História do Brasil e do Mundo
História das Mentalidades, Imaginário e Psico-História
(artigo publicado na revista Labirinto,
da Universidade Federal de Rondônia)
Dentro de uma fascinante profusão de campos intradisciplinares que tem revelado um sensível enriquecimento dos estudos históricos no que se refere ao interesse por novos objetos e por novas abordagens, a historiografia da segunda metade do século XX assistiu à significativa emergência de campos do saber historiográfico que passaram a valorizar o universo mental dos seres humanos em sociedade, os seus modos de sentir, o Imaginário por eles elaborados coletivamente. Às modalidades já tradicionais na historiografia como a História Política, a História Econômica ou a História Social, os novos historiadores propuseram acrescentar a História das Mentalidades, a Psico-História, a História do Imaginário. Teremos aqui campos que com alguma freqüência se interpenetram no que concerne aos seus objetos, às suas fontes privilegiadas, às suas abordagens e aportes teóricos, às suas conexões com outros saberes e aos seus padrões de interdisciplinaridade. Contudo, cada um destes campos conserva singularidades e aspectos que nos permitem separá-los entre si como espaços intradisciplinares bem diferenciados.
O objetivo deste artigo será o de clarificar as diferenças e similitudes entre aqueles campos historiográficos que têm atentado mais enfaticamente para o estudo dos padrões mentais, dos modos de sentir e dos imaginários coletivos nos vários períodos históricos, ou, mais particularmente, a História das Mentalidades, a Psico-História e a História do Imaginário.
História das Mentalidades
Será bastante oportuno iniciar esta discussão crítica com um exame dos aspectos que têm permitido identificar esta modalidade historiográfica que se mostrou polêmica deste os seus primórdios: a História das Mentalidades. Esta nova modalidade da História, que tem precursores já na primeira metade do século XX mas que, rigorosamente, começa a se delinear como um novo espaço de ação para os historiadores na segunda metade do século, propunha-se enfocar a dimensão da sociedade relacionada ao mundo mental e aos modos de sentir, ficando a partir daí sob a rubrica de uma designação que tem dado margem a grandes debates que não poderão ser todos pormenorizados aqui.
Terá certamente contribuído para esta polêmica o fato de que os historiadores das mentalidades foram os primeiros a se interessarem por determinados temas não convencionais, desbravando certos domínios da História que os historiadores ainda não haviam pensado em investigar. Assim, Robert Mandrou propôs-se a estudar a longa persistência de certos modos de sentir que motivaram a prática da feitiçaria e sua repressão no livro Magistrados e feiticeiros na França do século XVII (1979); Jean Delumeau impôs a si a tarefa de examinar um complexo de medos de longa duração que haviam estruturado o modo de sentir do homem europeu durante muito tempo, e cuja lenta superação permitiu precisamente a passagem para o mundo moderno (1989), Philippe Ariès (1981) e Michel Vovelle (1982) empenharam-se dedicadamente em analisar historicamente os sentimentos do homem diante da Morte.
De certo modo, por força dos novos e imprevisíveis objetos que traziam à tona com bastante audácia – e em virtude de sua tendência a dedicarem anos de um exaustivo trabalho intelectual a temas que deles fizeram verdadeiros especialistas em objetos historiográficos até então considerados insólitos – os historiadores das mentalidades vieram a constituir uma espécie de vanguarda da tendência da Nova História da segunda metade do século XX em se tornar uma espécie de “história em migalhas”, para utilizar aqui a famosa expressão que deu um título ao impactante livro de François Dosse (1994) . sobre a passagem dos Annales para a Nova História Foram eles que primeiro exploraram certos temas que – a princípio recebidos pelos demais historiadores como estranhos ou exóticos – logo encontrariam um curioso lugar editorial entre uma multidão de outros campos temáticos que posteriormente marcariam, através de uma miríade de novas especialidades relativas aos ‘domínios’ históricos, a tendência à fragmentação que parecia deixar definitivamente para trás as antigas ambições braudelianas de realizar uma ‘história total’.
Devido à sua exploração ousada de certos temas até então incomuns, a História das Mentalidades produziu no seu nascedouro uma forte estranheza que logo despertaria acirradas polêmicas. Mas é muito importante ter em vista que a História das Mentalidades não pode ser definida essencialmente com base nestes novos domínios historiográficos que ela passou a privilegiar em um primeiro momento. Mesmo porque, posteriormente, estes mesmos domínios também foram retomados por outros campos da história que pouco ou nada têm a ver com a História das Mentalidades.
