Coisa mais linda...
História do Brasil e do Mundo

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Em oposição ao melodramático samba-canção, a contida bossa nova reinventou o amor na música brasileira.
Paulo da Costa e Silva

Tente mostrar a um jovem a gravação da música ?Sistema Nervoso? no vozeirão de Orlando Correia, sucesso nas rádios em 1953. Ou faça com que ele ouça a rancorosa ?Vingança?, clássico de Lupicínio Rodrigues, também dos anos 1950. O resultado não deve variar muito. Os jovens de hoje não se identificam mais com músicas de voz impostada e cheia de vibratos, com letras exageradamente dramáticas, embaladas por plangentes violinos. Não tem jeito: essas canções nos soam ?antigas?.

Nada a ver com a idade da composição. Mesmo para os jovens da época, elas já chegavam datadas ao ouvido. Motivo? A recém-nascida bossa nova. Quando ela surgiu, em 1958, quase tudo o que tocava nas rádios se tornou subitamente ?velho?. Chico Buarque que o diga: ?Eu era um garoto que, como os outros, amava a bossa nova e o Tom Jobim. Não gostava mais das canções desesperadas. Só queria aquela música que era toda enxuta, porque derramada para dentro?.

Terminava o reinado do samba-canção, gênero que dominava, inconteste, o cenário musical brasileiro desde a segunda metade dos anos 1940. Depois de quase uma década de melodrama, os excessos haviam virado norma, o que reduzia seu efeito. Aos poucos, aquele amor sofredor e desesperado, alimentado por sua própria impossibilidade, como o de Romeu e Julieta, era deixado de lado. As dores-de-cotovelo de compositores pioneiros como Herivelto Martins e Lupicínio Rodrigues, assim como as de autores da fase mais sofisticada do gênero, como Antônio Maria e mesmo Dolores Duran, perderiam espaço para o amor solar e positivo de Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Carlos Lyra e companhia.

Leveza e novidade ? isso era tudo o que a juventude queria naquele final dos anos 1950. JK leva a capital para Brasília. O Brasil se sagra campeão mundial de futebol na Suécia. Nasce o Cinema Novo. A economia passa por um momento de euforia. As classes médias urbanas experimentam considerável crescimento. Mudam os estilos de vida: no Rio de Janeiro, os velhos bondes, vestígios idílicos da cidade antiga, cedem espaço aos novíssimos automóveis, e em Copacabana os casarões dão lugar a altos prédios de apartamentos. A cidade volta-se para o mar, e a cultura carioca vai com ela. É ?a civilização de praia?, como brincava Tom Jobim.

As canções de Tom e Vinicius também falavam de amor, mas trouxeram para o sentimento romântico uma nova inflexão. Impossível imaginar um samba-canção com o suave título de ?O Amor, o Sorriso e a Flor?, nome do segundo álbum de João Gilberto. Da mesma forma, seria inconcebível uma bossa nova chamada ?Caixa de Ódio? ou ?Judiaria? ? canções de Lupicínio Rodrigues. As letras se tornam mais leves, freqüentemente marcadas por elementos visuais luminosos, como o ?Dia de luz/ Festa do sol? que encontra ?O Barquinho? (Roberto Menescal/ Ronaldo Bôscoli) deslizando ?no macio azul do mar?.

E a ruptura ia além do conteúdo dos versos. Em suas melodias, a bossa nova também fazia jus ao nome. Ao contrário das canções de Lupicínio Rodrigues, nas quais os sentimentos passionais se expressam em abruptos deslocamentos entre notas graves e agudas e em longas durações vocálicas, a bossa nova prima pela economia de meios. Exemplo extremo desse minimalismo é o ?Samba de uma Nota Só?, em que, como o nome adianta, Tom Jobim e Newton Mendonça brincam durante quase toda a música em cima de uma nota-base: o ré.

É fácil perceber as diferenças de melodia nesses gêneros. Experimente cantarolar os primeiros versos de ?Nervos de Aço?, sucesso de Lupicínio: ?Você sabe o que é ter um amor, meu senhor? Ter loucura por uma mulher?? O canto se desloca de uma nota grave para outra muito mais aguda, e se fixa nela. Agora, faça o mesmo com a frase descritiva que inicia ?Corcovado? ? ?Um cantinho, um violão, este amor, uma canção?. A música de Tom se desenvolve passo a passo, sem grandes variações ou saltos entre as notas. Elas são curtas e próximas.

As grandes oscilações melódicas do samba-canção exigem certo esforço do intérprete. E esse tipo de canto transmite tensão, uma sensação de busca, um sentimento de falta, um desejo de completude ? características bastante conhecidas do amor romântico tradicional. São idéias estranhas à contida bossa nova, na qual não cabem arroubos sentimentais. Suas melodias exigem outra forma de cantar, mais branda e intimista, próxima da fala. É a música por excelência dos elevadores e aviões, ?não apenas porque é agradável, mas porque expressa perfeitamente uma ascensão sem esforço?, escreveu o musicólogo Lorenzo Mammi.

