IDADE MÉDIA: FILHA DOS ANTIGOS, BERÇO DA MODERNIDADE
História do Brasil e do Mundo

IDADE MÉDIA: FILHA DOS ANTIGOS, BERÇO DA MODERNIDADE



IDADE MÉDIA: FILHA DOS ANTIGOS, BERÇO DA MODERNIDADE

Fábio Della Paschoa Rodrigues

?Somos anões empoleirados nos ombros de gigantes. Assim, vemos melhor e mais longe do que eles, não porque nossa vista seja mais aguda ou nossa estatura mais alta, mas porque eles nos elevam até o nível de toda a sua gigantesca altura...?

Bernardo de Chartres

O conceito de Idade Média como ?Idade das Trevas?, em oposição ao Renascimento e à Antigüidade, foi forjado sobretudo no século XIX pelos historiadores liberais, segundo o qual a Idade Média teria interrompido o progresso do conhecimento e da cultura do homem, que seriam retomados mais tarde no século XVI.[1] Felizmente, este conceito vem sendo desmistificado por diversos estudiosos. Seguindo a teoria de Toynbee[2], os movimentos culturais podem estar ligados por uma relação de gerações, de tal modo que uma cultura seja filha da outra. Esta é relação existente entre a Antigüidade, a Idade Média e a Cultura Ocidental Moderna. A idéia de Idade Média como uma época que esqueceu os antigos não se fundamenta e, na verdade, temos a Idade Média como filha da Antigüidade e berço do Renascimento e, enfim, do nosso mundo ocidental.

Portanto não é possível estudar a Idade Média se nos limitarmos a (pre)conceitos criados a posteriori, pois nela encontramos elementos cuja história e significado só se encontram em períodos mais antigos.[3]

O medievo bebe na fonte dos antigos mas, não se contentando com o paladar, altera-lhe o sabor a seu gosto. Estamos falando de uma nova utilização dos antigos (entendidos como toda a cultura antiga, não somente a clássica), que alguns chamariam supostamente de imitação servil, mas que, aos olhos do homem da época é algo completamente novo, moderno. A partir do legado da tardia Antigüidade latina, a Idade Média adotou e transformou seus elementos, construindo uma imagem própria dos antigos: ?a Antigüidade está presente na Idade Média como recepção e transmutação?.[4]

Os medievos procuraram traduzir, estudar e entender os antigos, pois, para refutar suas doutrinas foi preciso conhecê-las. Eles acreditavam que a filosofia antiga (sobretudo Aristóteles e Platão) tinha de ser reutilizada, à luz de uma nova interpretação cristã, como nos diz neste trecho o inglês Daniel de Morley, reportando-se ao bispo de Norwich:

?Que ninguém se aflija se, tratando da criação do mundo eu invocar o testemunho não dos Padres da Igreja, mas de filósofos pagãos, pois, ainda que estes não figurem entre os fiéis, algumas de suas palavras, a partir do momento que estejam cheias de fé, devem ser incorporadas ao nosso ensino.? [5]

Vejamos a reinterpretação que Santo Agostinho, um dos expoentes da Idade Média, faz de Platão e Aristóteles, ilustrando com o capítulo 8 do livro VI das Confissões[6]. Nele, Alípio ? ex-aluno e futuro amigo de Agostinho ? recusa-se a assistir às lutas de gladiadores, mas acaba sendo levado ?amigavelmente? à força pelos amigos. Para se proteger contra a massificação e a catarse daquele espetáculo sangrento e cruel, o jovem Alípio conta com seu esclarecimento sobre o que é o bem e o mal, pois o homem instruído e consciente seria capaz de se proteger contra tais males: ?Por arrastardes a esse lugar e lá colocardes o meu corpo, julgais que podereis fazer com que o espírito e os olhos prestem atenção aos espetáculos? Assistirei como ausente, saindo assim triunfante de vós e mais dos espetáculos?[7]. Ledo engano: o homem esclarecido, consciente de si mesmo se entrega tanto mais facilmente e com tanto mais ardor àquela massificação. Vamos nos apoiar na brilhante análise que Erich Auerbach[8] faz desse texto para mostrar como a Antigüidade é reutilizada pelo pensador cristão. A autoconsciência individualista e orgulhosa é derrubada: ?não se trata de um Alípio qualquer, mas de toda a cultura racional e individualista da Antigüidade clássica: Platão e Aristóteles, os estóicos e os epicuristas?[9]. A derrocada é tanto maior quanto maior a suposta consciência: o homem consciente se converte em massa e vai além, conduz a massa. Essa mudança radical, como aponta também Auerbach, é cristã, sendo a derrota a primeira etapa da redenção em Deus: ?O Cristianismo dispõe, na sua luta contra a embriaguez mágica, de outras armas que não as da elevada cultura racional e individualista da Antigüidade?[10]. Se por um lado, Agostinho reutiliza os antigos, seu estilo de texto é ?totalmente anticlássico?, tanto no tom humanamente dramático como na forma, que lembra passagens bíblicas; Agostinho se utiliza dos clássicos, mas não se deixa dominar por ele, como aponta Auerbach.

