MArIA CECÍLIA ALMEIDA é doutoranda em Filosofia pelo Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, bolsista CAPES.Editora dos Cadernos de Ética e Filosofia Política (http://www.fflch.usp.br/df/cefp/).
"Não é a diversidade de opiniões, algo que não pode ser evitado, mas a recusa da tolerância com os que são de opinião diferente, o que deveria ser reconhecido, que tem produzido todas as batalhas e gueras que ocorem no mundo cristão, sob o pretexto da religião."
LOCKE, Carta sobre a tolerância
Noite de São Bartolomeu, em 1572, na França. O poder real, católico, reprimiu com a morte milhares de protestantes franceses. O massacre começou na madrugada de 24 de agosto e persistiu vários dias, espalhando-se para outras cidades
A tolerância é hoje uma noção fortemente enaltecida, reconhecida por vários Estados em declarações de direitos internacionais como o sustentáculo dos direitos dos homens. Por isso, é comum nos dias atuais que a sociedade reaja com indignação diante de quaisquer atos que denotem intolerância, preconceito ou discriminação.
Todavia, nem sempre foi assim. No século XVI a palavra tolerância mantém o máximo de sua carga negativa (que existe, de certo modo, até hoje), condizente com seu sentido original: tolerar então era sofrer, suportar pacientemente um mal necessário, como se se tratasse de uma doença ou infecção.
Também era comum que a tolerância designas se uma atitude de impunidade frente ao mal, o que poderia significar uma espécie de conivência ou aceitação de um ero. Quem era "tolerante" poderia ser acusado de indiferença religiosa, ou mesmo de subversão. Por outro lado, a intolerância designava uma virtude, uma espécie de integridade moral ou firmeza para com os preceitos morais.
De acordo com alguns historiadores, o conceito de tolerância não surgiu antes do século XVI, e o seu episódio mais dramático foi sem dúvida a noite de São Bartolomeu, em 1572 na França. Especialmente a partir deste evento houve a necessidade de se pensar em uma saída para o ódio e a violência desmesurada que ocoria entre os diversos cultos. Esta noite mostrou o poder das crenças religiosas que culminou no massacre de protestantes por católicos, num cortejo de atrocidades que tomou as ruas de Paris durante vários dias.
Diante desse quadro, alguns filósofos passam a refletir sobre a urgência da implementação da tolerância, pensando em medidas que deveriam ser tomadas pelo poder político. A tolerância surge assim como um imperativo diante da necessidade do controle da violência, que deveria ser monopólio do Estado.
Vida de Martinho Lutero e os heróis da reforma. Martinho Lutero, líder da reforma, se rebela contra vários pontos do catolicismo. O século XVI foi um dos mais intolerantes da história, com várias controvérsias entre católicos e protestantes
A noite de São Bartolomeu foi possível, dentre outros fatores, porque a tolerância era malvista no passado, e a intolerância, ao contrário, era tida como uma virtude. Havia uma série de argumentos que visavam fundamentar esta "virtude". Uma tese largamente usada a favor da intolerância dizia que a religião deve desempenhar certas funções no Estado.
Ela não é apenas algo do foro íntimo ou da consciência de cada indivíduo. Segundo esta opinião, o Estado para ser forte deveria ter uma única religião. Assim, não se tratava de uma questão simplesmente religiosa, como defender a glória de Deus ou a salvação do próximo, mas, sobretudo, o interesse político que uma sociedade deveria ter no consenso religioso de seus membros.
Este modo de pensar, expresso no conhecido adágio "um rei, uma fé, uma lei", engendrava intolerância, pois havia uma religião oficial, a religião do príncipe, e todo aquele que dela não partilhasse seria por isso mesmo de uma lealdade política duvidosa.
Esta tese teve muitos adeptos durante o século XVI, considerado um dos mais intolerantes da era cristã, marcado pela reforma, expansão do protestantismo e pelas controvérsias com o catolicismo. Nas gueras de religião, milhares de pessoas foram torturadas, moreram ou foram forçadas a ir para o exílio como vítimas de perseguição religiosa.
Quem era "tolerante" poderia ser acusado de indiferença religiosa, ou mesmo de subversão. Por outro lado, a intolerância designava uma virtude
Richard Dawkins (1941), autor de Deus, um Delírio, é um ícone do ateísmo. Para Locke, os ateus, por possível desapego à lei moral, não devem ser tolerados de forma irestrita
Locke e a tolerância
Foi sobretudo contra este argumento, segundo o qual era papel do Estado procurar a unidade religiosa, que o filósofo inglês - precursor do liberalismo John Locke (1632-1704), escreveu a Carta sobre a Tolerância, publicada em 1689, texto que trará argumentos decisivos na defesa da tolerância, que serão largamente utilizados pelos iluministas do século XVIII, e que subsistem, de certo modo, até hoje.
