Uma cadeira de arruar do século XIX. Museu de Arte da Bahia.
As ocupações dos presos por suspeita de participação na revolta de 1835 refletem a variedade de atividades desempenhadas pelos escravos urbanos. Havia entre eles lavradores, remadores, domésticos, pedreiros, sapateiros, alfaiates, ferreiros, armeiros, barbeiros, vendedores ambulantes, carregadores de cadeira, entre outras atividades. A grande maioria dos rebeldes se empregava em ocupações tipicamente urbanas. Foram pouquíssimos os ocupados na lavoura, por exemplo. Um ou outro tinha vindo do Recôncavo para participar do levante em Salvador.
Na escravidão urbana os cativos gozavam de maior independência do que na escravidão rural, e isso facilitou muito a organização do movimento de 1835. Em geral, os escravos percorriam por toda a cidade trabalhando para seus próprios senhores ou, principalmente, contratados por terceiros para serviços eventuais. Muitos escravos sequer moravam na casa senhorial. Chamados negros ou negras de ganho, e também de ganhadores ou ganhadeiras, esses homens e mulheres escravizados contratavam com seus senhores entregar certa quantia diária ou semanal de dinheiro, e tudo que ultrapassasse esta quantia podiam embolsar. O escravo que trabalhasse muito e poupasse muito podia após cerca de nove longos anos comprar sua liberdade, e muitos assim o fizeram. Alguns chegavam se tornar prósperos homens de negócio, que era a ocupação mais comum dos que prosperavam.
Muitos africanos, depois de libertos da escravidão, tornavam-se eles próprios senhores de escravos. Calcula-se em cerca de 7 por cento a proporção dos africanos libertos na população de Salvador na época da revolta dos malês. Eles representariam em torno de 25 por cento da população africana na cidade.
Africanos escravos e libertos com freqüência trabalhavam e viviam juntos, desempenhando as mesmas tarefas, morando nas mesmas casas. No trabalho de rua organizavam-se em associações chamadas cantos de trabalho, nos quais se reuniam principalmente os da mesma etnia chefiados por um ?capitão? encarregado de acertar os serviços desempenhados pelo grupo. Assim associados enfrentavam o trabalho diário e desenvolviam laços de amizade e solidariedade que constantemente se desdobravam em ações políticas. Esses grupos de trabalho foram essenciais na mobilização dos africanos para a revolta em 1835 e em outras ocasiões. Enquanto esperavam por serviço nas esquinas onde se reuniam, os africanos iam formulando e aperfeiçoando suas idéias de liberdade e de ataque à escravidão na Bahia.
Infelizmente não sabemos detalhes do que planejavam fazer os rebeldes depois de vitoriosos. Há indícios de que não tinham planos amigáveis para as pessoas nascidas no Brasil, fossem estas brancas, negras ou mestiças. Umas seriam mortas, outras escravizadas pelos vitoriosos malês. Isso refletia as tensões existentes no seio da população escrava entre aqueles nascidos na África e aqueles nascidos no Brasil. Que fique bem claro: os negros nascidos no Brasil, e por isso chamados crioulos, não participaram da revolta, que foi feita exclusivamente por africanos.
Por isso, se o levante tivesse sido um sucesso, a Bahia malê seria uma nação controlada pelos africanos, tendo à frente os muçulmanos. Talvez a Bahia se transformasse num país islâmico ortodoxo, talvez num país onde as outras religiões predominantes entre os africanos e crioulos (o candomblé e o catolicismo) fossem toleradas. De toda maneira a revolta não foi um levante sem direção, um simples ato de desespero, mas sim um movimento político, no sentido de que tomar o governo constituía um dos principais objetivos dos rebeldes.
Apesar de apoiados por africanos não-muçulmanos, que também entraram na luta, os malês foram os responsáveis por planejar e mobilizar os rebeldes. Suas reuniões ? feitas nas casas de libertos, nas senzalas urbanas, nos cantos de trabalho ? misturavam conspiração, rezas e aulas em que se exercitavam a recitação, a memorização e a escrita de passagens do Corão, o livro sagrado do islamismo. O próprio levante foi marcado para acontecer no final do mês sagrado do Ramadã, o mês do jejum dos muçulmanos. Os malês foram para as ruas guerrear usando um abadá branco, espécie de camisolão tipicamente muçulmano, além de também carregar em volta do pescoço e nos bolsos amuletos protetores, que eram cópias em papel de rezas e passagens do Corão dobradas e enfiadas em bolsinhas de couro ou pano. Esses amuletos eram confeccionados por mestres muçulmanos, muitos deles líderes da revolta, que teriam dado a seus seguidores suas bênçãos e a certeza da vitória.
Cientes de que constituíam minoria na comunidade africana da Bahia, composta de escravos e libertos de diferentes grupos étnicos e religiosos, os malês não hesitaram em convidar escravos não-muçulmanos para o levante. Neste sentido, a identidade e a solidariedade étnicas constituíram um outro fator de mobilização a entrar em jogo.
