Um estádio não é um campo de batalha, escreve Jacques Le Goff
História do Brasil e do Mundo

Um estádio não é um campo de batalha, escreve Jacques Le Goff


28/11/2009
Jacques Le Goff

A polêmica que não para de crescer desde a partida entre a França e a Irlanda em 18 de novembro me parece ser a oportunidade para abrir um debate sobre o lugar do futebol, e, mais amplamente, do esporte dentro da sociedade francesa, assim como em nosso mundo contemporâneo.

O atacante Thierry Henry domina a bola com a mão no lance do empate da seleção da França com a seleção da Irlanda por 1 a 1 no Stade de France, em Saint-Denis, na França, em partida válida pela repescagem das Eliminatórias da Copa do Mundo de 2010. Com o resultado, construído a partir do gol irregular, a seleção da França se classificou para a Copa de 2010

Comecemos pela partida em si. Está sendo vista como um ultraje, pois seu resultado, cuja importância é considerável de um ponto de vista esportivo - a qualificação para a fase final da Copa do Mundo de futebol a partir de 11 de junho de 2010 na África do Sul - , se deve ao erro de uma pessoa, o árbitro. Mas este só é entendido dentro de uma reconsideração da direção da equipe da França e da organização internacional do futebol mundial.

Mas também mais amplamente pela revisão minuciosa das relações entre o esporte a sociedade. O esporte existe desde a Antiguidade. Ainda que alguns digam que ele morreu, assim como outras instituições antigas, durante a Idade Média. Ele foi substituído ou por atividades guerreiras reais, ou por práticas lúdicas sob forma de torneios ou de jogos rurais, que eram condenados pela Igreja, pois o desaparecimento do esporte na Idade Média se deve à hostilidade do clero em relação a certas práticas do corpo.

Como mostrei, a Igreja fazia jogo duplo em relação ao corpo. Por um lado, ela o condenava como algo de diabólico - ele era, segundo o papa Gregório Magno, "a abominável vestimenta da alma" - ; por outro, ela o exaltava e glorificava, em especial através da ressurreição do corpo. Dentro dessa tensão que é bem ilustrada pelo quadro de Pieter Bruegel, "O Combate entre o Carnaval e a Quaresma" (1559), o esporte está do lado errado, e não há nem circo, nem estádio na Idade Média.

O esporte renasceu a partir do fim do século 18, e se reconstituiu a partir do século 19 sob formas que lembravam o esporte antigo, sendo que a mais espetacular foi a renovação dos Jogos Olímpicos em 1896. Mas ele também reapareceu sob formas que a Antiguidade havia ignorado. Ainda que alguns esportes tenham conservado o caráter individual que o carregava na Antiguidade, foram criados jogos coletivos cujo nascimento é contemporâneo da difusão da democracia no Ocidente.

Em seu período moderno e contemporâneo, o esporte se tornou um fenômeno planetário. Se na Antiguidade o esporte tinha um aspecto público e de espetáculo, este se tornou predominante e essencial.

Então um incidente como este que ocorreu durante a partida França-Irlanda se tornou um fenômeno quase global que questiona indivíduos, mas também as instituições e os valores que sustentam nossas sociedades. Lembremos que o futebol se tornou o esporte mais popular na Europa, em parte da África, na América do Sul, com o Brasil e a Argentina à frente. Ele já conquistou o México e se expande nos Estados Unidos. Muito praticado na Turquia, em Israel e nos Emirados Árabes, ele se insinua principalmente na Coreia e no Japão.

Em um domínio que adquiriu tamanha importância no plano esportivo, mas também social e político, este incidente vai muito além de uma simples notícia. Parece-me que deve ser a ocasião para importantes reformas. As primeiras são de ordem esportiva. A mão de Thierry Henry me parece ter uma importância secundária, se deixarmos de lado as consequências que ela causou.

O primeiro problema a ser resolvido é o da qualidade da arbitragem. O árbitro se tornou central na arte do futebol. Muitas vezes ele é questionado. E, segundo minha experiência de espectador, na maioria das vezes ele o é com razão.

Não podemos criticar o árbitro da partida França-Irlanda por não ter visto a mão de Thierry Henry. Mas ele deveria ter perguntado a seu juiz de linha e ao capitão dos Azuis. Ele não fez nem uma coisa, nem outra.

Então é preciso exigir mais rigor na formação dos árbitros e fortalecer suas capacidades de julgamento, seja recorrendo a um árbitro situado atrás do gol, seja através do vídeo, ou ainda por outros meios que os especialistas encontrarem. Mas não se pode ficar como está.

Faço uma observação indiretamente ligada ao problema levantado aqui, mas devo assinalar que, ainda que seja delicado julgar a natureza de uma mão voluntária, involuntária ou, o que me parece ser o caso da mão de Thierry Henry, um simples reflexo (pessoalmente, eu não puniria estes dois últimos casos), a apreciação deve ser deixada ao árbitro.

As reações na França e no mundo inteiro são compreensíveis porque o resultado ia contra o curso do jogo. A França não jogou bem, e sua vitória foi vista como ultrajante. Para além da possibilidade de disputar novamente a partida, ao que sou favorável - , conviria reforçar o critério de seleção do seletor das equipes nacionais, de forma que a consequência de um incidente como esse não possa ser agravada pela mediocridade do jogo da equipe que se beneficie com ele.

Também acredito que esse incidente deva ser a ocasião para tentar deter os excessos nas relações que os públicos mundiais mantêm com o esporte, particularmente com o futebol. A repressão policial de pequenos grupos de encrenqueiros é evidente, mas é essencial que as instâncias que pesam sobre o público - escolas, famílias, governos e especialmente as mídias - insistam sobre o fato de que o esporte não é uma guerra, e que uma partida não é uma batalha. É um divertimento que não deve ser poluído pela injustiça ou por um erro evitável.

Dizem que o esporte pode unir os povos. Eu acredito nisso. Mas constato que, com exceção de algumas modestas declarações, ele não está sujeito à formação necessária. O esporte se tornou uma instituição. Ele deve obedecer a valores de justiça e de competição pacífica. O que se vê muitas vezes é o contrário.

Sobre o autor
Jacques Le Goff é historiador, autor de "Uma breve história da Europa", "Uma longa Idade Média" e "A bolsa e a vida", entre outros

É hora de cada um de nós reagirmos contra essa deplorável evolução que está transformando um esporte nascido com a democracia, capaz de alimentar um patriotismo pacífico, em uma explosão de nacionalismo desonroso e de comportamentos deprimentes.

Se a reflexão sobre essa partida estimular reformas profundas e o restabelecimento dos valores na relação entre o esporte e a sociedade, esse infeliz incidente terá servido para alguma coisa.

Tradução: Lana Lim

Le Monde





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