Capoeira - É coisa nossa
História do Brasil e do Mundo

Capoeira - É coisa nossa



Capoeira é declarada patrimônio cultural do país. Em seus múltiplos sentidos, ela caminha junto com o Brasil.
Lorenzo Aldé

Luta ou jogo? Dança ou esporte? Festa, religião, estilo de vida. Raça e miscigenação. Raízes e globalização. Pode escolher qualquer ponto de vista. Existe uma expressão cultural capaz de se encaixar nos mais diferentes discursos e simbolismos. E sua identidade é tão brasileira que se transforma de acordo com as andanças deste camaleônico país.

O mito de origem consagrado pelo senso comum é aquele que associa a prática ao ambiente rural. Nas senzalas, escravos manifestavam sua resistência ao cativeiro treinando lutas herdadas dos ancestrais africanos, mas as disfarçavam com a dança e a música para não despertar a suspeita dos senhores de engenho. Não há documentação que comprove essa tese. ?Não existe nenhum registro de capoeira em Palmares, por exemplo. Ela estava muito mais presente nas cidades portuárias do que nos quilombos?, explica Maurício Barros de Castro, doutor em História Social pela USP e assistente de coordenação da pesquisa.

Arte urbana e marginal. O mais antigo registro já encontrado vem do Rio de Janeiro e data de 1789. É um documento sobre a libertação de um escravo chamado Adão, que havia sido preso por praticar ?capoeiragem?. No século seguinte, ?o capoeira?, no masculino, já é um personagem conhecido nas cidades de porto. Nelas, o espaço da rua concentra intenso comércio, onde os chamados ?escravos de ganho? dedicam-se a trabalhos intermitentes. Nessa convivência, passam a se reunir em grupos, disputam territórios, promovem brigas e arruaças, freqüentam as ocorrências policiais. O capoeira é o pai do malandro.

Curioso é que em Salvador, durante quase todo o século XIX, em nenhum documento aparece o termo ?capoeira?. O fenômeno era parecido com o que ocorria no Rio e em Recife, mas na imprensa e nos processos policiais soteropolitanos surgiam apenas sinônimos para designar aqueles marginais (?valentões?, ?bambas?, ?navalhistas?) e seus delitos (?rabo de arraia?, ?cabeçada?, ?rasteira?, ?pontapé?). Será que a palavra só chegou lá mais tarde? Maurício Barros de Castro não se arrisca a essa conclusão, preferindo destacar outro ponto importante do inventário: o estímulo a novas pesquisas. ?Apesar das iniciativas de pesquisadores como Antônio Liberac e Fred Abreu, a Bahia do século XIX ainda está para ser mais estudada, ao contrário do Rio, que se conhece bem?, diz.

Em Recife, a pesquisa foi recebida com particular entusiasmo pelo mesmo motivo ? é onde existe menos documentação levantada sobre o assunto. Conhecida como terra do frevo, a capital foi reduto de muita capoeiragem até que a intensa repressão policial a obrigou a sair de cena, camuflando-se em outras manifestações populares. O próprio passo do frevo inspirou-se na brincadeira dos capoeiras no carnaval, puxando os cordões com suas navalhas em punhos, entre rodopios e piruetas.

No Rio, a dança do mestre-sala e da porta-bandeira deve sua origem à mesma influência. Malandragem, capoeira e samba sempre andaram juntos, compartilhando a ginga que abençoou outra arte maior do Brasil: o futebol. O esporte chegou ao país em 1894, por intermédio do inglês Charles Miller, apenas quatro anos depois de aprovado o Código Penal que tornou a capoeiragem um crime e deu início à pesada perseguição oficial. O football logo chegou às várzeas e ganhou a ginga que Deus nos deu. Ginga, corruptela de Nzinga, lendária rainha guerreira de Angola. Além de inventar o que um dia seria chamado de ?futebol-arte?, os jogadores teriam incorporado da capoeira alguns costumes evidentes, como benzer-se antes de entrar na roda (ou em campo) e a adoção de apelidos pelos jogadores (estratégia dos capoeiras para fugir de processos judiciais). Pura especulação, mais um tema para estudos.

