As transformações políticas do Brasil tiveram, ao longo da História, uma marca que as distinguiu dos grandes ciclos mundiais e latino-americanos. Quando surgiram as democracias representativas e o constitucionalismo, o Brasil seguiu o caminho do encontro de forças e da união e evitou o esfacelamento construído nos campos de batalha. Na volta à democracia, mais uma vez, seguimos caminhos diferentes: optamos por uma transição com conciliação, evitando os traumas e as contas pendentes que ainda marcam outros países.
Tancredo Neves fixara a imagem do conciliador por excelência. Era o homem da negociação e do compromisso, elementos fundamentais da política no Estado democrático. Se preparara para ser Presidente na longa carreira que o levara da câmara de vereadores ao Palácio do Planalto, deputado estadual e federal, ministro, primeiro-ministro, governador, sempre com liderança e integridade. Montara a estratégia de transição e fizera em torno de si a Aliança Democrática e a esperança da democracia. Sua doença, na véspera da posse, trouxe um travo de desapontamento que se transformou em dor no encerramento de sua tragédia no dia 21 de abril. Uma dor que permanece em todos que viveram aqueles dias.
Coube a José Sarney assumir o comando da redemocratização. As circunstâncias, seu temperamento e sua formação o conduziram ao caminho de acelerar a abertura política. Trabalhou com os militares, não contra eles, como lhes disse, profissionalizando as Forças Armadas e levando-as de volta aos quartéis. Imediatamente liberou a política partidária, com o ato simbólico de receber no Planalto Giocondo Dias e João Amazonas, os dois partidos comunistas e restabeleceu as eleições diretas nos antigos municípios de segurança nacional. Logo em seguida convocou a Assembléia Constituinte.
Nos cinco anos de seu governo solidificaram-se as instituições. As eleições se sucederam em absoluta tranqüilidade. A imprensa nunca foi tão livre. A sociedade encontrou o caminho de uma democracia que não se esgota na eleição de seus representantes, mas se prolonga na consciência de cidadania. Pela primeira vez o brasileiro considerou-se cidadão, senhor de seus direitos, capaz de por eles se manifestar e exigir.
A opção de “Tudo pelo Social” refletiu o empenho em voltar o Estado para os mais humildes. O Programa do Leite simboliza, em seus números, o gigantesco esforço que se fez: 1 bilhão e 300 milhões de litros distribuídos a 7,6 milhões de famílias. O vale-refeição tinha 18 milhões de beneficiados por dia; o vale-transporte, 26 milhões. Criou-se o seguro-desemprego. 58 milhões de crianças passaram a ser atendidas diariamente pela merenda escolar. A farmácia básica do CEME chegou a 50 milhões de pessoas. A reforma agrária, instituída em 1965, finalmente começou a ser realidade. A área irrigada aumentou em 1 milhão de hectares. A cultura tornou-se um desafio do governo. A pesquisa científica, recebendo apoio incondicional — foram dadas 133 mil bolsas de estudo, mais do que em todos os anos anteriores do CNPq juntos —, alcançou resultados importantes no enriquecimento do urânio e domínio da água pesada, com fibras óticas e de carbono, com lasers de alta potência. Foi criado o IBAMA e iniciada a defesa sistemática do meio ambiente. O Calha Norte marcou nossa soberania sobre a Amazônia.
A conquista do Plano Cruzado foi ter transformado a economia do Brasil, aberto as portas sociais. Ter permitido a reforma do Estado, com a extinção da conta-movimento do Banco do Brasil, a unificação do orçamento da União, a criação do SIAFI, da Secretaria do Tesouro. Ao final do governo, Sarney tinha um resultado que, visto com os olhos de hoje, é surpreendente: crescimento e pleno emprego — o PIB per capita em dólares dobrou, chegando a US$ 2.923 (em 2004 estava em US$ 2.789), enquanto o desemprego era o menor de nossa História (2,36%). O país era a 7a potência industrial do mundo. Tivemos 67 bilhões de dólares de saldo comercial (contra um déficit de 8 bilhões de dólares no período de 1995/2002) O PIB passou de 189 para 415 bilhões de dólares, e a dívida externa caiu de 54% para 28% do PIB. A produção de petróleo passou de 2,7 para 8 bilhões de barris. A safra agrícola passou de 50 para 60 milhões de toneladas de grãos. No setor elétrico, a produção aumentou em 24,1%, o número de consumidores em 22,3%, foram investidos 29 bilhões de dólares. O déficit primário de 2,58% do PIB foi transformado em superávit de 0,8%.
Em 1990, Sarney entregou a seu sucessor — eleito em eleição direta e completamente livre — um país renovado. Transformado nos planos econômico, social e político. Cumpriu-se, assim, o compromisso de Tancredo: o Brasil tornou-se uma grande democracia.
Pedro Costa
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