De fato identidade étnica e religiosa foi muito importante para deslanchar o movimento. A maioria dos muçulmanos que viviam na Bahia em 1835 era nagô. Apesar de na África, e mesmo no Brasil, outros grupos, como os haussás, serem mais islamizados do que os nagôs, coube a estes o predomínio no movimento de 1835. Os nagôs islamizados não só constituíram a maioria dos combatentes, como a maioria dos líderes. Mais de 80 por cento dos réus escravos em 1835 eram nagôs, sendo eles apenas 30 por cento dos africanos de Salvador; dos sete líderes identificados, pelo menos cinco eram nagôs. Eram nagôs os seguintes líderes: os escravos Ahuna, Pacifico Licutan, Sule ou Nicobé, Dassalu ou Damalu e Gustard. Também nagô era o liberto Manoel Calafate. Os outros eram o escravo tapa Luís Sanim e o liberto haussá Elesbão do Carmo ou Dandará, que negociava com fumo.
Vistos enquanto grupo étnico os nagôs eram na sua maioria não-muçulmanos, e sim devotos dos orixás, embora fizessem incursões no campo muçulmano. Por exemplo usavam os famosos amuletos malês, considerados de grande poder protetor, e provavelmente recorriam a adivinhos malês, entre outras práticas. Ou seja, naquela fronteira em que as duas religiões se encontrava, os nagôs como um todo, malês e filhos de orixá, também se encontravam.
E se encontravam como entidade étnica, como pessoas que falavam a mesma língua, tinham histórias comuns, em muitos casos haviam obedecido aos mesmos reis africanos.
Essas convergências facilitaram a mobilização em 1835 para além das colunas muçulmanas.
Africano Nagô, que pode ser identificado pelas marcas étnicas no rosto.
Os nagôs vinham de uma parte específica da África, qual seja a região sudeste da atual Nigéria e a parte leste da atual República do Benin. Eram de diversos reinos espalhados por esse território, como Oió, Queto, Egba, Yagba, Ijexá, Ijebu, Ifé entre outros. Esses reinos durante muito tempo viveram sob a égide do reino de Oió, embora numa espécie de federação imperial. Na época do levante de 1835 essa federação dominada por Oió estava em franca desintegração em função de lutas intestinas generalizadas. Os malês especificamente tiveram sua origem principalmente em Ilorin, que era uma dependência do reino de Oió que se rebelou sob a liderança de Afonjá. Este homem se aliou aos muçulmanos haussás, fulanis e iorubás contra o alafin, que era o título do rei de Oió. Essas guerras foram responsáveis pela transformação de milhares dos habitantes locais em prisioneiros, que eram vendidos como escravos aos traficantes do litoral, e daí exportados para a Bahia.
Embora a grande maioria dos interrogados em 1835 respondesse que era apenas ?nagô?, alguns fizeram questão de ser mais precisos, indicando também o local específico de onde vinham. O carregador de cadeira Joaquim de Mattos, por exemplo, respondeu ser de ?nação Nagô Gexá?, quer dizer de origem Ijexá, um grupo étnico do leste do território iorubá. Joaquim havia se alforriado há pelo menos sete anos e portanto deveria estar na Bahia há cerca de nove anos no mínimo. A liberta Edum disse ser de ?nação nagô-bá? e um outro africano interrogado disse ser ela apenas ?Bá?, significando ser oriunda de Egba ou Yagba. O liberto Lobão Machado foi bem claro: era de nação ?Nagô-Ebá?, ou seja de Egba.
Francisco, cerca de 25 anos de idade, escravo doméstico e comprador, que vivia em Salvador há cerca de 6 anos, era Yaba, ou, segundo suas próprias palavras, ?Nagô-Abá?. E o escravo José se disse ?nagô jabu?, provavelmente natural de Ijebu. A expressão nagô remetia à África descoberta no Brasil, pois só aqui eles se tornariam conhecidos por aquela expressão, enquanto Ijebu, Egba, Yagba, Oyo, Ijexá (ou Ilesha) representavam a África deixada do lado de lá do Atlântico. O escravo nagô Antônio, doméstico e carregador de cadeira, resumiu bem a questão quando afirmou: ?ainda que todos são Nagôs, cada um tem sua terra?.
Ao deporem sobre o grau de envolvimento com o islamismo, muitos interrogados se reportaram a suas experiências africanas. Alguns disseram abertamente que haviam recebido instrução islâmica na África, possivelmente em escolas corânicas ou madrasas. O nagô Pedro, ao ser perguntado sobre um livro e vários manuscritos em árabe encontrados em seu poder, respondeu: ?o livro continha rezas de sua terra e os papéis várias doutrinas cuja linguagem e sua ciência ele sabia antes de vir de sua terra?. Pompeo da Silva, nagô forro, com cerca de 30 anos de idade, ?perguntado se ele sabia ou entendia das letras arábicas que usavam os Nagôs, disse, que tendo aprendido em sua terra pequenino que agora quase nada se lembrava?. Antônio, escravo Haussá, pescador, disse que sabia escrever em árabe, mas só escrevia ?orações segundo o cisma de sua terra?. Ou seja, não escrevia coisas subversivas, políticas, só orações. Acrescentou que ?quando pequeno em sua terra andava na escola?.