Há várias outras grandes histórias à espera de investigação mais profunda. Como explicar, por exemplo, que em plena capital do Império o onipresente Debret, pintor oficial da Corte, nunca tenha registrado aquelas cenas tão populares? E que daquela época só se conheçam três registros iconográficos ? um de Augustus Earle e dois de Rugendas (em um deles, os participantes aparecem de punhos fechados)? Também sabe-se pouco sobre a sedução que a vistosa luta marginal despertava em intelectuais, letrados e militares ? o barão do Rio Branco, quando jovem, teria praticado o jogo. E sobre o sistemático desterro de capoeiras para a ilha de Fernando de Noronha assim que saiu o Código Penal daquele fim de século.

Já não parece exagero afirmar que a capoeira permeou toda a formação de nossa cultura popular urbana. Não falta ao currículo daquelas maltas nem mesmo a presença no mais marcante conflito de que o país participou ? os capoeiras se alistaram (e foram alistados) maciçamente na Guerra do Paraguai (1864-1870). Na esfera política, criaram a Guarda Negra (1888), em defesa da monarquia e da Abolição, e serviram, nas três cidades, como ?capangas? de políticos ? oscilando entre a defesa de republicanos e de conservadores. Em troca, as autoridades faziam vista grossa à sua briga-jogo de rua.

Mais próxima, a história da capoeira na segunda metade do século XX pode ser em boa parte contada por testemunhas vivas. E foi o que a pesquisa providenciou. Entrevistas com 17 experientes mestres explicam em detalhes os vários rumos que a história tomou depois da década de 1930, quando Getulio Vargas proclamou a capoeira o ?único esporte genuinamente nacional? e apertou a mão do Mestre Bimba (1900-1974), baiano responsável pela criação e disseminação do estilo Regional, que dialoga com as artes marciais orientais. Modernizada, ela ganha o Brasil e o mundo. Ao mesmo tempo, multiplica-se em estilos diversos (que até rendem controvérsias entre os praticantes), e não abandona a rua e o improviso, flertando com o candomblé e a culinária regional. Em cada depoimento, um pedaço de um mesmo universo aparentemente infinito, como que a dar razão à autofágica definição do grande Mestre Pastinha (1889-1981), defensor da vertente Angola, pretensamente mais pura: ?Capoeira é tudo o que a boca come?.

?O que eu queria ser era valentão. Ouvia dizer que tinha uma dança em que a pessoa bate no adversário sem precisar pegar. Então eu disse: quero aprender! Até quando vi a capoeira e disse: essa tá boa?, recorda João Pequeno de Pastinha, 90 anos, 75 de capoeira. Ele foi carvoeiro, condutor de bonde, ajudante de pedreiro, mestre-de-obras, condutor de boi ?e outras coisas que nem me lembro?, mas de roda em roda (?nas praias, quintais, terreiros, praças e festas?), a vida o levou mais longe. ?A capoeira me tornou doutor?, orgulha-se o mestre, ou melhor, Doutor Honoris Causa condecorado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Não é de hoje que a prática é bem aceita em vários ambientes sociais. ?A diretora da Sociedade Pestalozzi me perguntou se eu gostaria de dar aulas para as crianças deficientes, pois havia feito elas rirem. As crianças, com a capoeira, abriam os braços, cantavam e riam. E toda aquela arte-terapia das psicólogas não conseguia fazer o que a capoeira fazia. Desatrelá-las e fazer com que rissem e até olhassem. Porque elas não olham as pessoas diretamente. Eu falava para elas olharem para mim para poder gingar. Então a capoeira foi desorganizadamente ampliando seus horizontes?, conta o Mestre Vilmar, do Rio de Janeiro.

No fim dos anos 1950, ele foi aluno de Artur Emídio, um dos precursores da internacionalização da capoeira. ?O Artur e o Djalma Bandeira foram contratados por um cara chamado Carlos Machado, que era o rei das noites cariocas e montava shows para ir apresentando pelo mundo. Eles foram a teatros famosíssimos em Lisboa, Paris, Roma e Estados Unidos em 58 e 59. ?Skindô? é um show internacionalmente conhecido?. Em espetáculos para turista ver, surge uma fonte de renda para os mestres, que sempre passaram sufoco para viver do ofício.

