História do Brasil e do Mundo
Cipriano Barata - Parte II
A vida e as ações de um lavrador, cirurgião, intelectual e presidiário
Cipriano José Barata de Almeida nasceu na freguesia de São Pedro Velho, em Salvador, na capitania da Bahia no dia 26 de setembro de 1762. Filho do tenente Raimundo Nunes Barata, nascido em Portugal, e de Luíza Josefa Xavier, nascida na América Portuguesa. Cipriano tinha ainda dois irmãos: José Raimundo Barata de Almeida e Joaquim José Barata de Almeida.
No ano seguinte ao do nascimento de Cipriano Barata a cidade de Salvador deixa de ser a capital da América Portuguesa, perdendo lugar para o Rio de Janeiro. Isso se deveu tanto a questões administrativas, visando um maior controle do tráfego de ouro e diamantes das Minas, quanto à queda dos intercâmbios comerciais entre Minas e Bahia, após a abertura do Caminho Novo. Essas desigualdades regionais, juntamente com a transferência do centro de poder, estão inseridas numa mesma conjuntura, provocadora de turbulências que estão diretamente ligadas à trajetória de Cipriano Barata.
Sobre os primeiros anos de vida de Barata não se sabe muito, apenas que foram vividos em uma Bahia cheia de desigualdades e conflitos, com uma natureza exuberante, mas permeada pela miséria. Aos 24 anos de idade, em 1786, ele matricula-se no curso de Filosofia da Universidade de Coimbra. Em 1787 matricula-se também no curso de Matemática, estudando também Medicina na mesma Universidade.
Certamente que a experiência de estudar em Coimbra foi marcante na formação de Cipriano Barata. Lá ele estudou juntamente com José Bonifácio de Andrada e Silva, José Egídio Alves de Almeida, Manuel da Câmara Bittencourt e Manuel Jacinto Nogueira da Gama. É interessante notar que todos esses colegas de Cipriano seguiram uma trajetória diferente da sua, ocupando algum cargo no aparelho de Estado. Com relação a José Bonifácio, por exemplo, Barata posteriormente desferiu ferrenhas críticas a sua posição no governo.
A Europa com que ele se deparou enquanto estudava em Coimbra também exerceu forte influência na sua formação. A Queda da Bastilha ocorrera enquanto Cipriano estava no terceiro ano de seus estudos. Certamente que os ideais franceses circularam, ainda que houvesse tentativas de conter as notícias revolucionárias. Barata pode ter contato com uma imprensa diferente daquela que circulava em sua terra natal, numa Europa que vivia os turbilhões das revoluções inglesa e francesa.
Cipriano torna-se bacharel em Filosofia em julho de 1790. Não concluiu os demais cursos, todavia obteve uma habilitação em cirurgia. Nesse mesmo ano retorna ao Brasil, possivelmente para acudir a família, que encontrava problemas financeiros depois da morte de seu pai. Ao voltar ele casa-se com Anna Joaquina de Oliveira, futura mãe de seis filhos seus. Para sua sobrevivência trabalhava como cirurgião. Tornou-se também um lavrador, cultivando, primeiramente cana-de-açúcar no Engenho de João Ignácio da Silva Bulcão. Quanto a esse ofício começam a aparecer tanto as contradições da personalidade de nosso personagem quanto as distorções a seu respeito perpetuadas por um tempo pela memória histórica oficial.
Se por um lado, ao ter contato com as idéias iluministas e as dos revolucionários franceses Cipriano Barata torna-se um ferrenho crítico do absolutismo português, de outro lado, no seu oficio de lavrador, mantinha-se como proprietário de ao menos 11 escravos. Essa aparente incoerência de postura reflete como Barata encontrava-se inserido na realidade que o cercava, ainda que questionasse certas referencias, mantinha um elo com as estruturas mentais de sua época. E não cabe aos historiadores condena-lo por tais características. De certa forma alguns estudiosos, ao alinharem Barata com os senhores de engenho desprezam a estrutura da sociedade baiana, a relação de um indivíduo com seu meio, alinhavando Barata exatamente com aqueles que ele buscou combater. O próprio fato de ele passar a plantar mandioca a partir de 1798 já é um significativo indício de que ele não fazia parte daquela aristocracia ligada à cana-de-açúcar.