Dante é outro ?produto? da Antigüidade, e bebe dessa fonte para construir o maior painel da época medieval, sua Divina Comédia. Na viagem de Dante ao Inferno, ao Purgatório e ao Paraíso ? conduzido pelo altíssimo poeta Virgílio, a mentalidade, a cultura, a sociedade, o amor são questionados em conversas travadas com inúmeros personagens. A Divina Comédia também é uma censura à época, escrita, segundo o poeta, em ?linguagem vulgar que as mulheres utilizavam em suas conversações diárias?[11]. No canto IV do Inferno, Dante e Virgílio se encontram com os antigos: Homero, Horácio, Ovídio, Lucano e depois Estácio. Esse encontro representa a aceitação de Dante no círculo dos poetas antigos (a bella scuola) e a sanção de sua missão poética.[12] Assim, só podemos compreender Dante, se estudarmos Virgílio e, antes deste, Homero:

?O encontro de Dante com a bella scuola autoriza a incorporação da épica latina na poesia universal cristã. Compreende um lugar ideal, onde ficou reservado um nicho para Homero, e onde se acham reunidas todas as grandes figuras do Ocidente (...) Nele deita raízes a Divina Comédia. É a velha estrada da Antigüidade que conduz ao Mundo Moderno.?[13]

Ecoam também em Giovani Bocaccio, autor do Decameron, os reflexos dos antigos. Na medida em que ambos rompem com uma estrutura rígida coercitiva, Eurípides e Bocaccio são precursores da nossa modernidade. Aquele desmistificando o esquema coercitivo-aristocrático das tragédias, colocando o povo como personagem principal e celebrando o indivíduo. Bocaccio, grande admirador e seguidor de Dante, popularizando a literatura e escandalizando com suas novelas, escritas em língua vulgar, em que jovens fogem da peste e se refugiam nos montes, visualizando novos horizontes (fuga do passado, rumo a uma nova era); temos, então, uma transfiguração do espírito revolucionário de Eurípides. Além disso, ambos são precursores do romance burguês moderno.

Podemos citar inúmeros outros exemplos, mas limitemo-nos a expor mais dois: o primeiro intelectual, tal como concebemos, nasceu na Idade Média: Abelardo, cristão nutrido na filosofia antiga que reclama a aliança entre a razão e a fé, o primeiro professor, para usar as expressões de Le Goff[14]; e as Universidades, centro da nossa intelligentsia e instituição de pesquisa por excelência, foram criadas nessa época.

