Os funerais de "anjinho" na literatura de viagem (parte 1)
História do Brasil e do Mundo

Os funerais de "anjinho" na literatura de viagem (parte 1)



Os funerais de "anjinho" na literatura de viagem

Luiz Lima Vailati*
Doutorando/USP



É do conhecimento de todos aqueles que têm se dedicado ao estudo do cotidiano no Brasil durante a Colônia e o Império a importância de uma literatura constituída de relatos e memórias de viagem. Esses escritos se tornam bastante freqüentes a partir de 1808 como resultado da franquia do País aos estrangeiros quando do estabelecimento da corte de D. João VI no Rio de Janeiro. Tais narrativas, quando submetidas a um crivo criterioso, têm se revelado fontes fundamentais para o desenvolvimento de temas como a família, as relações de gênero, a alimentação, as práticas religiosas, as formas de convívio e sociabilidade, dentre outras. Seu valor fica evidenciado quando se tem em vista a escassez documental, dificuldade com a qual se depara o investigador dos costumes no Brasil. Este é o caso da pesquisa da qual este artigo faz parte, que tem sob foco as práticas e representações da morte da criança nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. A escolha deste objeto se justifica, uma vez que parece ser um ângulo singularmente privilegiado na avaliação de uma questão ainda não suficientemente trabalhada pela historiografia brasileira, a da sensibilidade em relação à infância1. Além disso, no caso dos comportamentos em torno da morte no Brasil, a literatura de viagem tem ainda um outro significado bastante especial. A origem do interesse que até hoje esse tema suscita coincide com a produção dessas narrativas sobre o Brasil. Essa constatação nos chama a atenção para o grau em que todos aqueles que de um modo ou de outro pensaram nesse fenômeno são tributários desses primeiros escritos. Mais precisamente, essa literatura serviu de referência àqueles que escreveram e avaliaram os costumes funerários no Brasil, fossem eles os médicos e políticos modernizadores do Segundo Império e da República Velha, passando por nossos primeiros "etnólogos" até a historiografia atual.

O caráter de espetáculo e a ampla mobilização social e material dos ritos fúnebres no Brasil, característica compartilhada com as demais manifestações de religiosidade, parecia neles atingir uma de suas formas mais radicais. Disso resultou a atenção que esses cientistas, missionários, comerciantes, agentes governamentais, militares ou meros aventureiros voltaram ao cerimonial mortuário, fazendo com que este fosse um dos aspectos do nosso cotidiano que também merecesse registro. É certo que tal atração fora matizada com uma amplitude de sentimentos que variaram da indignação à admiração, ainda que esta última fosse menos freqüente, é forçoso reconhecer. De modo geral, esses senhores ? e algumas poucas senhoras ? viam nessas celebrações o resultado não só de uma espiritualidade primitiva, cujo dolo era atribuído sobretudo à ação da Igreja Católica no País, como também de uma certa promiscuidade daqueles costumes de origem nativa e adventícia. De qualquer maneira, no conjunto dos gestos que compunham as práticas fúnebres no Brasil dos oitocentos, uma modalidade em particular era alvo da atenção desses viajantes, posto que única: os funerais de "anjinho". Ao acentuar as características presentes nos demais cerimoniais fúnebres brasileiros, os rituais de morte infantil estavam mais do que nunca distantes dos costumes mortuários que estes haviam experimentado em seus lugares de origem. Isso tornava possível que eles se assumissem como um dos símbolos do pitoresco cultural desse "país tropical". É certo que esses relatos chamam atenção para aspectos que só a distância cultural permitia entrever, daí advindo o valor inestimável dessa documentação. Todavia, a avaliação e descrição que estes viajantes faziam desses fenômenos não deixou de ser eivada de uma série de preconceitos, cuja superação cabe a uma leitura crítica dessas fontes.

Antes de iniciar a análise, algumas considerações são úteis na desconstrução do viés com que esses viajantes avaliaram nossos costumes funerários e, por conseguinte, creio que permitirão um melhor aproveitamento dessas fontes. Em linhas gerais, dois elementos constituintes do contexto de origem desses viajantes vão estar diretamente implicados na experiência que tiveram dos funerais no Brasil. Um deles diz respeito à formação religiosa desses senhores, muitos deles protestantes, fossem eles anglicanos (no caso dos ingleses), luteranos (na maioria alemães), e calvinistas (norte-americanos, principalmente presbiterianos e metodistas). É importante assinalar nessas Igrejas reformadas o caráter mais individualista e introspectivo de experiência e um conteúdo ético de conduta mais preponderante, o que em última instância reservava à relação do indivíduo com Deus o único ponto a considerar na sua salvação após a morte. No caso dos católicos, no geral os franceses, muitos deles já participavam de um religiosidade mais racionalista, já muito diferente da que era corrente então aqui. Essa visão fez com esses estrangeiros ficassem pouco sensíveis aos significados de muitas das práticas de religiosidade popular católicas. No nosso caso, ao caráter público dos funerais, resultado dentre outras coisas, de uma concepção na qual a salvação da alma dependia também da ação da comunidade (não só a dos vivos, como também a dos mortos ? parentes e santos, conforme assinalara o trabalho de Chaunu para a Europa barroca). Da mesma incompreensão sofreram, como veremos, outras manifestações presentes nos funerais que, como outras demonstrações de fé comuns no Brasil, primavam por sua exterioridade.

Somada a isso, outra particularidade que conformava o universo de representações desses viajantes era a visão que estes então tinham em torno da criança. Como conseqüência das mudanças que começam a ocorrer na Europa no final do século XIV, com o crescimento das cidades e que determinarão sérias mudanças na consciência dos homens sobre si próprios e o mundo, dá-se o início de uma lenta transformação no sentimento em relação à criança2. Esses processos se aceleram a partir do século XVII, e, segundo Philippe Ariès3, o século XIX é marcado por ser o momento em que a criança passa a ser percebida como definitivamente distinta dos adultos. O resultado dessa nova percepção da infância será o desenvolvimento de novas técnicas, valores e interditos comportamentais que passaram a serem vistos como os mais adequados em relação à criança. Além disso, este vai ser um período em que a criança adquire uma importância até então inédita, assumindo-se como elemento central na célula familiar burguesa, cujo papel social era visto como cada vez maior. Este fato é, por exemplo, comprovado na produção literária francesa que, segundo o estudo de Chombart de Louwe, a partir de 1850 conhece a entrada maciça da personagem da criança4. A emergência desse novo estatuto da infância não teria deixado de ter sérias implicações na forma como esses europeu passaram a encarar a morte infantil, de formal tal que levou um historiador da morte a afirmar que no século XIX ela seria sentida como "a mais intolerável das mortes"5. No Brasil, como bem lembraram os historiadores da infância, não tiveram lugar essas condições que permitiram o desenvolvimento desse sentimento peculiar de infância, como uma urbanização dos costumes e a constituição de uma vida privada nos moldes europeus6. Considerando isso já é possível de algum modo antever a reação desses viajantes diante dos comportamentos comuns aos funerais de criança na Corte. Toda peculiaridade se arriscava a violentar severamente os novos preceitos desses homens sobre a criança e ao que a ela era devido.

Revista Brasileira de Historia




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