Artigo aborda a ciência médica e suas esquisitices na época do Antigo Regime
Renata MoehleckeExcremento de rato misturado com mel como recurso infalível para a calvície. Fezes caninas como o mais indicado para disenteria. Caso o problema fosse um ferimento, o excremento de pombo produzia cura imediata. Quanto aos excrementos humanos, esses eram ideais para males da garganta, perfeitamente curáveis com seu emprego, bastando apenas um pouco de cuidado com a dieta de quem iria fornecê-los. Esses são alguns exemplos de como era conduzida a medicina na época do Antigo Regime, citados pelo historiador Marcos Antônio Lopes, em artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde ? Manguinhos. Em seu trabalho, o pesquisador aborda, a partir de fontes literárias, as artes médicas em uma época em que as terapias se baseavam em conhecimentos empíricos, ditados por superstições, tradições e sabedoria popular.
Quadro Lição de anatomia (1632), de Rembrandt
?Na época dos reis absolutistas predominou um sistema de crenças pleno de misticismo e superstições. As práticas médicas, por exemplo, chamam atenção do observador de nosso tempo como procedimentos muito rudes?, afirma o pesquisador. ?O que se poderia caracterizar, hoje, como as excentricidades experimentais de curandeiros eram, verdadeiramente, expressões da lógica peculiar da mais douta ciência?. Marcos acrescenta que as calamidades e epidemias eram encaradas como fenômenos naturais e divinos, sendo as doenças algo sem qualquer relação com lixo ou com dejetos, frequentemente depositados a poucos metros da porta de casa.
No entanto, o historiador aponta que a natureza agressiva de boa parte das terapias dispensadas aos doentes chocava as pessoas mais avisadas do tempo, principalmente certos intelectuais. ?Para Montaigne a medicina era uma infinidade confusa de opiniões, um universo vasto e turvo de erros, enfim, uma monteira perigosa de crendices. Algumas técnicas terapêuticas eram realmente bastante eficazes, notava o filósofo ? para apressar a morte?, comenta Marcos. O historiador destaca outro escritor que seguia essa mesma linha de pensamento. ?No século 17, Cervantes zombava das poções destinadas a regenerar milagrosamente as feridas e demais contusões. Em Dom Quixote, o bálsamo feito pelo Cavaleiro da Triste Figura revelou-se um vomitório tão poderoso que quase arranca as tripas do combalido Sancho Pança?, explica o pesquisador.
Para o historiador, a arte de curar sempre foi tema livre para as mais diferentes maquinações. ?Como tentei demonstrar, fontes literárias, da Antiguidade ao século 20, são ricas em relatos que, vistos à luz dos avanços do último século, enchem enciclopédias de esquisitices?, aponta Marcos. ?Com feito, em tempos de transplantes de rosto e de outras façanhas louváveis da medicina contemporânea, as experiências com células-tronco acrescentam algumas curiosidades à história das artes médicas. Episódios recentes divulgados pela imprensa escrita e televisiva, como alguns tratamentos com ?células em pó?, permitem pensar na pertinência das reflexões de Montaigne, que nos ensinam a rir das superstições, dos charlatanismos e das velhacarias?.
Agência de Notícias da FIOCRUZ
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