A progressiva profissionalização do ?esporte? ? que nos anos 1970 chegaria a ser vinculado à Confederação de Pugilismo, ganhando também cordéis coloridos por nível, à semelhança do caratê ? não fez sumir a capoeira de pé no chão. Ou melhor, sapato. ?Eles tiravam o domingo, vestiam a sua melhor domingueira, seu terno, gravata, colete, sapatinho bico fino, e jogavam capoeira no barro. Capoeirista respeitava o outro, não precisava sujar a domingueira do cara, era a roupa da missa. Você não precisava sujar o cara com o pé, meter o pé na roupa dele para provar que você estava em condições de chutá-lo ou de jogá-lo no chão. Era uma coisa de vadiar, de brincar. Era a maneira que eles tinham de se expressar, era uma ritualização. Em vez de irem para igreja católica, eles iam jogar capoeira. Tomavam uma, cuspiam grosso, e partiam de novo?, descreve o mestre José Carlos, 36 anos de roda, aluno de Mestre Moraes, baiano que na década de 1970 fez ressurgir a capoeira Angola no Rio de Janeiro.

Nos morros, a malandragem ainda tinha um tom romântico, toda uma ética própria. ?Naquela época, o negócio das drogas era muito leve. Não estava ainda essa loucura, esse tráfico pesado. O dono da boca no morro tinha um Taurus 32. Imagina se isso é calibre de revólver. Geralmente era um malandro, já de 45, 50 anos, que se dava bem com a comunidade. Era valente, mas era malandro também. Nessa época, comecei a freqüentar o morro e percebi a separação do malandro pro valente, pro 171, pro golpista, pro batedor de carteira, pro cara que furta. O malandro era um filósofo. É claro que se tivesse necessidade de ganhar um dinheiro pra sobreviver podia dar até uns golpes. Mas geralmente nem precisava. Estava uma vez na Mangueira, num boteco com um malandrão, não me lembro o nome. O cara já mais coroa, com uns 50 anos. Aí chegou uma moça para fazer o censo (...) e perguntou ?O senhor vive de quê?? Ele falou ?Vive de quê? Como assim, minha senhora?? ?Todo mundo precisa de dinheiro para sobreviver?. ?Minha senhorita, eu vivo dos meus prestígios??, conta Nestor Capoeira, 62 anos, discípulo de um malandro por excelência, o Mestre Leopoldina.

Quem testemunhou a transformação da capoeira nas últimas décadas se espanta com a capacidade que o jogo tem de mimetizar o que surge à sua volta. Por vezes torna-se quase irreconhecível, como quando dispensa até mesmo berimbau. Nos anos 1980 ?estava uma loucura, tinha capoeira em todo lugar. Nas academias de status, as rodas não tinham som ao vivo, era eletrônico?, comenta Nestor. Não param de surgir coisas híbridas, como ?capoeira fu?, ?capiboxe?, ?capojitsu? e ?hidrocapoeira?. Algumas inovações são acolhidas sem problemas: ?Eu comecei a ver os caras dando salto por volta de 1990. (...) É lógico que há uma influência da ginástica olímpica na capoeira, assim como o lance dos golpes da Senzala muito retos, que ficou sendo uma característica deles, é influência do caratê. Mas eu acho legal dar um salto maluco daqueles, encaixando dentro do jogo?, completa.

Como ?registrar? e ?salvaguardar? um patrimônio que se expressa de formas tão múltiplas? A equipe do Iphan fez encontros com capoeiristas dos três estados para conhecer sua realidade e ouvir suas demandas. Optou por privilegiar dois elementos sem os quais não existe capoeira: a roda e os mestres.

?A roda é o lugar onde a capoeira se perpetua, onde tem continuidade. Reúne todo o aspecto simbólico, ritual, histórico, musical, social, e no entorno se relaciona com o candomblé, a culinária, a intelectualidade. A roda é também o espaço informal de aprendizagem. Quem organiza e quem transmite o saber é o mestre?, sintetiza Maurício Barros de Castro.