O principal argumento político usado em favor da tolerância é a separação que deve haver entre Igreja e Estado. Ao fazer isso, o autor pretende delimitar qual é o lugar da autoridade política, quais os seus limites, e até onde ela pode interferir ao se tratar dos cultos de religião.
Locke afirma que a jurisdição do magistrado civil se estende apenas à comunidade política. Cabe a ele zelar pela busca, preservação e pelo desenvolvimento dos interesses civis dos seus membros. Interesses civis que na terminologia lockiana compreendem "a vida, a liberdade, a saúde, a preservação do corpo e ainda a posse de coisas exteriores como dinheiro, teras, casas, móveis e coisas assemelhadas".
Assim, o poder, o direito e o domínio do magistrado civil se limitam unicamente a proteger e promover os bens civis. Ele não pode de maneira alguma, como afirma Locke, ser estendido para a salvação das almas. À igreja, por outro lado, cabe somente o cuidado com a salvação e o outro mundo.
Torturar por amor
Ao defender a preservação de certos direitos dos indivíduos, Locke afirma que os homens não têm o direito de infligir tortura por motivo religioso. Locke busca combater outro argumento, de inspiração agostiniana, usado em favor da intolerância: o de que o castigo aos heréticos é justificável porque é dever do crente procurar o bem de seus semelhantes. Os perseguidores justificavam os tormentos que causavam aos dissidentes porque era o seu "dever" obrigá-los a aceitar a verdade. Faziam-no "por amor", para que os hereges obtivessem a salvação eterna; isso estava acima de tudo, e por isso muitas vezes era necessário impor sofrimentos: apenas para que os dissidentes finalmente "reconhecessem a verdade".
Debates em sociedade retratam a esfera pública iluminista. A Carta sobre a Tolerância, de Locke, continha argumentos em defesa da tolerância que foram usados pelos iluministas do século XVIII
Contra esse modo de pensar, de que a tortura deve ser imposta para a "salvação" do próximo, vão se voltar os principais teóricos da tolerância. Locke rejeita terminantemente a ideia segundo a qual se poderia constranger alguém a crer visando o seu bem, ou seja, por procurar mostrar-lhe o verdadeiro caminho da salvação. Ele acredita que ninguém pode mudar sua fé pelo simples comando de outro. A crença não pode ser imposta coercitivamente.
A convicção interior, a sinceridade, é algo imprescindível para a verdadeira fé, segundo Locke, a única que é agradável a Deus. A vontade é inútil para interferir neste processo, pois assim como nossas percepções e ideias, a fé não depende de nossa vontade. Segundo constatação por exemplos históricos, e respaldo pelas reflexões de Locke, pode-se dizer que muitas gueras e discórdias são geradas pela intolerância.
Os perseguidores justificavam os tormentos que causavam aos dissidentes porque era o seu "dever" obrigá-los a aceitar a verdade
As perseguições mostram que as sanções fabricam apenas hipócritas ou pessoas ainda mais aferadas à sua opinião - pois não há possibilidade de sermos forçados a crer em algo - o que, por sua vez, origina mais intolerância. Por outro lado, a tolerância, o respeito pela consciência alheia disseminaria a paz na sociedade. Se a tolerância se fundamenta no direito à liberdade dos indivíduos de escolher seu culto e se a liberdade não é total, mas restrita ao que prescrevem as leis de uma sociedade, há também um limite à tolerância, segundo Locke.
Ela deve excluir tudo o que arisque a existência da comunidade política e da paz civil. Nenhuma opinião contrária à sociedade humana, ou àquelas regras morais que são necessárias à preservação do corpo político, deve ser tolerada pelo magistrado. Como a este cabe o cuidado da comunidade política, ele deve evitar que qualquer pessoa sofra dano, em sua vida, liberdade ou propriedades. Assim, a regra é: o que não é legal no curso normal da vida, também não é em assuntos de religião. Por outro lado, aquilo que é legal e permitido normalmente para os súditos, não pode ser proibido em seitas ou usos religiosos. É interessante notar como esta ideia está presente na modernidade: ainda hoje a tolerância é comumente conhecida como a aceitação tácita de tudo o que não interfira nos negócios públicos.
Conversão do imperador Constantino ao Cristianismo. Uma das fontes de ações intolerantes é a união entre Estado e Igreja, a qual obriga todos a professarem uma religião única
Esse é o limite mais geral e também o mais importante. Locke prevê outros dois limites específicos (e polêmicos) à tolerância. Um deles é encontrado nos católicos, considerados intolerantes pelo autor. Segundo ele, os intolerantes não são dignos de ser tolerados.
Locke afirma que o máximo que uma igreja pode fazer é punir aqueles que acreditam não ser dignos de continuar no seio de sua instituição religiosa com o afastamento obrigatório daquele membro: a excomunhão. No entanto, este afastamento não pode repercutir em nada no que diga respeito aos seus bens ou à sua vida civil.