Paralelamente à sua atividade de lavrador, Cipriano Barata desenvolveu-se também intelectualmente. Esse desenvolvimento, ao que tudo indica parece ter se acentuado nas décadas de 1820 e 1830, quando a sua posição na sociedade é caracterizada, sobretudo por ser um homem de letras. Essa posição social colocava-o como um sábio, um propagador dos ideais iluministas e também da revolução. Em meio a uma sociedade em que os livros eram reprimidos, ou mesmo considerados crimes, tornar-se um intelectual não era tarefa fácil. É muito provável que a estadia em Coimbra tenha facilitado bastante o acesso de Cipriano à literatura disponível na época, já que na América Portuguesa haviam diversos mecanismos de censura às obras tidas como perigosas. Ainda assim pode-se considerar que Barata fazia parte de uma elite letrada, uma geração ilustrada de fins do século XIX. Alguns acreditam que ele fazia parte de clubes secretos, ou mesmo que tenha fundado uma Loja Maçônica na Bahia chamada Cavaleiros da Luz. Se foi ou não fundador da loja não se sabe, mas certamente Barata freqüentava lojas maçônicas. Inclusive, sendo a maçonaria um importante espaço de sociabilidade e fomentação de idéias nesse momento, acreditamos que foi também um importante meio para a formação intelectual de Barata. Seja através de seus panfletos, ou mesmo de seu jornal, é possível perceber como Cipriano absorveu essas várias influências e forjou uma visão específica da realidade que o cercava.
Nosso personagem sentiu em sua trajetória a tensão existente entre o mundo público e o privado. Vivendo em uma sociedade permeada de princípios absolutistas e conservadores, ele buscava projetar-se na cena pública, instigar o debate, reagir contra as injustiças que o cercavam, ainda que sem propagar uma doutrina ou ideologia bem construída teoricamente. Talvez por isso mesmo seja sempre lembrado como um homem de ações. Já suas primeiras aparições como personalidade pública se dão em conflitos com autoridades eclesiásticas.
A primeira vez que seu nome aparece ligado a uma revolta é em 1798, na denominada Revolução dos Alfaiates. Ainda que sua participação na conspiração seja inegável, ela é ainda um tanto obscura, até mesmo devido às contradições de versões existentes nos Autos da Devassa, existentes inclusive em seus depoimentos. O primeiro indício de sua participação é encontrado no depoimento de Lucas Dantas, um dos conspiradores executados, no qual esse nomeia Barata como um dos envolvidos nas reuniões conspiratórias. A querela se inicia quando, primeiramente ele nega sua participação em tais reuniões e, em um segundo momento assume ter participado de encontro no qual, segundo ele, somente discutiram-se questões políticas, e não um levante conspiratório. Lucas Dantas, em outro depoimento, volta atrás a afirma não ter certeza se seria realmente Cipriano Barata que ele vira na tal reunião. Essas discordâncias e incoerências nos depoimentos demonstram uma tensão e divisão interna do movimento. O depoimento de João de Deus, alfaiate pardo, é significativo para ilustrar isso, na forma com que afirma que Lucas Dantas seria inimigo dito de Cipriano Barata. É importante, porém, frisar que existia sim uma divisão de atitudes entre os conjurados mas essa, de forma alguma refletia algum corte étnico ou social, havendo pardos e pobres em ambos grupos. Cipriano, ao contrário de Dantas e aqueles que os apoiavam, acreditava que a revolta deveria aguardar o reforço de tropas francesas para deflagrar-se.
Venceram os imediatistas, e a conspiração foi às ruas, mesmo sem um movimento coeso, daí as divergências existentes nos depoimentos. O fato é que a revolução proposta pelos baianos não apresentava um projeto uno e bem consolidado, o que talvez tenha sido um dos motivos de seu definhamento. Não se pode também negar o caráter contestatório do movimento, comprovado pelas punições de prisão e execução de quatro dos participantes, e também seu caráter igualitário devido a presença de diferentes camadas sociais no movimento. Cipriano Barata emerge por um lado como um dos que projetavam uma Republica Bahiense, aos moldes franceses. De outro se aproxima dos grandes proprietários, partilhando do temor de um conflito social aos moldes da revolução nas Antilhas. Novamente vemos as contradições de nosso personagem, essas que refletem as características próprias de uma sociedade de incertezas. Não se pode negar que o carisma de Cipriano e suas articulações foram fundamentais para a abrangência social do movimento. Nesse momento, com a experiência francesa ainda latente, Barata mostra-se mais como um agitador do que um pensador. Em setembro de 1798 Cipriano Barata é preso pela primeira vez, por seu envolvimento com os sediciosos. Em seus depoimentos prestados enquanto preso, novamente, ele adota uma postura evasiva, falando estar envolvido em discussões políticas, mas negando o caráter conspiratório dessas. A experiência do cárcere foi difícil para Barata, chegando a ponto de, a 22 de janeiro de 1799 ferir-se com um tesoura de cortar unhas, alegando que o fazia para aliviar parte das paixões que sentia. Alguns autores defendem a hipótese de que possa ter sido torturado.
