Francisco Curt Lange: modernismo musical sociabilidades e identidade nacional (1930-40)
História do Brasil e do Mundo

Francisco Curt Lange: modernismo musical sociabilidades e identidade nacional (1930-40)


Franz Curt Lange, musicólogo nascido em Eilenburg, Alemanha, em 1903, morreu em Montevideo em 1997, graduou-se em arquitetura na Universidade de Munique em 1927, e doutorou-se em Bonn em 1929, com uma tese sobre a polifonia nos Países Baixos. Estudou regência com Arthur Nikish (1885-1922), um dos maiores nomes da regência, e responsável em grande parte pelas reputações das orquestras de Leipzig (Gewandhaus) e Berlim (Filarmônica) cargos que acumulou até a morte. Além de estudar regência e piano, Curt Lange foi discípulo dos mais eminentes musicólogos alemães: Adolf Sandberger (1864-1943), Ernst Bücken (1884-1949), Erich Hornbostel (1877-1935), Curt Sachs (1881-1959) e do belga Charles van den Borren (1874-1966).[1]
Desenvolveu uma trajetória muito importante na América Latina. Estabeleceu-se em Montevidéu em 1930, a convite do governo uruguaio, dirigindo a seção musical do Instituto de Estudos Superiores do Uruguai. Criador do chamado Americanismo musical e do Boletin Latino-americano de Música (1935-1946) e autor de diversos ensaios que tratam da música colonial latino americana.
Com o auxílio financeiro de duas instituições privadas, o Arquivo Curt Lange que foi integrado à Universidade Federal de Minas Gerais em 1995 (quando surgiu a denominação Acervo Curt Lange - ACL-UFMG) oferece no acervo registros da vida musical latino-americana ao longo de praticamente todo o século vinte e, desta forma, oferece uma documentação preciosa para a pesquisa musical, bem como para o estudo da musicologia na América Latina.[2] Além dos registros audiovisuais, das partituras e dos programas de concerto e periódicos, tal como o Música Viva, estão concentradas no Arquivo cerca de 70.000 cartas enviadas e recebidas pelo musicólogo alemão nas quais encontramos interlocutores importantes do cenário musical e musicológico dos anos 1930 e 1940, como Villa-Lobos, Hans Joachim Koellreutter, Cláudio Santoro, Mário de Andrade, Andrade Muricy.
As cartas são fontes privilegiadas que oferecem uma gama de possibilidades para a pesquisa histórica. Estas expressam diversas imagens que os correspondentes fazem de si e do destinatário e também ocultam muito destas imagens. Criam um desejo de reciprocidade, pois o envio de uma carta deixa explícito e por muitas vezes implícito o desejo de resposta.[1]
As cartas expressam a presença de redes de comunicação entre indivíduos e grupos, sendo a partir destas, necessário pensar a construção de redes de sociabilidade por meio das quais os correspondentes constroem implícita ou explicitamente aproximações, distanciamentos, rupturas, pactos, tensões e afetos.
Como no caso do arquivo pessoal de Curt Lange, “a conservação de séries inteiras por escritores, políticos, artistas e outros nos faz pensar em um ato de memória consciente e sondar sua possível interferência sobre a espontaneidade dos escritos.” [2] O mapeamento desta tipologia de fonte consiste na identificação do volume de cartas endereçadas a cada um dos correspondentes e sua distribuição temporal, sua periodicidade e regularidade das trocas, cujos resultados que podem ser expressos em gráficos permitirão visualizar a rede em pleno funcionamento.[3]
De acordo com Malatian, por meio das cartas pode-se identificar

as intrincadas redes de relações sociais que reúnem seus autores. Isto é importante, particularmente para o caso dos intelectuais, pois envolve sua rede profissional, onde ocorrem trocas de livros, opiniões, sentimentos diversos e firmam-se estratégias de atuação entre os pares. (...) Pelas cartas trocadas, percebe-se a organização de um grupo em torno de certos indivíduos que desempenham papel central a partir de um projeto ou objetivo comum. (...) O grupo comporta amizades e ódios, disputas e alianças a que está sujeito. Tais informações serão de grande utilidade também para a compreensão da personalidade de um determinado autor, da construção da sua obra, da recepção das suas idéias.[4]

A tarefa consiste em problematizar a inserção social de Lange e de seus interlocutores no universo cultural/musical modernista brasileiro entre os anos 1933 e 1946. Dentro destes fragmentos de diálogos codificados, a busca pelos significados dos códigos aponta para relações entre Curt Lange e o modernismo musical brasileiro representado nos discursos de outros intelectuais: Villa-Lobos, Mário de Andrade, Cláudio Santoro.
Apesar de não ordenados, hierarquizados ou necessariamente explícitos, os temas que transitam nas cartas tecem redes de sociabilidades que demonstram ou ocultam preocupações comuns que envolvem a cultura política[5] nacionalista dos anos 1930 e 1940: o nacionalismo musical, o dodecafonismo, a institucionalização da educação musical no Brasil, a criação de periódicos especializados em música e de órgãos oficiais para a circulação e difusão musical.
Os temas que ecoam nas cartas demonstram diferentes posicionamentos frente à natureza da nacionalidade musical brasileira. Um intenso debate em torno da construção de uma suposta musicalidade “originalmente” nacional dominou a cena musical entre os anos 1920 e 1940. Resultado deste debate estético, O Música Viva foi um importante periódico fundado por J. Koerreutter, músico alemão que chegou ao Brasil em 1937 e fundou, também, um importante movimento musical homônimo à revista aqui citada. O Grupo Música Viva era formado por compositores como Cláudio Santoro e Guerra-Peixe, diferenciava-se, em vários aspectos, do nacionalismo musical de Mário de Andrade e Villa-Lobos. Porém,
o grupo Música Viva não se tornou a vanguarda anti-nacionalista, como costuma ser visto, mas defendeu um novo nacionalismo – um nacionalismo de vanguarda. Os textos de Guerra Peixe e Santoro analisados, demonstram que o nacionalismo musical continuava sendo uma referência importante para o grupo, mas a necessidade de diferenciação em relação aos compositores consagrados levava os dois jovens a criticar sua forma de nacionalismo propondo uma reelaboração. Ao invés de um nacionalismo baseado em citações de canções folclóricas e construído com uma técnica composicional neoclássica, como vinha sendo praticado durante a década de 1930, o Grupo Música Viva defendia uma pesquisa das características técnicas do folclore musical que deveriam ser associadas às técnicas modernas de composição.[6]