A harmonia ? arranjos e interação entre os instrumentos ? também soa renovada. Um acorde, por si só, já comunica um clima, uma sensação. Na obra de Jobim, a harmonia deixa de ser mero apoio à melodia. Elas se tornam complementares. Talvez seja esta a grande descoberta do maestro: uma canção pode ser feita sobre duas ou três notas apenas, sem com isso perder seu impacto emocional.

Nos sambas-canções, a melodia reina soberana, a serviço da letra. As músicas do gênero, também chamado de ?samba de fossa?, quase sempre nos contam histórias, em relatos autobiográficos. ?Caminhemos?, de Herivelto Martins, é exemplar: ?Não, eu não posso lembrar que te amei/ Não, eu preciso esquecer que sofri?. ?Exemplo?, de Lupicínio, segue a mesma linha: ?Dez anos estás a meu lado/ Dez anos vivemos brigando/ Mas quando eu chego cansado/ Teus braços estão me esperando?.

É claro que a música de Jobim também tem belas melodias. Mas, no lugar da narrativa, há um investimento na sensação. As letras da bossa nova dificilmente narram histórias ? preferem descrever situações, atmosferas, paisagens. São como pinturas ou fotografias: ?Eu, você, nós dois/ Sozinhos neste bar à meia-luz/ E uma grande lua saiu do mar (...) / O sol já vai caindo / E o seu olhar / Parece acompanhar a cor do mar? (?Fotografia?). A bossa nova rejeita o tom confessional das narrativas românticas, com seus fantasmas do passado e suas grandes profundidades sentimentais. Ao se ater à superfície das imagens, valoriza o instante e nunca retorna ao passado.

Essas opções não eram gratuitas. Entre as décadas de 1950 e 1960, nascia no país uma nova identidade amorosa. Num tempo de revolução comportamental, um novo tipo de mulher ? que estuda, trabalha, vota, milita, toma pílula anticoncepcional e pode até se divorciar ? ganha feições diabólicas no samba-canção. Ela é sempre a traidora volúvel, pérfida, responsável pelo ocaso masculino. Mais afinada com essas transformações, a bossa de um Vinicius de Moraes trata de redimir a mulher, em clássicos como ?Garota de Ipanema?, ?A Felicidade? e ?Ela é Carioca?.

As melodias de Tom, entre pequenos acidentes e deslizamentos de semitom, celebram a mobilidade e o descompromisso dos afetos. Mesmo os fracassos amorosos são perpassados por uma aura de afetividade. Ressentimentos, ódios e rancores não costumam freqüentar os corações da bossa nova. O rompimento amoroso não redunda em desespero, bebedeiras e suicídios porque traz consigo, junto com a dor, novas possibilidades. A melodia pode, agora, ser re-harmonizada infinitamente: o passado já não tem o mesmo peso. O homem abandonado não precisa perder a cabeça e maldizer a mulher. Afinal, seu amor pode até retornar: ?Mas, se ela voltar/ que coisa linda/ que coisa louca?, imagina o hino ?Chega de Saudade?.

Mas se não é triste como as fossas de outrora, não se pode negar que a bossa nova carrega certa melancolia. É a expressão contraditória de uma geração dividida entre a saudade do sentimento e a sedução da sensação. Suspensa entre um antigo modo de sociabilidade que ruía e uma nova ordem que se anunciava, mas que ainda não se definira com muita clareza. O amor surge como antídoto para essa insegurança, como uma identidade de resistência ? e por isso mesmo jamais pode resvalar para desejos de vingança ou traição. Como prega o título da canção de Tom e Vinicius, a bossa nova deixou ?o amor em paz?.

Paulo da Costa e Silva é músico e jornalista, autor da dissertação ?Contra os Excessos: Contenção, Equilíbrio e Amor na Bossa Nova? (PUC-Rio, 2008).

Saiba Mais - Bibliografia:

CASTRO, Ruy. Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

MAMMI, Lorenzo. ?João Gilberto e o Projeto Utópico da Bossa Nova?. Novos Estudos (Cebrap), nº 34, nov. 1992.

NAVES, Santuza. Da Bossa Nova à Tropicália. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

TATIZ, Luiz. O Século da Canção. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.

Saiba Mais - Filmes:

?Vinicius? (Miguel Faria Júnior, 2005)
?Coisa mais linda: histórias e casos da bossa nova? (Paulo Thiago, 2005)
?Os desafinados? (Walter Lima Jr., 2008) Revista de História da Biblioteca Nacional




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