Barata é sentenciado junto com os outro presos em novembro de 1799, sendo absolvido devido a falta de provas. Outros quatro pardos envolvidos na revolta não tiveram a mesma sorte, sendo enforcados e esquartejados em praça pública, num espetáculo punitivo que reafirmava, assim como no caso mineiro de 1789, o despotismo e absolutismo da metrópole portuguesa nas terras americanas, situação essa que será muito contestada por Cipriano.
Durante a primeira década do século XIX Cipriano, já beirando os 40 anos, parece distanciar-se um pouco da cena publica, dedicando-se mais a sua vida privada, especialmente a sua família. Continuava atuando como cirurgião e cultivando suas terras para sobreviver. Viu acontecerem ainda três rebeliões de escravos assuas na capital baiana, nas quais foram mortos quase todos os envolvidos. A barbárie aflorava-se à volta de Cipriano.
Em 1817 vemos Cipriano novamente envolvido com um movimento revoltoso. Os revoltosos assumiram o governo de Pernambuco, proclamando a República, que se estendeu à Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. Nota-se nesse movimento uma influência do ideário da República Norte-Americana, que, proclamada em 1776 mantinha a escravidão no seu bojo, e também das idéias liberais subseqüentes à Revolução Francesa. A República não chega à Bahia, seja devido à falta de bases políticas e sociais, seja pela forte presença do aparelho administrativo, personificado na figura do Conde dos Arcos. Todavia, é em Salvador que o padre Roma, figura
importante e emissário dos republicanos aos baianos, é preso e executado por ordem desse mesmo conde.
A partir do exame dos documentos encontrados com o padre Roma o conde convoca Barata ao palácio, aconselhando-o a mudar de vida ou correria o risco de também ter sua cabeça cortada. A partir desse testemunho fica claro o envolvimento de Cipriano com os revoltosos de 1817, ainda que não tenha sido proclamada a república na Bahia, ele se encontrava entre aqueles que conspiravam para que tal ocorresse. Tal ameaça parece não ter intimidado Barata, já que ele se envolve profundamente com os presos pernambucanos transferidos para Salvador, sempre intervindo na defesa desses, entre os quais apareciam o frei Caneca e Antonio Carlos de Andrada, irmão de José Bonifácio. Cipriano liderou uma espécie de campanha para anistia dos rebelados, que, em parte graças ao movimento constitucionalista do Porto de 1820, em curto prazo conseguiu com que os que ainda estivessem vivos fossem soltos. Como veremos adiante sua relação com essas figuras desenvolve-se de maneira distinta, a medida que alguns se envolvem com o poder despótico e outros continuam a questiona-lo, como fazia Cipriano.
A partir do ano de 1820 vemos Cipriano despontar-se como figura pública, e pode-se dizer que encontra também sua maturidade como intelectual. Foi um período onde múltiplas formas políticas apresentavam-se como modelos possíveis, desde uma república aos moldes franceses ao império tal como se configurou posteriormente. O Movimento Constitucionalista do Porto representou um importante momento tanto para o Reino do Brasil quanto para a figura de Barata. Já em 1817 a notícia do Movimento causava rebuliços no Brasil. A primeira capitania a aderir a esse dói a do Grão-Pará, seguida pela da Bahia. Cipriano Barata figurava entre os líderes do cortejo que, munido de oito canhões, tomou o Palácio, derrubando o conde da Palma, então capitão-general da Capitania. Seguiu-se a eleição de uma Junta de Governo, que foi assumida pelos constitucionais brasileiros, em oposição à tendência fiel ao absolutismo português. Aparentemente as reivindicações das revoltas anteriores começavam a ter seus ecos. Cipriano não figurou entre os eleitos para a Junta Governativa, todavia tal descrição mostra um pouco da importância de sua participação no movimento:
“Barata não está na Junta, mas ficará no coração enorme do povo entusiásticos por aquela eloqüência alta e rasteira, brilhante de latim e cheirosa de plebeísmo. Nele resumia-se a voz popular, a grande voz inarticulada da multidão.”