Amuleto malê
O escravo nagô Gaspar, preso com grande quantidade de escritos árabes, amuletos, um tessubá (o rosário malê) etc, disse ter sido ele autor dos escritos, e que aprendera o árabe em sua terra. Ele leu trechos do que havia escrito, embora alegasse não saber traduzir para o português.
Observamos em todas essas declarações as lembranças de uma educação muçulmana na África, às vezes lembranças de quando estes escravos eram ainda crianças. Isso acontecia mesmo no caso dos nagôs, que vinham de um lugar onde o islamismo era adotado por uma minoria, ao contrário do país haussá, onde a religião estava arraigada há tempos.
Outras tradições islâmicas também atravessaram o Atlântico, como o já mencionado uso do amuleto. O liberto Lobão Machado acima mencionado, quando preso, levava diversos amuletos protetores em volta do pescoço. Perguntado para que usava aquilo, disse ser para proteger contra o vento. Provavelmente referia-se ao jinn ou anjonu, espécie de espíritos malês. Outros interrogados responderam como ele que os amuletos eram para proteger do vento. Pela quantidade de amuletos apreendidos pela polícia em 1835, muita gente se protegia desta forma contra espíritos malignos. O escravo haussá Antônio acima mencionado usava a educação muçulmana recebida em sua terra para escrever amuletos, que vendia por bom preço ? equivalente ao jornal de um escravo de aluguel ? a africanos que também desejavam se proteger dessas forças espirituais que haviam acompanhado os africanos ao Novo Mundo.
Tais informações têm o valor de explicitar, através da fala dos interrogados, tradições aprendidas na África e mantidas na Bahia. Estes depoimentos mostram com muita nitidez uma projeção da história africana na história brasileira.
É preciso esclarecer que nem todos os africanos muçulmanos existentes na Bahia em 1835 participaram da revolta. As autoridades, porém, usaram a posse de papéis malês como prova de rebeldia e por isso muitos inocentes foram presos e condenados.
Os malês receberam diversos tipos de sentença. Foram elas: prisão simples, prisão com trabalho, açoite, morte e deportação para a África. Esta última pena foi atribuída a muitos libertos presos como suspeitos mas contra os quais nenhuma prova definitiva foi encontrada. Mesmo assim, apesar de absolvidos, foram expulsos do país. A pena de açoites variava de 300 até 1.200 chicotadas, que foram distribuídas ao longo de vários dias. O idoso Pacifico Licutan foi sentenciado a 1.200 chibatadas. Sabe-se de pelo menos um condenado que morreu em decorrência desta pena de tortura, o escravo nagô Narciso.
A pena de morte, foi imposta, inicialmente a 16 acusados, mas posteriormente 12 deles conseguiram sua comutação. Quatro foram no final executados. Eram eles o liberto Jorge da Cruz Barbosa, cujo nome iorubá era Ajahi, carregador de cal; Pedro, nagô, carregador de cadeira, escravo de um negociante inglês; Gonçalo e Joaquim, ambos escravos nagôs. Todos quatro foram executados por um pelotão de fuzilamento no Campo da Pólvora, no dia 14 de maio de 1835. E assim se findava um dos episódios mais empolgantes da resistência escrava no Brasil.
BIBLIOGRAFIA
Sobre a África dos malês, ler Robin Law, The Oyo Empire, c. 1600-c. 1836: A West African Imperialism in the Era of the Atlantic Slave Trade, Oxford: Claredon, 1977; Paul Lovejoy, A escravidão na África, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, capítulo 9;
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Sobre trabalho escravo urbano, alforria e africanos libertos na Bahia, leia Maria Inês C. de Oliveira, O liberto: seu mundo e os outros, Salvador, Corrupio, 1988; João José Reis, ?A greve negra de 1857 na Bahia?, Revista USP, nº 18 (1993), pp. 6-29; Stuart B. Schwartz, ?A Manumissão dos escravos no Brasil Colonial ? Bahia 1684-1745, Anais de Historia, nº 6 (1974), pp. 71-114; Kátia M. de Queirós Mattoso, ?A propósito de cartas de alforria?, Anais de História, nº 4 (1972), pp. 23-52.
Sobre a Revolta dos Malês especificamente, ler Joâo José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835, São Paulo, Companhia das Letras, 2003;
Décio Freitas, Insurreições escravas, Porto Alegre, Movimento, 1976; e o livro de Pierre Verger, Fluxo e refluxo, capítulo IX. Os depoimentos dos malês presos em 1835 se encontram nos inquéritos policiais e processos judiciais depositados no Arquivo Público do Estado da Bahia. Esses documentos já foram publicados em diversos números dos Anais do Arquivo do Estado da Bahia. Também estão sob a guarda do Arquivo o que sobrou dos documentos escritos em árabe.