O inventário propõe até uma política ambiental capaz de preservar a árvore biriba (Eschweitera ovata), típica da Mata Atlântica baiana e, portanto, ameaçada de extinção. É com ela que se fabrica o berimbau tradicional. Espécies alternativas, como pau d?arco, açoita-cavalo, pitomba e itaúba preta, não estão em melhor situação.

Já o mestre, herdeiro e propagador maior dessa arte, nem sempre colhe os frutos do sucesso comercial da neocapoeira ou de sua globalização. Nos anos 1970, Mestre Bimba morreu esquecido em Goiás. Nos 1980, Mestre Pastinha morreu cego e pobre em um cortiço de Salvador. ?À beira da morte, perguntaram a ele se a capoeira estava mal. Ele disse que não: ela estava na universidade, chegara a vários países... Quem estava mal era ele, o mestre?, conta o pesquisador.
Os mestres de hoje não estão em situação muito melhor. ?Apesar de ter de 60 a 80 alunos, não estou vendo como vou conseguir continuar dando aula sem que seja pago para isso. Estou precisando de uma ajuda pública federal, estadual ou municipal. Tenho medo de que meus alunos tomem um rumo ruim na vida e eu pague por isso?, lamenta o Mestre Gajé, de Salvador.
Vale perguntar ainda o que define um mestre. Com a palavra, um deles: ?Tem pessoas que passaram pela capoeira vinte, trinta anos, e são extremamente violentas. Não aprenderam o objetivo da capoeira. Ele viveu a capoeira, a capoeira passou por ele e ele não entrou na capoeira, deu pra entender? Porque não é só saber dar golpe não, ele tem que passar o fundamento, tem que passar a filosofia, tem que passar o que é ser mestre de capoeira. Não adianta ele entrar numa academia, mostrar que é bom, e do lado de fora ficar fazendo besteira?, defende o Mestre Coca-Cola, de Olinda (PE).

Garantir a esses ensinadores as condições de vida mínimas para poderem desempenhar seu ofício esbarra num entrave legal. Ainda está em vigor a lei n° 9.696/98, que determina que qualquer modalidade esportiva precisa ter o aval dos Conselhos de Educação Física. A burocracia atingiu em cheio os mestres tradicionais, formados na escola da rua. Oficialmente, para lecionar eles precisam de diploma superior. A lei não chega a impedir seu trabalho nas academias (felizmente, não ?pegou? a este ponto), mas dificulta muito qualquer programa de inclusão da capoeira em projetos oficiais. Ensinar em cursos de colégios e universidades, por exemplo, só com diploma. Enquanto não é votado o projeto de lei que derruba essas amarras (n° 1371/07), não custaria ao Ministério da Educação (MEC) criar mecanismos que reconhecessem o notório saber dos grandes capoeiristas, o que lhes permitirá lecionar sem problemas. Esta é uma recomendação do documento, para ?implantação imediata?.

A informalidade característica do trabalho dos capoeiras desde sempre (estivadores, feirantes, biscateiros) traz outros problemas que o Plano de Salvaguarda quer ver superados. O Iphan defende o direito dos mestres a uma aposentaria especial e propõe um ?Programa de Incentivo da Capoeira no Mundo? ? pois conseguir passaportes e vistos nem sempre é tarefa fácil para esses embaixadores da cultura nacional.

?A capoeira é uma cultura tão virtuosa, de tamanha grandeza, que eu me sinto pequeno diante de tantos valores. Embora muitos me considerem como mestre de capoeira, eu costumo dizer que prefiro ser reconhecido como um dos zeladores dessa cultura?, define Mestre Russo, de Duque de Caxias (RJ).

Reconhecidos ou não, os zeladores hão de perpetuar a mais brasileira das manifestações, como sempre fizeram. Proclamá-los como patrimônio diz menos respeito a eles mesmos do que à capacidade do país de valorizar o que realmente importa. Quem estiver pronto para assumir essa identidade nacional que peça a bênção e entre na roda.

Revista de História da Biblioteca Nacional




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