Em 21 de setembro de 1821 Cipriano Barata é eleito entre os deputados para representar Salvador nas Cortes convocadas em Portugal, em meio ao Movimento do Porto. Os objetivos das Cortes eram discutir a constituição almejada pelo Movimento, bem como a situação dos reinos de Portugal e do Brasil, já que desde 1808 a família real portuguesa encontrava-se em terras brasílicas. Assim sendo, Barata retorna a Portugal, quase três décadas após seus estudos em Coimbra, juntamente com lideranças brasileiras que se destacariam posteriormente no período imperial, como Diogo Feijó e Pedro de Araújo Lima.
A atuação de Cipriano nas Cortes foi bastante destacada, apresentando-se como grande discursista e ferrenho crítico dos princípios absolutistas e recolonizadores. Seu primeiro discurso ao assumir a cadeira de deputado já demonstra o tom polêmico e combativo de sua atuação, já que ele propôs uma rediscussão das questões referentes ao Brasil que teriam sido discutidas na ausência dos deputados brasileiros. Inicialmente a posição de Cipriano Barata era a favor da manutenção do estatuto de Reino Unido entre Portugal e Brasil, criticando principalmente o sistema repressivo colonial, cadeias, prisões e instrumentos de tortura, demonstrando a preocupação não só política mais também social de seus discursos. Outro ponto que preocupava bastante nosso personagem é o referente ao poder militar dos portugueses nas terras brasileiras, lutando pelo cerceamento da presença militar no poder civil. A esse respeito ocorreu um momento simbólico e bastante tenso: o incidente entre ele e o marechal Luis Paulino Oliveira Pinto de França. Após atritos parlamentares os dois deputados baianos engalfinharam-se nos corredores, acabando por o último rolar escada abaixo e manchar seu uniforme de sangue.
Se, como foi dito, num primeiro momento Cipriano acreditava que dentro das relações de Reino Unido poder-se-ia abrir espaços para a prática da Liberdade e da Igualdade, vemos que sua postura vai se alterando. Da Bahia ao Brasil, de Reino Unido à Independência, todas as falas e projetos de Barata mantinham seu tom de ironia e contestação.
Paralelamente, nos territórios brasileiros, a possibilidade de uma separação de Portugal cristalizava-se. Em fevereiro de 1822, D. Pedro desobedece a ordem das cortes e decide por sua permanência no Brasil, no episódio do Daí do Fico. A 3 de junho de 1822 o mesmo D. Pedro convoca uma Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Brasil. Todos esses acontecimentos fazem com que a situação nas Cortes fique cada vez mais tensa, e, com Cipriano tomando parte dos projetos separatistas, defendendo a Assembléia Brasileira no plenário parece ser insustentável, como podemos apreender das palavras do nosso próprio personagem:
“(...) fiquem os portugueses no seu Portugal e os brasileiros no seu Brasil”.
E nas suas últimas palavras nas Cortes de Lisboa:
“ Quero dizer a Vossas Excelências, e a todos, que é necessário que lembremos que o que fazemos neste Congresso não tende senão a acelerar uma fatal independência para o Brasil.”
Em meio a tal cenário a Constituição portuguesa ficara pronta, e chegara o momento de assina-la. Pressões e ameaças recaíram sobre os deputados brasileiros. Cipriano articula, então, juntamente com outros sete deputados brasileiros uma fuga de Lisboa, com o apoio de autoridades britânicas, como forma de não ser condescendente com uma Constituição que ia contra seus princípios. Tal gesto, de enorme ousadia, trás simbolicamente a representação da retirada do Brasil do Reino de Portugal. Ao chegarem na Inglaterra Cipriano, junto com Feijó, Agostinho Gomes e Lino Coutinho redigem uma proclamação, que circula na grande imprensa tanto brasileira quanto mundial. Esse escrito, que curiosamente não foi assinado pelos dois Andradas que estavam entre os fugitivos Antonio Carlos e Costa Aguiar, reflete o momento em que eles tomavam consciência da independência efetiva do Brasil e celebrizou-se com o nome de Manifesto de Falmouth, local onde eles se encontravam.
A atuação enérgica e marcante de Cipriano nas Cortes é atestada pelo testemunho de um historiador lusitano:
“Ardente revolucionário, um dos mais intrépidos fautores da Independência brasileira, bastante popular pelo sei patriotismo e idéias liberais. É um vulto que o Brasil deve venerar, apesar dos desvarios de seu pensamento, porque foi um dos mais ardentes apóstolos da independência e da liberdade de sua pátria”.
Depois de um mês passado na Inglaterra e de nove turbulentos meses em Portugal, Cipriano Barata retornaria ao Brasil para se deparar com novas tensões, dessa vez referentes à organização de uma Nação brasileira.
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