História do Brasil e do Mundo
África pré-colonial: África Setentrional e Oriental
A África setentrional, também conhecida por Norte da África, localiza-se ao norte do deserto do Saara. Compõem a África setentrional os países de uma região cultural conhecida por Magreb, além do Egito e Sudão. O Magreb conglomera seis países: Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Mauritânia e Saara Ocidental. Esse último é, até o presente momento, um país de jure. Isso significa dizer que ainda não é um país de facto posto que reclama o reconhecimento de sua legitimidade (como país independente do Marrocos) junto à organismos internacionais. Atualmente, o Saara Ocidental encontra-se sob protetorado da ONU. Conforme pode ser observado no mapa ao lado, acrescentou-se com menor destaque à região da África setentrional os atuais países Eritréia e Etiópia. Essa referência está justificada não pela posição geográfica que ocupa esse dois países em relação à região setentrional da África (no recorte geográfico, tanto a Eritréia quanto a Etiópia fazem parte da África oriental) e sim por englobar um área cultural, linguística e histórica que os aproxima de muitos povos da região setentrional da África. Quanto ao território da África Oriental, em termos da divisão geográfica atual, encontramos os seguintes países: Egito, Sudão, Eritréia, Djibuti, Etiópia, Somália, Uganda, Quênia, Ruanda, Burundi e Tanzânia.
Na África Setentrional convergem várias organizações políticas e sociais, dentre as quais a egípcia mais conhecida e estudada é sempre considerada como componente de grandes civilizações da antiguidade ocidental, com pouca ou nenhuma relação com o continente africano. Por essa razão, propõe-se considerar o Egito em sua relação com outras organizações políticas-culturais das regiões setentrional, oriental e ocidental do continente africano, centrando o foco nas relações que mantinham com antigos reinos que se localizavam nas atuais Etiópia e Eritréia. Em termos políticos atuais, a Etiópia e Eritréia não constituem parte do Norte da África, mas em termos históricos fazem parte de uma mesma configuração econômica, cultural e política. Daí o destaque nas representações cartográficas que acompanham esse tópico.
Esse recorte é absolutamente necessário quando se busca descentrar o olhar homogêneo e racialista que vigorou nos compêndios sobre história da África desde a antiguidade. Esse olhar homogeneizador foi responsável pela produção de uma série de topônimos (nome próprios de lugares) e de etnônimos (nomes de povos, comunidades políticas, etnias, etc...) que variaram conforme interesses geopolíticos, mas mantinham a mesma intencionalidade: nomear e definir para submeter. Ademais, conhecer tais topônimos e etnônimos torna-se importante para situar o aluno espacial e temporalmente no estudo da África. Portanto, deve-se lembrar que os primeiros relatos escritos sobre a África foram feitos por viajantes, Gregos e Árabes, sobretudo.
Aliás, enquanto, na África, os árabes foram grandes historiadores, os gregos foram grandes toponomistas (aqueles que deixaram registrados os nomes de lugares). Por isso, é comum grandes confusões entre povos, localizações e temporalidades.
Por exemplo, a denominação ethiop foi dada pelos gregos aos núbios e ashunitas. O termo referia-se aos 'homens de cara queimada' e não aos etíopes, da atual Etiópia. A atual Etiópia da antiguidade e até fins do século XIX foi conhecida pelo nome de Abissínia. A Núbia, por sua vez, era uma região do atual Sudão, o qual atualmente se localiza na parte nordeste da África e guarda pouca relação com o Antigo Sudão Central (outrora denominado de Nigrícia por colonizadores europeus) - (ver mapa topônimos). A região da Núbia dividia-se em Núbia inferior e Superior e abrigou importantes reinos e cidades como Cush, Meróe e Napata. Os exemplos poderiam seguir indefinidamente.
O importante é que possamos, pelos menos, iniciar o desvelamento dessas inumeráveis denominações, além de nos localizarmos espacial e temporalmente nas Áfricas de todos os tempos.
