História do Brasil e do Mundo
Carlos Magno e o Contestado
Ideais presentes em livro medieval inspiraram formação de exércitos de sertanejos durante a Guerra do Contestado. Os chamados ‘Pares de França’ na Europa carolíngia se tornaram, aqui, Pares de São Sebastião
Márcia Janete Espig
Na organização do estado maior dos fanáticos, encontra-se a influência da ‘História de Carlos Magno’, tanto assim que em Taquaruçu existem os Doze Pares de França e, em poder de um jagunço, já as forças legais encontraram um exemplar daquele livro, afirmava o jornal O Dia, de Florianópolis, em 17 de dezembro de 1914.
O trecho representava a opinião da elite litorânea local, espantada e perplexa ao saber que os “fanáticos”, “selvagens” e “bandidos” envolvidos no movimento do Contestado – guerra que ocorreu no Sul do Brasil entre 1912 e 1916 e tema de capa da Revista de História deste mês - não apenas liam, como também se inspiravam em uma obra literária europeia para lutar contra as tropas do governo central.
A tal obra se chama História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França, produzida na Europa medieval, que reuniu em 157 capítulos algumas versões sobre o período em que Carlos Magno foi imperador do Ocidente, por volta dos séculos VIII ou IX. O texto se difundiu na América portuguesa e espanhola a partir da influencia ibérica e, no Brasil, o conteúdo sobre o período carolíngio penetrou, sobretudo, a partir da tradução de uma narrativa romanceada de origem castelhana.
O português Jerônimo Moreira de Carvalho foi o responsável pela tradução do livro e sua publicação original em Lisboa no ano de 1728. A publicação de duas partes seguintes da tradução compuseram a obra História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França por Jerônimo Moreira de Carvalho dividida em duas partes e nove livros e seguida da de Bernardo del Carpio que venceu em batalha aos Doze Pares de França escrita por Alexandre Caetano Gomes Flaviense.
Conteúdo da obra se misturou com costumes locais
Lido em público, pela primeira vez, numa festa em Bom Jesus do Taquaruçu, o livro foi interpretado pela sociedade local e interferiu na organização do movimento do Contestado ao inspirar a formação de um grupo de elite, denominado Doze Pares de França, ou Pares de São Sebastião.
Como se pode perceber, a interpretação da gesta carolíngia (expressão criada pela historiografia para denominar o período em que Carlos Magno esteve no poder) mesclou elementos da lenda com valores locais, como lealdade, honra, coragem e o sentimento monarquista. A valorização da monarquia por meio de um sentimento religioso, por exemplo, encontra-se presente tanto no contexto catarinense quanto no literário. Outro interessante aspecto do conjunto de representações regional é a junção imaginária estabelecida entre a figura dos Doze Pares de França carolíngios e a devoção a São Sebastião, um santo guerreiro. Durante o conflito, São Sebastião passou a ser associado a um Exército Encantado, do qual seria comandante. Os sertanejos mais agressivos definiam-se, assim, como soldados do Exército de São Sebastião.
Pares de São Sebastião
Originalmente, os Doze Pares eram um grupo de elite que protegia o Imperador e a cristandade; no sertão catarinense, tornaram-se uma espécie de guarda de honra que atuava na defesa dos redutos e concentrava os mais valentes combatentes, em número bem maior do que 24 indivíduos. No Contestado, a dignidade “par” medieval foi interpretada como dupla de homens, logo, doze pares indicaria 24 combatentes. Originalmente, o termo “par” definia que esses homens eram semelhantes entre si nos feitos e na coragem.
A presença desta obra no movimento do Contestado foi anotada por praticamente todos seus analistas. Foi considerada até um aspecto aberrante ou curioso, por parte deles. Mais recentemente, foi valorizada enquanto elemento cultural de grande importância.
Marcia Janete Espig é historiadora e professora da Universidade Federal de Pelotas, autora de A presença da gesta carolíngia no Movimento do Contestado (Ed. da Ulbra, 2002).
Disponível em Revista de História
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