Rigorosamente, qualquer tema pode ser trabalhado a partir dos vários enfoques que classificaremos aqui como relacionados às ‘dimensões’ sociais (a Política, a Economia, a Cultura, as Mentalidades, o Imaginário, e assim por diante) . Assim, uma História da Morte pode ser trabalhada pela História Demográfica, pela História Política, pela História da Cultura Material, e não apenas pela História das Mentalidades. Em contrapartida, temas já tradicionais como o do “nacionalismo” ou o da “religião” podem ser igualmente examinados da perspectiva de uma História das Mentalidades. Não são, portanto, os domínios privilegiados pelos historiadores das mentalidades que definem o tipo de história que fazem, mas sim a dimensão da vida social para a qual os seus olhares se dirigem: o universo mental, os modos de sentir, o âmbito mais espontâneo das representações coletivas e, para alguns, o inconsciente coletivo.
A verdadeira polêmica que envolve a história das mentalidades é teórica e metodológica. Apenas para registrar alguns problemas pertinentes a este campo historiográfico que se consolida a partir da década de 1960, mencionaremos aqui as questões fundamentais que devem ser refletidas pelo historiador que ambiciona trilhar estes caminhos de investigação. Existirá efetivamente uma mentalidade coletiva? Será possível identificar uma base comum presente nos “modos de pensar e de sentir” dos homens de determinada sociedade – algo que una “César e o último soldado de suas legiões, São Luís e o camponês que cultivava as suas terras, Cristóvão Colombo e o marinheiro de suas caravelas”? Estas imagens, extremamente oportunas, foram celebrizadas por Lucien Febvre.
Abraçando a perspectiva teórica de que existem de fato mentalidades coletivas, o historiador deve ampliar a sua concepção documental. Conforme assinala François Furet (1991: p.93), se o historiador das mentalidades pretende alcançar níveis médios de comportamento, não pode se satisfazer mais apenas com a literatura tradicional do testemunho histórico, que é inevitavelmente subjetiva, não representativa, ambígua. Assim, como veremos adiante, ocorreu um casamento feliz entre a História das Mentalidades (um campo histórico que se refere a uma ‘dimensão’) e a História Serial (um campo histórico que se refere a uma ‘abordagem’). A revalidação dos estudos de natureza qualitativa, ao lado da abordagem serial, não esteve contudo alheia a outros historiadores das mentalidades –como no caso de Michel Vovelle, historiador marxista das mentalidades que defende em um artigo importante o uso das duas abordagens como igualmente válidos para captar a dimensão mental de uma sociedade (1987: p.31).
Para resumir três ordens de tratamentos metodológicos que os historiadores das mentalidades têm empregado na sua ânsia de captar os modos coletivos de pensar e de sentir, poderemos registrar precisamente (1) a abordagem serial, (2) a eleição de um recorte privilegiado que funcione como lugar de projeção das atitudes coletivas (uma aldeia, uma prática cultural, uma vida), ou finalmente (3) uma abordagem extensiva de fontes de naturezas diversas. Neste último caso enquadra-se a obra O Homem diante da Morte, de Philippe Ariès. Nesta ambiciosa obra, lança-se mão dos mais diversos tipos de fontes – desde os escritos de todos os tipos (obras literárias, textos hagiográficos, poemas, canções, crônicas oficiais, testemunhos anônimos) até as fontes iconográficas e os objetos da cultura material. Vovelle denomina a esta utilização de um universo de fontes tão heterogêneo, percorrido mais ou menos livremente, de técnica “impressionista” (1987: 51).
Ele mesmo já utiliza a segunda ordem de procedimentos a que atrás nos referíamos: de um modo geral, prefere a abordagem serial. Em sua tese sobre a Piedade Barroca e Descristianização (1978), Vovelle examinou com precisão e método milhares de testamentos provençais – sempre de forma maciça e procurando enxergar serialmente padrões e deslocamentos de padrões que denunciassem as variações das atitudes diante da morte na longa duração por ele escolhida. Quando examina fontes iconográficas, afasta-se da abordagem qualitativa livre para avaliar topicamente a recorrência e a ruptura de certos modos de representar, às vezes medindo espaços no interior da representação iconográfica e quantificando elementos figurativos. Se vai às fontes da cultura material, à arquitetura funerária, por exemplo, faz medições das distâncias que separam túmulos e altares. Sua abordagem é portanto sistemática, cuidadosamente preocupada com a homogeneidade das fontes e com o seu lugar preciso dentro da série.
A derradeira ordem de tratamentos metodológicos corresponde à já mencionada eleição de um recorte privilegiado que funcione como lugar de projeção das atitudes coletivas ou de padrões de sensibilidade. Pode ser um microcosmos localizado ou uma vida, desde que o autor os considere significativos para a percepção de uma mentalidade coletiva mais ampla.
Leia a continuação deste artigo em:
http://www.cei.unir.br/artigo71.html
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