1.1. Egito, Núbia (Kush, Méroe, Napata) e Abissínia (Ashum)
A formação populacional do Egito, da Núbia e Abissínia são tributárias de longos processos migratórios de povos agricultores que, no IV milênio a.C., os quais viviam na região do Saara. Nesse período, comumente conhecido por antiguidade ( 4.000 a.C a 3.500 a.C) o Saara não era um deserto e sim uma região propícia à agricultura, com rios pouco caudalosos e uma vegetação pouco exuberante, o que possibilitava pouco gasto de energia no trabalho, na busca de pastagem para animais domesticados e no de cultivo de vegetais.
O mesmo não ocorria com a região nilótica. Nesse mesmo período, essa região ainda não era atrativa para aquelas populações que até então habitavam o Saara, posto que o leito do rio Nilo transbordava em altos índices. Ademais, o rio Nilo estava cercado por uma vegetação ciliar assaz exuberante.
Por volta no ano 3.500 a.C, segundo argumenta Ki-Zerbo (1972, p 79-80), essas populações diante das bruscas mudanças climáticas e geológicas que se processavam na região do Saara passaram a buscar lugares com abundância de água e vales férteis, fugindo do processo de desertificação que ocorria na região. Por conseguinte, com parte do processo de desertificação que alcançava também o Nilo, houve um aumento da aridez do solo e desgaste natural da abundante vegetação, o que permitiu a formação de aluviões extremamente férteis.
Passados alguns séculos de sucessivas migrações do Saara rumo à região nilótica, um grande contingente populacional estabeleceu-se ao longo das margens do Nilo, do Delta à sexta catarata. A população que se tornaria posteriormente Egito estabeleceu-se do Delta à 1ª catarata do Rio Nilo (norte) e da Núbia da 2ª à 6ª catarata (sul). Essas populações, agrupadas em dois pólos (Norte e Sul do Nilo) passaram a ponderar sobre formas organizacionais que melhor aprovasse e aproveitasse o excedente material produzido pela densa sociedade nascente.
Das formas organizacionais, no aspecto sócio-político, o Egito escolheu se organizar em um modelo hierarquizado e teocrático (Faráo) com um corpo de apoio sacerdotal, assegurado por exércitos militares, escribas para ordenar e administrar os excedentes materiais, além de lavradores, literatos, construtores, arquitetos, médicos dentre outras tantas atividades que, com diferenças na forma, eram também desenvolvidas por tantas outras sociedades africanas à mesma época.
A população Núbia por sua vez, escolheu organizar-se em sociedades autocráticas, independentes e dinâmicas o que propiciou manter um alto grau de negociação e autonomia política, comercial e administrativa em relação à outros povos, inclusive com assírios e romanos.
Ki-Zerbo, em História da África Negra, comenta que perguntas simples têm o terrível efeito de desarmarem especialistas. E é o que ocorre quanto se busca retomar tanto as relações entre os egípcios e outros povos no contexto africano, quanto no contexto asiático e europeu. A simples pergunta “eram os egípcios negros?” gerou além de muitos estudos em várias áreas do conhecimento humano muitas contendas. Por isso é importante ter em conta que vários dos estudiosos que tentaram retomar a cultura egípcia no contexto africano foram “acusados” de afro-cêntrismo. O caso mais conhecido é o do antropólogo, físico e egiptólogo senegalês Cheik Anta Diop.
Por outro lado, conforme reconhece o historiador Elikia M´Bokolo, “a questão das relações entre o Egito faraônico e a 'África Negra' é muito mais complicada do que pode parecer a princípio ” (2003, p. 53). O autor afirma que tal questão perdura por duzentos anos e se tornou um dos problemas mais tratados na historiografia africana, com contínuas polêmicas. Com certeza, tais desacordos são oriundos da histórica ilação entre raça, civilização e desenvolvimento.
Quanto à pergunta “eram os egípcios negros?” importa mais refletir sobre a mesma que respondê-la diretamente. Assim, podemos iniciar pelo tempo verbal. “'Eram' ou 'são' negros, os egípcios?”. De quais egípcios estamos tratando? Em quais épocas? Essas proposições trazem para a arena de discussão a dinamicidade histórica e social próprias dos seres humanos que, além de abrir possibilidades para a discussão identitária das relações étnico-raciais, permitem desconstruir a postura eurocêntrica que vigora nos manuais didáticos. Ademais, conforme anteriormente discutido, o conceito de ser negro deve ser contextualizado no âmbito das relações históricas e identitárias de um povo, e não apenas no viés biologicista ou racialista que engloba o termo.
