Brasil de todos os santos
História do Brasil e do Mundo

Brasil de todos os santos


Natália Pesciotta

Seja nos foguetes das festas juninas, no nome de nossas cidades ou em expressões costumeiras, os santos povoam a cultura nacional. Símbolos tão populares assim só poderiam ter originado muitas histórias.


Das Duas Pontes, da Barra, dos Patos, do Paraíso. Em criativas variações, são João está presente nas cinco regiões brasileiras. Mas são José é o mais numeroso ? só a Paraíba tem mais de 10. No Brasil inteiro há cerca de 500 municípios com nomes de santos. E mais de 40 times de futebol.

A maior metrópole do País e segunda do mundo leva o nome do santo do dia em que se rezou sua primeira missa. Quem escolheu foi o jesuíta José de Anchieta, hoje a um passo de ser também canonizado. O maior rio nordestino chamamos de Velho Chico, tal a intimidade assumida com são Francisco. Tudo porque na primeira vez que aquelas águas foram navegadas era dia dele. Outro Rio, o de Janeiro, decreta feriado pelo padroeiro Sebastião, no dia 20, mas não abre mão de cruzar os braços também no 23 de abril, de Jorge.

Cada dia tem seu santo, cada santo tem um dia. Os engraçadinhos dizem que o de são Nunca fica fora do calendário. Responde-se: ele é contemplado em 2 de novembro, dia de Todos os Santos. Data que originou, inclusive, a nomenclatura do maior porto brasileiro e um tradicional sobrenome do nosso povo: Santos.

Portugueses enraizaram o culto às santidades católicas em todos os âmbitos da vida no Brasil. Trouxeram vários costumes, e logo tratamos de inventar outros. Muitas vezes eles acabam desatrelados do catolicismo para fazer parte de uma tradição maior. Cultuamos até figuras não reconhecidas pelo poderoso Tribunal Eclesiástico. E, contrariando a máxima de que santo de casa não faz milagre, já emplacamos ao menos um genuinamente nacional: são frei Galvão. Além de Paulina, uma italiana com os pés fincados no Brasil.


Ligar a torneira e abrir a porta é com Pedro
Diz Jesus a Pedro: ?Eu te darei as chaves do Reino do Céus: tudo o que ligares na Terra será ligado nos céus, e tudo que desligardes na Terra será desligado no Céu?. Daí acreditar que o padroeiro do Brasil manda nas chuvas. Por isso também soltar foguetes na sua data, em junho, para agradar o porteiro celestial. É bom garantir amizade.


Feita branca, aparecida negra
Quem declarou são Pedro de Alcântara padroeiro do Brasil, com a bênção do papa, foi? Pedro de Alcântara, nosso primeiro imperador. Como está atrelado à história imperial, o santo acabou ficando em segundo plano em relação à Nossa Senhora Aparecida, também nossa padroeira. Além de ter sido encontrada no rio Paraíba por pescadores pobres, ela é negra. No entanto, sua cor não é original da imagem. Especialistas atestam que os traços tradicionais, do século 18, adquiriram o tom escurecido enquanto ficaram sob a água lodosa.


Imagem de madeira recebia salário para dirigir infantaria
Um governador baiano já havia proclamado soldado o santo Antônio da igreja local para que a santidade auxiliasse nos momentos de aperto. Com a invasão francesa em Portugal, dom João não pensou duas vezes. O então príncipe regente do Reino Unido de Portugal e Brasil apelou ao santo peão com uma promoção. Em 1810, assinou decreto, no Rio de Janeiro, elevando o ?Glorioso santo Antônio, que se venera na cidade da Bahia?, ao posto de ?Tenente Coronel de Infantaria?. Outras imagens da santidade junina também receberam títulos de soldado, capitão, coronel e tenente em todo canto do Brasil a fim de garantir alguma proteção. Sempre com os devidos documentos, distintivos e indumentária ? e sem esquecer dos soldos pagos às paróquias.


Justo: Rita empresta a casa, Benedito convida pra festa
Aparecida do Norte festeja são Benedito com congada todo ano. A romaria faz questão de passar na paróquia de santa Rita de Cássia e levá-la no andor para participar da festa. Não que a santa tenha alguma coisa a ver com a homenagem, mas como o são Benedito da cidade ficou muitos anos sem igreja própria, alojava-se na paróquia dela. Os fiéis acreditam ser de bom tom que ele retribua a hospedagem.


Santo negro entrou em festa pagã
Para se assemelhar às santidades, era comum os escravos do Brasil pintarem de preto imagens de Nossa Senhora do Rosário e de santo Antônio.

São raros os santos de pele originalmente escura. São Benedito, um dos exemplos mais importantes, sempre atraiu devoção dos afro-brasileiros. Enquanto as santidades de pele e olhos claros ganharam similares em entidades nagôs, o santo negro não tem correspondente nos candomblés. É evocado sempre como o católico são Benedito mesmo.

De modo que só poderia acontecer no Brasil, ele e Nossa Senhora do Rosário dividem homenagem com reis africanos na congada, festa tradicional do País ligada à Igreja.


