Historiador identifica mudanças nessa representação social desde a Idade Média
Adriana Melo
"Antigamente, a morte era uma tragédia - muitas vezes cômica
- na qual se representava o papel daquele que vai morrer.
Hoje, a morte é uma comédia - muitas vezes dramática - onde
se representa o papel daquele que não sabe que vai morrer."
Philippe Ariès
A visita ao túmulo de um ente querido nos parece um ato corriqueiro, tão familiar que pensamos ser um hábito que sempre existiu e que já é parte da natureza humana. No entanto, em seu livro História da morte no Ocidente, o historiador francês Philippe Ariès (1914-1984) mostra que a atitude do homem diante da morte mudou muito ao longo dos séculos e que a forma como ela é hoje encarada é, na verdade, muito recente.
As transformações da representação social da morte passam despercebidas por serem muito lentas, seguidas por longos períodos de estabilidade. O tempo que as separa equivale a várias gerações e ultrapassa a capacidade da memória coletiva. Para traçar um panorama dessas mudanças desde a Idade Média, Ariès se baseou em textos literários, inscrições em túmulos, obras de arte e até diários pessoais.
Segundo o historiador, havia no início da Idade Média uma familiaridade com a morte, que era um acontecimento público. Ao pressenti-la, o moribundo se recolhia ao seu quarto, acompanhado por parentes, amigos e vizinhos. O doente cumpria um ritual: pedia perdão por suas culpas, legava seus bens e esperava a morte chegar. Não havia um caráter dramático ou gestos de emoção excessivos.
O corpo era enterrado nos pátios das igrejas -- que também eram palco de festas populares e feiras. Mortos e vivos coexistiam no mesmo espaço. A partir de 1231 foram proibidos jogos, danças e feiras nos cemitérios: começava a soar incômoda a proximidade entre mortos e vivos. As sepulturas, anônimas até o século 12, passaram a ser identificadas por inscrições, efígies e retratos: era importante preservar a identidade mesmo após a morte. A arte funerária evoluiu muito do século 14 ao 18.
Túmulo de Inês de Castro em Portugal (séc. 14). Na época, era costume a representação do morto por uma estátua, às vezes a reprodução de uma máscara modelada no rosto do defunto
A partir do século 18, conta Ariès, a morte tomou um sentido dramático, exaltado. Passou a ser encarada como uma transgressão que roubava o homem de seu cotidiano e sua família. Inaugurava-se o culto aos cemitérios. O luto era exagerado: o personagem principal era então a família, e não mais o morto. Não se temia mais a própria morte, mas a do outro. A partir da segunda metade do século 19, a morte se transformou em tabu: os parentes do moribundo passaram a tentar poupá-lo, esconder a gravidade do seu estado.
A partir dos anos 1930, a medicina mudou a representação social da morte: já não se morre em casa, entre parentes, mas no hospital, sozinho. Os avanços da ciência permitem prolongar a vida ou abreviá-la. Pacientes podem ser condenados a meses ou anos de vida vegetativa, ligados a tubos e aparelhos.
História da morte no Ocidente é o resultado de 15 anos de pesquisa de Ariès sobre o tema. Suas 305 páginas reúnem um apanhado de diversos artigos e conferências preparados pelo autor entre 1966 e 1975. Esses ensaios foram produzidos de forma independente, o que explica eventuais redundâncias. O tema da obra, no entanto, é fascinante, e a edição brasileira traz dezenas de fotos e reproduções de obras de arte para ilustrá-los.
História da morte no Ocidente -
da Idade Média aos nossos dias
Phillippe Ariès (trad.: Priscila V. de Siqueira)
Rio de Janeiro, 2003, Ediouro
312 páginas
Adriana Melo
Revista Ciência Hoje
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