Há que se negar as oposições Medievalidade-Antigüidade e Medievalidade-Modernidade pois não se pode ser moderno se não se estuda os antigos. Isso vale tanto para a Idade Média em relação à Antigüidade como para o nosso mundo com relação à Idade Média. É a partir do legado da Idade Média que os clássicos chegam aos renascentistas e, depois, até nós. Dizemos que nosso mundo atual é fruto do pensamento clássico greco-romano. Na verdade, não nos damos conta que somos filhos do pensamento medieval, no qual os conceitos clássicos passaram pelo filtro da doutrina cristã:

?falamos idiomas surgidos naquela época, temos ou pretendemos ter governos representativos, consideramos indispensáveis instituições como julgamento por júri e habeas corpus, alcançamos maior eficiência com o sistema bancário, a contabilidade e o relógio mecânico, cuidamos do corpo com hospitais e óculos, alimentamos melhor o espírito graças à notação musical, à imprensa e às universidades, embelezamos a vida com a música polifônica e os romances?.[15]

Temos de tentar compreender a Idade Média, então, a partir dos olhos de uma pessoa daquela época, isto é, sem preconceitos, reconhecendo sua modernidade e seu rico legado cultural. Conhecer a Idade Média, matriz da civilização ocidental cristã, enfim, é compreender melhor o nosso século.

Referências Bibliográficas

AUERBACH, Erich. Mimesis ? A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1998.

CURTIUS, Ernst R. Literatura Europea y Edad Media Latina. México: Fondo de Cultura Económica, 1995.

FRANCO Jr., Hilário. A Idade Média ? Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1996.

HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

LE GOFF, JACQUES. Os Intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1995.

LOYN, Henry R. (org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999, Coleção Os Pensadores.



-------------------------------------------------------------------------------------------------

[1] Cf. OLIVEIRA, Franklin. ?Breve Panorama Medieval? in LOYN, Henry R. (org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. V.

[2] Cf. CURTIUS, Ernst R. Literatura Europea y Edad Media Latina. México: Fondo de Cultura Económica, 1995, p. 21

[3] Ibidem, p. 30.

[4] Ibidem, p. 39.

[5] Apud LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 29.

[6] Santo Agostinho. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

[7] Ibidem, p.157.

[8] AUERBACH, Erich. Mimesis ? A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1998, pp. 56-61.

[9] Ibidem, p. 59.

[10] Ibidem, Loc. cit.

[11] Apud FRANCO Jr., Hilário. A Idade Média ? Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 140.

[12] Cf. CURTIUS, Ernst R. Op. cit. p. 37.

[13] Ibidem, p. 38.

[14] LE GOFF, Jacques. Op. cit. pp. 39 ss.

[15] FRANCO Jr., Hilário. Op. cit. p. 179.

Unicamp




- Para Le Goff, A Idade Média Somente Terminou Com A Revolução Francesa De 1789!
Segundo o historiador francês Jacques Le Goff, a Idade Média começou com a queda de Roma (476) e somente terminou com a Revolução Francesa (1789). O autor defende esta tese em toda a sua obra, mas em A Idade Média Explicada aos meus Filhos (Editora...

- O Diabo Como ConstruÇÃo: A DemonizaÇÃo De SÍmbolos E Costumes Antigos No Final Da Idade MÉdia
O DIABO COMO CONSTRUÇÃO: A DEMONIZAÇÃO DE SÍMBOLOS E COSTUMES ANTIGOS NO FINAL DA IDADE MÉDIA Gersonilson Honorato da Silva Junior Poliana de Sousa Melo Pretende-se analisar neste trabalho como se deu a construção da figura do Diabo, criada por...

- Renascimento - Viagem à Origem Do Mundo Moderno
Série de História Viva mostra como os artistas do Renascimento inventaram uma nova civilização ao tentar reviver a cultura da Antigüidade clássica por Bruno Fiuza © LUIZ FERNANDO MACIAN (REPRODUÇÃO) Dante, Petrarca, Bocaccio e outros pioneiros...

- Idade Média
Idade Média Linha do Tempo 476 - Queda do Império Romano do Ocidente 800 - Coroação de Carlos Magno 1096 - Início das Cruzadas 1337 - Início da Guerra dos Cem Anos 1453 - Tomada de Constantinopla pelos turcos A Idade Média, de acordo com a...

- Renascimento Cultural.
Por Me. Cláudio Fernandes. Quando se estuda a transição da Idade Média, especificamente a Baixa Idade Média, para a Idade Moderna, percebe-se que ainda vigora em muitos livros didáticos de história, revistas e blogs de educação uma certa perspectiva...



História do Brasil e do Mundo








.