História do Brasil e do Mundo
Saúde e doença escrava
Saúde e doença escrava
Documentos e inventários de proprietários esclarecem o modo como eram tratadas as enfermidades dos escravos no Brasil durante o século XIX
POR KEITH VALÉRIA DE OLIVEIRA BARBOSA
Considerando a intensa conexão ocorrida durante quatro séculos entre Brasil e África, muitos autores debruçaram-se sobre os universos sociais escravistas em áreas urbanas e rurais, examinando o cotidiano, os arranjos familiares e as sociabilidades diversas. A difusão do imaginário do deslocamento de povos pelas margens do atlântico evoca a percepção naturalizada do deslocamento de doenças, o que tem valido a atenção dada pelos estudos históricos mais recentes.
Mary Karasch, em seu estudo sobre A vida dos escravos no Rio de Janeiro: 1808-1850 (São Paulo, 2000), sustenta que a condição pestilenta da cidade - em razão das péssimas condições sanitárias e miséria da população -, associada a uma população flutuante de estrangeiros, era vista como principal fonte de mortalidade. Em O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, Gilberto Freyre (1963) destacou os tipos biológicos e físicos dos escravos pelos anúncios de fugas, compra, aluguel e venda de escravos. Entre as características mais citadas por Freyre estão "efeitos" de raquitismo, erisipela, escorbuto, bexigas, boubas, sífilis e oftalmia. Numerosos são aqueles escravos "rendidos", "quebrados" ou cheios de "bicho-de-pé". Reforça-se a importância do contexto demográfico e do meio social dos mundos do trabalho para uma melhor compreensão do quadro de morbidade. Segundo Freyre, de acordo com os anúncios analisados, as doenças africanas trazidas aparecem bem menos significativas do que as "doenças e vícios aqui adquiridos".
Uma família brasileira no Rio, do francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848): raquitismo e bexigas eram as principais moléstias entre os escravos, advindas principalmente das más condições de trabalho e higiene
CASOS: A DOENÇA E SEU PREÇO
Na documentação histórica, há evidências revelando a vida escrava urbana, doenças e sistema de saúde. Nos livros paroquiais, a análise de alguns assentos de óbitos da freguesia de Jacarepaguá, entre o período de 1820 e 1830, no Rio de Janeiro, aponta as "bexigas" como principal causa mortis. No inventário de Manoel José Pereira da freguesia de Irajá, encontra- se registrado o tratamento de doenças e da saúde dos escravos, como o pagamento de 649 réis a um barbeiro por furar um apostema da escrava Gertrudes, ou de 160 mil réis para purgar uma mulatinha. Na listagem geral dos escravos, constam os nomes, as identidades, as ocupações, as idades e os respectivos valores, aparecendo três escravas que foram assim registradas: "Gertrudes crioula, 20 anos, doente de acidente - 100 mil réis"; "Senhorinha, crioula, cega de um olho, cento e dois mil e quatrocentos réis"; "Luiza, crioula, tem um [rotura] no umbigo, oitenta mil réis". É possível verificar como poderia ser custoso para um proprietário mais pobre quando um escravo ficava doente. No inventário de um morador da freguesia Sacramento da Sé, encontramos: "A preta velha Maria, de nação benguela, não ganhou nada [dos rendimentos da roça] por andar doente, esteve em casa". Há ainda registrada a interessante trajetória do preto africano Francisco, que teve lançado no inventário a relação das despesas para curar uma moléstia. O preto Francisco recebeu tratamento e alimentação específica durante três meses, e no fi- nal do inventário é anexado o anúncio de sua fuga, ou seja, fugiu antes de ser vendido como os demais escravos. O inventário deixa transparecer que ele não foi resgatado, já que, mesmo após o fechamento do processo e a partilha dos bens, nenhum documento aponta que o tal Francisco tenha sido recuperado. Também vale ressaltar as anotações referentes às despesas pagas com dois barbeiros. Ao barbeiro Caetano foi pago 7 mil e 440 réis e ao barbeiro Laurindo, 1 mil réis. Evidências disponíveis em vários tipos de documentação permitem traçar mais detalhadamente o ambiente em que trabalhavam e como eram tratados os escravos. Regimes de trabalho, constituição de comunidades e sociabilidades escravas e africanas também abrem importantes caminhos para as investigações a respeito dos contextos demográficos.
KEITH VALÉRIA DE OLIVEIRA BARBOSA é aluna do Mestrado em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e tem se dedicado a estudar as relações entre doença, sistema de saúde e escravidão no Brasil.
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