Corinthians salvou o santo guerreiro
Segurando uma lança e sobre um cavalo branco, são Jorge é o guerreiro mais cultuado nestas terras. Sem entrar no mérito da lenda que o coloca na Lua, nem a passagem do santo pela Terra pode ser comprovada. Por isso, na década de 1960, quando a Igreja fez uma reforma litúrgica para reconsiderar seus santos, colocou o padroeiro da Inglaterra e do Corinthians na lista dos ?cassados?. Dom Paulo Evaristo Arns interferiu junto ao papa: ?Santo padre, nosso povo não está entendendo direito a questão. São Jorge é muito popular no Brasil, sobretudo entre a imensa torcida do Corinthians, o clube de futebol mais popular de São Paulo?. Para alegria dos corintianos, a começar por dom Paulo, o santo continuou ocupando o dia 23 de abril. ?Não podemos prejudicar nem a Inglaterra nem o Corinthians?, escreveu o líder máximo da Igreja.


Só mesmo aqui santo recebe em pulinho
À frente do setor de achados e perdidos celestial está Longuinho. Mas isso só segundo os brasileiros, e folclorista nenhum desvendou a origem da crendice. Provavelmente os três gritinhos ou pulinhos em recompensa pelo objeto encontrado referem-se à Santíssima Trindade. Segundo os católicos tradicionais, o responsável pelo setor é santo Antônio.


Na boca do povo
Santo do pau oco Algumas igrejas mineiras ainda guardam santos esculpidos em madeira vazia por dentro. Durante o ciclo do ouro, as imagens eram usadas para esconder minério em pó das autoridades fiscais, sonegando as altas taxas de extração cobradas pela Coroa.

Conto do vigário No século 18, dois vigários de Ouro Preto disputavam a mesma imagem de Nossa Senhora para suas paróquias. O vigário de Pilar propôs acabar com a pendenga lançando a sorte: amarrariam a santa num burro postado entre as duas paróquias e acatariam a direção que o animal tomasse como destino para a imagem. Assim foi feito. Naquele dia mesmo a imagem pousou na igreja do Pilar. Mas tudo não passava de uma esperteza do vigário local. Como o burrico era de sua paróquia, ele bem sabia que o bicho tomaria o caminho de casa.


Assunto urgente? Tratar com Expedito
Sempre em alta com agradecimentos em faixas e santinhos distribuídos pelos devotos atendidos, Expedito é o santo das causas urgentes. Em latim, Expeditus significa disponibilidade, rapidez.


Herói de batina levou santo de volta pra casa
Padre José Simões, outro pároco do Pilar, em Ouro Preto, não cansou de inventar contos do vigário. Para se disfarçar, deixou a barba crescer e pegou carrão emprestado. Fez um avião atrasar só para o esperar e fugiu de grandes figurões. Todas as peripécias, com ou sem a batina, eram para recuperar imagens de santos roubadas das igrejas por vendedores ou colecionadores. Morreu em 2009 com mais de 500 artigos sacros resgatados no currículo. Teve até peça que voltou do Louvre para Minas Gerais.


Pílula milagrosa é herança do santo da casa
A pílula de são frei Galvão é aconselhada principalmente para grávidas preocupadas com o sucesso no parto ou para casais inférteis. Porém, pode ser tomada na ânsia pela cura de qualquer tipo de mal físico ou psicológico. O frei paulista, que viveu entre 1739 e 1822, criou o ?medicamento? em vida, quando procurado para auxiliar uma moça em complicada situação de parto. Deixou às freiras enclausuradas no Mosteiro da Luz, em São Paulo, a incumbência de produzir a pílula em série, para ser distribuída gratuitamente. Consiste em nada mais do que um minúsculo papel dobrado, com uma frase escrita à mão, em latim: ?Depois do parto, permanecestes virgem, Mãe de Deus, intercedei por nós?. Cada envelope vem com três pílulas e a receita: é preciso rezar a novena de frei Galvão por nove dias e ingerir o ?comprimido? no primeiro, no quinto e no último.


Há quatro séculos na fila
Todos os quatro mil santos da Igreja católica percorreram um longo caminho até conquistar o posto. Postuladores são espécies de advogados que defendem os candidatos perante o Tribunal Eclesiástico. Para chegar à santidade, é preciso passar por três categorias anteriores: servo de Deus, venerável e beato. Dois brasileiros fizeram-se santos: frei Galvão e madre Paulina que, apesar de nascida na Itália, cresceu em Santa Catarina. À beira do último degrau, temos hoje o beato José de Anchieta, jesuíta que fundou São Paulo. Seu processo arrasta-se no Tribunal desde 1602.


Padim não era padre
Padre Cícero Romão fez de Juazeiro do Norte o maior polo religioso da América Latina, e, por conta disso, a segunda maior cidade do Ceará. Ai de quem disser que Padim não é santo perto dos milhões de romeiros que vão a Juazeiro todos os anos. Mas a verdade é que o vigário sertanejo morreu condenado pelo Santo Ofício, proibido de rezar missa. O Vaticano não acreditava em seus milagres, achava que promovia fanatismo e se beneficiava financeiramente da devoção popular. Só agora, 75 anos depois da morte, pensa em reabilitá-lo entre os seus ? quem sabe o primeiro passo para a canonização.


Rita desbanca Cícero e Redentor
A maior imagem sagrada do mundo é brasileira, mas não é nem a de Padim Ciço, no Ceará, nem a de Jesus Cristo, no Rio de Janeiro. A santa Rita de Cássia recém-construída em Santa Cruz e com 56 metros, no Rio Grande do Norte, bate as duas e não tem correspondente no planeta.


SAIBA MAIS
Superstição no Brasil, de Câmara Cascudo (Global, 2001).
Cada Dia Tem Seu Santo, de A. de França Andrade (Artpress, 2000).
Brasil de todos os Santos, de Ronaldo Vainfas e Juliana de Souza (Jorge Zahar, 2002).
http://www.almanaquebrasil.com.br




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