Há quem diga que a Guerra de Canudos (1896-1897), articulada pelo beato Antonio Conselheiro, foi uma espécie de movimento comunista primitivo que predominava no pequeno povoado baiano. Há ainda aqueles que viam em Canudos um movimento puramente messiânico, ligado apenas à religião e ao transcendente, engendrado pelo "fanático" beato que pretendia levar os seguidores para o céu, por meio do sacrifício de suas próprias vidas.
Mas o professor Ítalo Tronca, do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, está empenhado na elaboração de um vídeodocumentário com uma abordagem crítica em relação às narrativas tradicionais e que com o tempo tornaram-se oficiais. Ele se propõ ainda a despertar a curiosidade e provocar um certo estranhamento, tanto em especialistas quanto em estudantes da história e da cultura brasileiras, do ensino fundamental ao superior.
"Não vou simplesmente recontar a história da Guerra de Canudos, mas lançar um novo olhar sobre a questão. Mesmo porque existe uma infinidade de documentários e filmes sobre o episódio, embora nem todos cumpram bem o seu papel", diz. No seu trabalho, o pesquisador vai mostrar que o discurso do pietismo ou da vitimização daquele povo "é de alguma maneira falso, assim como são falsos os argumentos daqueles que fazem apologia à civilização republicana".
Ítalo Tronca vê o conflito com uma dimensão um tanto poética, até romântica, nessa abordagem que foge de um documentário puramente objetivo, que pretenda revelar a verdade sobre Canudos. "Trata-se de uma questão polêmica e estão em jogo muitas verdades. Esse é o dilema. E é isso que eu gostaria que o vídeo de alguma forma demonstrasse: a pluralidade de sentidos nesses acontecimentos", explica.
O professor de História do Brasil iniciou o projeto ao perceber que havia um vazio na historiografia sobre Canudos. "Quando se percorre a bibliografia sociológica ou política mais especializada, ou se faz uma abordagem dos acontecimentos, nota-se uma uniformidade do discurso:os mais sensíveis derramam-se em lágrimas por causa dos pobres miseráveis que morreram massacrados pela República; outros enaltecem a guerra, porque não haveria lugar para um corpo estranho como uma comunidade de fanáticos que não respeitavam as leis vigentes".
O discurso oficial se apóia muito no fanatismo do beato Antonio Conselheiro e de seus seguidores, os sertanejos. Em seu trabalho, Ítalo Tronca pretende focalizar também o caráter libertário do movimento. "Pouco importa que existisse uma dimensão mística. O importante nisso tudo é que Antonio Conselheiro não estava ameaçando a ordem republicana. A ordem republicana é que, por várias razões e nem todas evidentes, se sentia ameaçada", explica o pesquisador da Unicamp. E mais, segundo ele, é que está em jogo questionar o espírito (éthos), a natureza do regime republicano, que no seu discurso oficial proclamava-se libertador, garantidor dos direitos das minorias , mas, diante dos inconformados com a nova ordem, partiu para a violência.
Escolas receberão vídeo| Estudos revisitam tema "Uma coincidência histórica reúne este ano os centenários da morte de Prudente de Moraes e da publicação de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Canudos se insere no projeto mais amplo sobre Prudente de Morais e sua época, final do século 19", explica o professor Ítalo Tronca. A tragédia que teve como palco o sertão baiano situa-se no coração do período de governo de Prudente de Morais. O drama e suas conseqüências - não só para o regime republicano recém-inaugurado, mas para a sociedade brasileira como um todo - não cessaram até hoje, quando analisados sob ponto de vista da história política, social e cultural. O professor do IFCH explica que depois de Os Sertões, que parecia ter esgotado as possibilidades de interpretação do episódio, sucederam-se inúmeros estudos, apoiados na descoberta de novas fontes documentais. Esses documentos permitem hoje, mais do que uma simples revisão, uma nova leitura daqueles acontecimentos. |