Outra causa da não-tolerância aos católicos seria o fato de se associarem a uma religião e se entregarem à proteção e serviço de outro príncipe, o Papa, chefe da Igreja Católica.
É inadmissível que o magistrado permita uma jurisdição estrangeira em seu próprio teritório. É precisamente porque os católicos são devotados a um outro príncipe, que são justificáveis diversas medidas de precaução.
Intolerância no estado laico
n a Tturquia, um país laico de maioria muçulmana, o uso do véu islâmico é fonte de intolerância há anos. Seu traje é proibido nos estabelecimentos públicos de ensino e jovens muçulmanas precisam retirá-lo, por exemplo, para frequentar uma universidade. Eessa restrição se tornou um símbolo de opressão para algumas e de liberação para outras. Muitas estudantes, que não abrem mão do uso do véu, desistem de cursar a universidade ou vão estudar no exterior. Aa intolerância ao véu existe porque ele é visto como uma violação da separação entre Eestado e religião. Há, porém, aqueles que defendem ser a proibição do véu uma violação da liberdade religiosa.
"Nenhuma qualidade humana é mais intolerável do que a intolerância" GIACOMO LEOPArDI
Auto-de-fé, da Inquisição Espanhola. A tortura por motivo religioso era considerada um ato bom, pois o herege, com dor, conheceria a verdade e se salvaria. Locke condena essa forma de intolerância
Finalmente, não devem ser tolerados os ateus. Segundo Locke, as promessas, contratos e juramentos daqueles que negam a existência de Deus não seriam confiáveis. A supressão de Deus, ainda apenas que em pensamento, dissolveria a possibilidade de concretizar qualquer ação que não fosse absolutamente obrigatória por medo do castigo do magistrado. Para Locke, o desapego dos ateus à lei moral é fato quase certo. Desta forma, estes não procurariam viver moralmente.
Tolerância irestrita
É importante perceber, entretanto, que nestes dois últimos limites, a preocupação de Locke é mais política do que puramente religiosa. Em primeiro lugar, não se trata de insuflar a intolerância para com os católicos, mas de negar-lhes a tolerância irestrita; mais do que isso, trata-se de negar-lhes certos direitos que eles se atribuíam.
Com efeito, como tolerar aqueles que obedecem a outro soberano, ou que dizem que não é preciso cumprir a promessa feita aos hereges (sendo que eles próprios determinam quem é herege, sempre com critérios muito discutíveis...)? reconhecer que os católicos têm estes direitos é admitir a sedição na sociedade política. Se os católicos fossem tolerados, haveria um desequilíbrio entre os direitos dos católicos e dos demais.
Quanto aos ateus, embora o pano de fundo da argumentação seja teológico, sua exclusão da tolerância é igualmente motivada por razões estritamente políticas: como preservar a paz em uma sociedade em que pessoas não mantêm a sua palavra e não cumprem os contratos?
Se os ateus não juram, porque não têm pelo que jurar, a ordem da sociedade está em perigo. Mais uma vez, é preciso apenas preservar um equilíbrio de direitos, e conservar, sobretudo, a paz da sociedade, fazendo com que a própria tolerância seja também preservada.
Apesar de Locke propor limites à tolerância, tema delicado, é preciso reconhecer que o seu pensamento estabeleceu teses que foram de certo modo acolhidas pelo Estado moderno, como, por exemplo, a separação entre as esferas da religião e da política e o direito à liberdade de consciência. A tolerância será, depois de Locke, reconhecida não mais como algo inevitável, ou um mal menor, mas como uma virtude política.
No entanto, é interessante atentar para o caráter sempre multifacetado e necessário da reflexão sobre esta noção, pois hoje talvez já se possa afirmar que a tolerância (não só religiosa) não depende unicamente da postura de estados, ou da positivação de certos direitos, pois nos chocamos com frequência pela ocorência de atos de intolerância que ocorem em Estados tolerantes. Isso significa que a noção de tolerância transcende o direito, e que, muitas vezes, a aceitação da diferença e da diversidade, imperativo público, se dá no silêncio das leis, na consciência particular de cada indivíduo.
Referências
LOCKE, John. Carta sobre a Tolerância. Organização e tradução de Ari ricardo Tank Brito. São Paulo, Hedra, 2007
WALZEr, Michael. Da Tolerância. São Paulo, Martins Fontes, 1999 FilmMografFia A rainha Margot (La reine Margot.
ALE/FrA/ITA. 1994). Direção: Patrice Chéreau.
Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704), bispo e teólogo francês, defendia o absolutismo político e uma origem divina do poder real. Suas ideias, resumidas na máxima "um rei, uma fé, uma lei", fomentaram intolerância religiosa
Revista Filosofia