Entretanto, para se retomar a história do Egito nesse viés, faz-se importante, primeiramente, situá-lo em alguns marcos históricos, como por exemplo, retomar as dinastias por quais passou, além da forma comumente utilizada pelos historiadores para defini-lo tanto temporal quanto espacialmente. Assim sendo, o conteúdo que se segue tem o objetivo simples de rememorar esses marcos, posto se acreditar que tal propósito facilitará a compreensão do aluno sobre de quais egípcios estamos nos referindo.
1.2. Egito tempo e espaço
Conhecemos que a história Egípcia remonta à antiguidade, ou seja, no período de anos entre 4.000 a.C. a 3.500 a.C. Continuando nessa temporalidade, quatrocentos anos mais tarde, por volta do ano 3.100 a.C se inicia uma nova datação histórica do Egito Antigo, comumente dividida em três grandes periodizações.
- Antigo Império = da 1ª dinastia a 12ª dinastia (3.100 a.C. a 2.000 a.C)
- Médio Império = da 12ª dinastia à 18ª dinastia (2.000 a.C. a 1.580 a.C)
- Novo Império = da 19ª dinastia a 30ª dinastia (1.580 a.C a 1.100 a.C)
É importante reconhecer a não-fixidez dessas datas. Alguns egiptólogos divergem quanto à simplificação dessa periodização, acrescentando o período pré-dinástico (no qual estariam as duas primeiras dinastias, denominadas Tinitas), dois períodos intermediários, antes e depois do Médio Império, além de uma Época Baixa e vários períodos, dentre eles o ptolomaico e o romano.
Entretanto, como não é objetivo entrar nessa querela, manteremos nosso propósito inicial: conhecer a sociedade egípcia em relação aos demais povos africanos, asiáticos e europeus. Dessa forma, optamos por reportar aqui, com alguns acréscimos, a referência temporal de Ki-zerbo na qual, em que pese a simplicidade, não exclui a eficácia para um simples estudo cartográfico e histórico do Egito Antigo.
Segundo Elikia M´Bokolo, as atuais informações que se dispõe sobre a Núbia são suficientes para fugir da querela que envolve o Egito. Conforme pôde-se conferir nos quadros anteriores, a Núbia encontrava-se localizada nos territórios ao sul do Egito os quais eram irrigados pelo Nilo. A região de Kush corresponde, grosso modo, ao vale médio do Nilo. Dessa forma, deve-se evitar as informações historiográficas que tem por ponto comum considerar a Núbia como um desdobramento do Egito.
Informações arqueológicas demonstram que o estado kushítco (IV milênio a.C) era contemporâneo dos faraonatos pré-dinástico. Objetos de cerâmica, marfim, peles, e cobre revelam, além de uma aproximação entre kushitas e egípcios, uma intensa rota comercial entre os dois estados. O registro sobre o reino (e o nome) de Kush datam dos princípios do II milênio e são encontrados em textos egípcios. Nesses textos são recorrentes as anotações de temor que os egípcios tinham dos kushitas. Esse temor que os egípcios nutriam pelos núbios kushitas não era de todo sem precedentes, posto que, além de várias tentativas os núbios conseguiram, posteriormente, efetivar uma dinastia núbia no Egito. Essa ficou conhecida como a XXV dinastia Etíope no Egito. Entretanto, é necessário ressaltar que os núbios (kushitas, meroítas, etc) foram denominados, por historiadores gregos, de etíopes. Logo, não pode e não deve ser confundido o antigo etnônimo “etíope” com os atuais etíopes (da atual Etíope) posto que os gregos referiam-se aos “núbios” do período antigo.
A partir da invasão e ocupação do Egito pelos hicsos, vindos da Ásia, foi possível obter informações mais precisas sobre o reino de Kush, da qual Elefantina marcava sua fronteira ao norte.
Fonte: Projeto Abá - Estudos Africanos e Afro-Americanos - Para estudar a História da África - Universidade Estadual de Goiás
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