Como é perceptível nas cartas dos seus representantes, desde o momento de sua fundação em 1939, o Grupo Música Viva provocou um conflito entre seus integrantes e a geração nacionalista representada por Villa-Lobos, Mário de Andrade, Renato Almeida, dentre outros. Os jovens compositores, representados por Koellreuter, Cláudio Santoro, Guerra Peixe, dentre outros, defendiam um novo nacionalismo calcado na revalorização da música popular, inclusive a música urbana, até então deixada em segundo plano pelo discurso nacionalista de outros atores. Estes modernistas utilizaram o dodecafonismo e, por isso foram bastante criticados por nomes como Villa-Lobos e Renato Almeida.[7]
Acredita-se aqui que uma história dos conceitos, tal como propõe R. Koselleck (2006) consiste numa metodologia importante. O que está em jogo nesta disputa pelo som deve ser percebido a partir das diferenças entre os conceitos de “moderno” e “nacional” implícitos nas duas vertentes musicais e musicológicas. Em outras palavras, a história dos conceitos busca o tempo histórico implícito na linguagem das fontes. No caso desta pesquisa, buscamos a relação entre futuro/passado construída pela produção musical e na musicologia. Qual o significado de “moderno” e “nacional” presente nos textos musicológicos e na produção musical de ambos os grupos?
Foram muitos os problemas encontrados pelo grupo de Koellreutter para se inserir naquele contexto nacionalista. A luta pela difusão da produção musical bem como as tensões advindas das idéias musicais conflitantes envolvia a publicação do periódico Musica Viva com a política nacionalista do governo Vargas. Assim, estes embates travados no campo da música não podem ser dissociados das tensões políticas sob as quais se assentava as questões mais específicas que ecoam na documentação.
Em carta enviada a Curt Lange em fevereiro de 1942[8], Koellreutter expressava sua intenção em publicar o Música Viva em três idiomas: inglês, português e espanhol. Pouco tempo depois, em outra carta de julho de 1942, Koellreutter dizia que
“Acabo de voltar do Departamento Estadual de Imprensa e propaganda onde fui recebido hoje. (...) O resultado é o seguinte: como a revista é impressa no Brasil temos que requerer no DIP do Rio de Janeiro (...) Porém, nos disseram que conforme o novo decreto da nacionalização da imprensa, “Música Viva” não pode sair em língua castelhana ou inglesa (...) Eu não entendo isso em vista da política de boa vizinhança e de pan-americanismo.” [9]
Nas entrelinhas desta carta estão implícitas alguns elementos que envolviam a produção musical e musicológica e aquele contexto político. Deduz-se aqui a presença de uma relação de força: por um lado, a tentativa nacionalista oficial que tinha como objetivo o controle da construção de uma identidade brasileira que fosse pautada num nacionalismo centralizador e homogêneo, por outro, a tentativa de músicos com tradições musicais e culturais diferenciadas que buscavam uma unidade pautada no denominado Americanismo Musical. Como vemos, esta última tendência encontrou resistência num terreno político nada fértil, politicamente, para a difusão de novas idéias que iam de encontro com as propostas nacionalistas representadas, por exemplo pela figura dominante de Villa-Lobos.
NOTAS:
[1]SADIE, Stanley. Dicionário Grove de Música: edição concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
[2] COTTA, André Guerra (org.). Guia Curt Lange. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.


[3] MALATIAN, Teresa. Cartas: narrador, registro e arquivo. In: PINSKI, Carla Bassanezi; LUCA, Tânia Regina de. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, p. 195-223.
[4] MALATIAN, 2009, p. 195.
[5] MALATIAN, 2009, p. 196.
[6] MALATIAN, 2009, p. 197.
[7] Sobre as relações entre a história dos intelectuais, a história política e social da cultura Sirinelli afirma que “a história dos intelectuais tornou-se (...), em poucos anos, um campo autônomo que longe de se fechar em si mesmo, é um campo aberto, situado no cruzamento da história política, social e cultural.” SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, Réne. Por uma história política. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1996, p. 231-262.
[8] EGG, André. O Grupo Música Viva e o Nacionalismo Musical. ANAIS III FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2005.
[9] EGG, André. O debate no campo do nacionalismo musical no Brasil dos anos 1940 e 1950: o compositor Guerra Peixe. Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de Pós-Graduação em História, do Departamento de História, do Setor de Ciências Humanas Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, 2005.
[10] Carta de Koellreutter a Curt Lange, Rio de Janeiro, 02 de fevereiro de 1942. ACL 2.2.S15.0949.
[11] Carta de Koellreutter a Curt Lange, Rio de Janeiro, 23 de Julho de 1942. ACL 2.2.S15.0949.





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