a senhora? As raras indicações dos documentos não me permitiram chegar a uma conclusão clara: a única coisa clara é que a senhora, bem acompanhada, tem o direito de visitar as amigas.
A mulher é uma criança grande da qual se deve cuidar por causa do dote e do nobre pai. Cícero e seus correspondentes comentam os caprichos dessas eternas adolescentes, que aproveitam, por exemplo, a ausência do marido, nomeado governador de uma província distante, para se divorciarem e casar de novo. Tais infantilidades desconcertantes são realidades que acarretam consequências nas relações políticas entre senhores. Não é preciso dizer que essas criaturinhas não colocariam em ridículo seu amo e senhor: o tema molieriano da infidelidade feminina era desconhecido e, se assim não fosse, Catão, César e Pompeu teriam sido cornudos ilustres. Um marido é senhor tanto da esposa como dos filhos e dos domésticos; o fato de sua mulher ser infiel não constitui um ridículo, e sim uma desgraça, nem maior nem menor do que se sua filha engravidasse ou um de seus escravos faltasse ao dever. Se a esposa o engana, criticam-no por falta de vigilância ou de firmeza e por deixar o adultério florescer na cidade. Assim como repreendemos os pais muito fracos e que mimam os filhos, os quais acabarão caindo na delinquência, aumentando a insegurança pública. O único meio de um marido ou um pai prevenir tal dano era ser o primeiro a denunciar publicamente a má conduta dos seus. O imperador Augusto detalhou num edito os amores de sua filha Júlia; Nero fez o mesmo com o adultério de sua esposa, Otávia. A fim de confirmar que não tinham "paciência" ? ou seja, complacência ? com o vício. A opinião pública se perguntava se devia admirar ou censurar o silêncio estoico de outros esposos.
Como os maridos enganados são mais ultrajados que ridículos e as divorciadas levam seu dote consigo, há na classe alta grande frequência de divórcios (César, Cícero, Ovídio, Cláudio [pág. 49]
casaram-se três vezes) e talvez também na plebe citadina. Em Juvenal, vemos uma mulher do povo consultar um adivinho itinerante para saber se deve deixar seu taberneiro para se casar com um comerciante de roupas usadas (profissão próspera nessa época, em que a vestimenta popular era comprada de segunda mão). Nada mais estranho aos romanos que o sentido bíblico da apropriação de uma carne; não os repugnava esposar uma divorciada ou, como o imperador Domiciano, aceitar de volta uma esposa que durante algum tempo havia sido a mulher de outro homem. Constituía um mérito conhecer somente um homem ao longo da vida, mas apenas os cristãos procurarão transformar isso em dever e tentarão impedir que as viúvas se casem novamente.
História da vida privada, 1: do Império Romano ao ano mil / organização Paul Veyne ; tradução Hildegard Feist; consultoria editorial Jonatas Batista Neto. ? São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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